Contra a subnotificação

Comunidades do Rio criam seus próprios painéis de informação e controle da covid-19

Clínicas de saúde da família da Rocinha, Manguinhos e do Alemão reúnem dados sobre casos e óbitos. Objetivo é tratar avanço da pandemia com transparência

Vivi Zanatta Opas/Organização Mundial da Saúde - Comunidades
Vivi Zanatta Opas/Organização Mundial da Saúde - Comunidades
Assim como na Rocinha (foto), no Complexo do Alemão e em Manguinhos as unidades de saúde têm seus próprios painéis de monitoramento (no detalhe): dados transparentes para empoderamento da população

São Paulo – Desde a segunda quinzena de março, o novo coronavírus passou a circular nas comunidades pobres do Rio de Janeiro. A pandemia de covid-19 tornou-se então uma ameaça real para milhares de moradores residentes nessas regiões densamente povoadas, com famílias dividindo espaços diminutos e muitas delas enfrentando ainda hoje a falta de infraestrutura básica, como água potável encanada, indispensável para a prevenção de doenças.

Para profissionais de saúde a situação não é diferente. Sem a realização de testes diagnósticos para detectar pessoas infectadas em um território onde a estratégia de isolamento social praticamente não funciona, passaram a enfrentar, às cegas e sem armas, um inimigo perigoso.

No país, as autoridades sanitárias não sabem ao certo quantas pessoas morreram pela covid-19, tampouco quantas estão infectadas pelo novo coronavírus causador da doença. Mas surgem estudos que apontam que os números oficiais são subestimados. Conforme pesquisa divulgada recentemente pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), os dados sobre infectados podem ser pelo menos 17 vezes maior.

Ou seja, os 135.106 casos de coronavírus anunciados ontem (7) pelo Ministério da Saúde seriam, na realidade, de no mínimo 2.262.802. Já a subnotificação da mortalidade pode estar na casa dos 168%, conforme estimativa de um epidemiologista da Universidade de São Paulo (USP). Assim, as 9.146 mortes segundo dados oficiais seriam, por baixo, 15.365.

Valendo-se de números assim tão distantes da realidade desde o início, o presidente Jair Bolsonaro mantém uma campanha de desinformação e desdenha da gravidade da doença e de suas vítimas. Até hoje não enviou sequer uma mensagem de solidariedade aos familiares dos mortos pela covid-19, a maioria dessas pessoas moradoras de bairros pobres dos grandes centros urbanos. E ainda trabalha incessantemente pelo fim de medidas de isolamento social para tentar frear o contágio.

Transparência

Em um cenário tão desfavorável para a conscientização da comunidade quanto aos riscos de infecção pelo coronavírus e a evolução da doença em meio ao colapso do sistema de saúde, médicos de família se uniram a ativistas comunitários na Rocinha, no Complexo do Alemão e em Manguinhos, no Rio de Janeiro, e criaram seus próprios painéis de monitoramento.

Fonte: Clínica de Família Zilda Arns, Complexo do Alemão. Reprodução

O painel da Clínica de Família Zilda Arns, em um dos seis territórios do Alemão, na zona norte do Rio, informou nesta sexta-feira (8) 22 casos confirmados, 73 suspeitos, oito mortes confirmadas para covid-19 e cinco suspeitos. Das pessoas que adoeceram, 44 se recuperaram.

“Com o painel a gente tem uma noção de como seria o cenário real. Temos muitos casos suspeitos, de pacientes que tiveram síndrome gripal, que entram nesse painel mas não entram no da prefeitura. E grande parte pode mesmo estar com covid-19, porque estamos vivendo um momento de pandemia. Temos no território de abrangência da Clínica de Família Zilda Arns, no Complexo do Alemão, oito óbitos e 22 casos confirmados”, disse o médico de família Guilherme Vale, destacando que apenas 1/6 do território do Alemão é coberto pela clínica. “As demais nem sempre conseguem fazer esse monitoramento que a gente está fazendo por  falta de pessoal.”

O médico explicou que são classificados como síndrome respiratória aguda grave (SRAG) os casos de pacientes que necessitam de internação, para os quais foi necessário chamar ambulância que os levaram para Unidades de Pronto Atendimento (Upas) ou hospitais. Esses casos serão testados para covid-19.

“Nosso objetivo é trazer transparência para informar os moradores. Por isso estamos junto dos moradores e de coletivos como o Gabinete de Crise e o Papo Reto, para os moradores terem mais transparência desses dados”, disse o médico.

Painel de monitoramento das clínicas de família Maria do Socorro Silva e Souza, Rinaldo de Lamare e Albert Sabin. (Reproduçã)

Na Rocinha, as clínicas de família Maria do Socorro Silva e Souza, Rinaldo de Lamares e Albert Sabin enviam dados para o painel da comunidade localizada na zona sul, entre os bairros da Gávea e São Conrado. Dados desta sexta-feira (8) indicam 82 casos confirmados, 35 suspeitos e 30 óbitos confirmados e 26 suspeitos.

“A divulgação deste painel visa compartilhar informações específicas da situação da Rocinha de forma mais detalhada e em tempo real, com o objetivo de empoderar a população com uma noção realista dos dados e reforçar a importância de estratégias de isolamento”, disseram os médicos envolvidos no projeto ao jornal comunitário Fala, Roça.

Aumentou a procura

Bairro da zona norte conhecido pelo alto índices de violência e por abrigar favelas e a sede da Fundação Oswaldo Cruz, Manguinhos também tem seu painel. Indicava 1.007 notificações, 31 casos confirmados, 73 casos de síndrome respiratória aguda grave e seis óbitos confirmados causados pela covid-19.

Painel das unidades de saúde da comunidade de Manguinhos. (Reprodução)

Médica de família em Manguinhos e diretora do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, Veruska Antunes avalia que os painéis das clínicas das comunidades são mais completos. Segundo ela, são notificados também casos suspeitos – o que não entra nos boletins oficiais, apesar de os serviços estarem fazendo essa notificação.

Para ela, há uma procura crescente de moradores das comunidades pelos serviços de saúde. “A partir da segunda quinzena de abril, aumentou muito a procura de pessoas com sintomas e aumento de casos agravados, que chegam mais graves, ou que foram se agravando, ao longo da segunda semana. Tem sido triste, a gente ainda não ter um tratamento efetivo, para evitar essa evolução. Tem sido um desafio.”

Nenhum dos três observatórios de covid-19 nas comunidades cariocas têm números iguais ao do Painel da Secretaria Municipal de Saúde do Rio. Questionado, o órgão informou, por meio de nota enviada à reportagem, que são publicados os casos de SRAG confirmados para covid-19. Ou, nos casos das internações, em investigação para a doença, com a distribuição dos casos por bairros. “São os dados oficiais do Sistema de Vigilância em Saúde, após as devidas confirmações laboratoriais necessárias, para que não haja questionamentos técnicos”, ressaltou o documento.


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