Entrevista

Ao som de forró: médico ressalta importância do SUS e da esperança contra a covid-19

“Foi um ato de celebração da vida”, diz médico que dançou forró com paciente de covid-19 que deixou UTI em Petrolina

Arquivo pessoal
Arquivo pessoal
"Teve uma carga muito simbólica porque ela foi nossa primeira paciente", conta o médico Pedro Carvalho Diniz

BdF – Em meio à tensão cotidiana nos extensos plantões de enfrentamento à pandemia de coronavírus, cenas de comemoração das equipes médicas em casos de recuperação dos pacientes de covid-19, tem gerado momentos de celebração nos hospitais e ganhado as redes sociais.

Uma delas foi o registro em vídeo do forró que o médico e a paciente, já no 18º dia de internação, dançaram em plena UTI ao som das palmas e canto dos outros profissionais da equipe, que entoaram em coro o hino nordestino de Luiz Gonzaga, Asa Branca

“Foi um ato de celebração da vida dela, na verdade. Foi um gesto de ‘desopilar’, uma expressão muito conhecida aqui no Nordeste que significa relaxar, desanuviar, foi um ato de desopilo pra ela, pra equipe e pra mim. Foi um ato coletivo. Eu acho que a razão dessa viralização foi essa angústia, essa tristeza que a gente está sentindo e isso deu um respirozinho e esperança pras pessoas”, conta ao Brasil de Fato Pedro Carvalho Diniz, clínico geral do Hospital Universitário Federal da Universidade Federal do Vale do São Francisco (HU-Univasf), em Petrolina (PE).

O momento de euforia e comemoração foi um respiro em meio à complexidade da situação. Para Diniz e sua equipe, os impactos da pandemia chegaram com a internação dessa jovem, a primeira paciente com covid-19 no hospital universitário.

“Foi um momento de tensão, tanto meu como da equipe. Eu já fiz centenas de entubações, porque eu atuo em urgência e emergência em UTI, mas de longe foi a entubação mais tensa da minha vida e eu tenho certeza que para a equipe também”, relembra o médico.

Mesmo apresentando problemas respiratórios, a paciente estava consciente e com oxigênio quando teve uma piora do quadro durante um plantão de Diniz. Ele pôde acalmá-la e explicar os procedimentos médicos.

“Ela passou 14 dias entubada, nesse meio tempo a gente teve que trocar o tubo. Depois ela foi apresentando uma melhora. Ela teve alta semana passada, está bem, muito bem. Dá uma sensação de vitória muito grande”, expressa o especialista, que conta que a paciente completou 30 anos durante a internação e a equipe não perdeu a oportunidade de cantar parabéns quando ela foi liberada do uso do aparelho.

“Ela foi melhorando gradativamente, nossa coordenadora colocou uma televisão pra ela e permitiu que ela usasse o celular para falar com a família, escutar músicas. Eu falei com ela, ‘se você melhorar mais um pouquinho a gente dança um forró, mas pé de serra pra você nem eu cansar’.”

O clínico geral também percebeu o grau de isolamento que os próprios EPIs trazem para a realidade da epidemia. Se não fosse a repercussão do vídeo, a paciente não iria reconhecê-lo, porque a vestimenta impede que seja possível ver o rosto dos profissionais de saúde e, inclusive, que a própria equipe se conheça.

“A covid é uma doença da solidão, o cuidado em UTI é solitário, principalmente para os pacientes. Ele é solitário também para as equipes, porque a gente não tem contato. É uma doença que nos torna invisíveis enquanto pessoas ali naquele cuidado e a doença, ao mesmo tempo, está revelando os invisíveis da sociedade, que não tem como acessar, por exemplo, um auxílio de R$ 600, porque não tem celular, internet, acesso a banco.”

Diniz chegou a fazer o teste da covid-19 pelo hospital. Depois do resultado negativo e de um mês longe da família, pôde ver os filhos de 4 anos e 8 meses. “É um aprendizado constante e ao mesmo tempo é um chamado pra gente se encontrar enquanto profissional de saúde, que está cuidando não só de um indivíduo infectado, mas que está tentando cuidar de uma sociedade”.

A repercussão do vídeo trouxe ao médico mensagens de agradecimento pelo gesto, o que para ele apresenta um sintoma social. “Aquilo foi um alentosinho. Porque as pessoas estão vivendo um clima de angústia, insegurança, de incerteza e de uma nuvenzinha preta em cima do mundo”, pontua.

O médico ressalta que a pandemia chegou ao país em um momento em que a população está sendo privada de direitos básicos com a retirada de conquistas acentuada no atual governo de Jair Bolsonaro (sem partido) e destaca que, em um momento como esse, os profissionais de saúde são chamados a exercer um papel de liderança.

“Uma população que sofre com violência, com outras doenças, com pobreza, com precarização do trabalho, essa doença chega em cima dessas outras coisas num contexto político muito grave no país, onde as autoridades políticas não exercem um papel de liderança e um papel tranquilizador, pelo contrário. Elas são um fator de angústia muito grande para a população.  Eu acho que, nesse momento, nós profissionais de saúde precisamos assumir essa liderança, que a gente precisa passar um pouco de esperança, de tranquilidade e orientação para as pessoas.”

Diniz considera que a covid-19 é um divisor de águas para os profissionais de saúde no país e afirma que no enfrentamento ao novo coronavírus passa a ser essencial defender, preservar e fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), “maior patrimônio” do país.

Ele atuou na linha de frente durante a pandemia de H1N1 quando trabalhou como médico em Belo Horizonte (MG) e aponta que a principal diferença do combate ao novo coronavírus é a  necessidade de compreender que o enfrentamento à pandemia deve ser feito de forma conjunta, enquanto sociedade.

“O H1N1 era uma pandemia em que a gente tinha muita preocupação individual com aquele ou aquela paciente que chegava com a infecção. Com essa doença, a gente vai precisar aprender agora a lidar conosco enquanto sociedade, a gente só vai vencer essa doença se a gente tiver noção de sociedade, de solidariedade, de que estamos vivendo em conjunto e que a gente só supera essa doença se a gente lutar, defender e preservar o sistema único de saúde (SUS).”

Diniz se reúne com profissionais de saúde de todo o país na Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares e ressalta a importância da relação do profissional de saúde com a comunidade para o enfrentamento a essa pandemia.

“A gente vê que temos um novo desafio de prestar essa assistência, observar os impactos sociais, além dos impactos da saúde, como médicos e médicas. A covid chegou para nos reensinar muita coisa, nos transformar enquanto agentes de saúde no sentido de profissionais de saúde em contato com a população”, pontua o médico que integra a gestão do hospital e o departamento de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), setor que é outra das grandes preocupações do Brasil diante do déficit de leitos públicos e aparelhos respiratórios mecânicos.

Contágio entre profissionais

Não há um levantamento nacional dos casos, mas a Associação Paulista de Medicina (APM) divulgou no dia 27 de abril uma pesquisa que aponta que para os médicos, a falta de testes e EPIs como principais problemas no combate à pandemia. 

Em uma resposta com possibilidade de mais de uma escolha, 66% dos médicos disseram que a falta de testes é a principal deficiência encontrada. O restante se dividiu entre os EPIs (Equipamentos de Proteção Individual): falta de máscaras (50%), proteção facial (38,5%), aventais (31%) e óculos (26%), entre outros. A entidade ouviu 2.312 médicos de todo o País entre os dias 9 e 17 de abril.

O médico ressalta que o afastamento dos profissionais de saúde é uma preocupação e que o risco de contágio torna o trabalho mais tenso. “O profissional de saúde que tem algum sintoma, que testa positivo, ele fica no mínimo 14 dias afastados. Então a gente está vivendo como profissional de saúde um risco de uma escassez de recursos humanos. E também a tensão pelo risco de infecção. A gente sabe que 40% dos trabalhadores da saúde se infectam. Então é um plantão muito tenso”, aponta.

Enquanto gestor, Diniz também percebe que houve  uma mudança na rotina. Ele e a equipe foram cobrados para tomar soluções rápidas e diferentes das habituais para oferecer um atendimento fora do tipo e fluxo normal de pacientes. Foi preciso fazer um rearranjo do sistema de saúde local, novas pactuações, questões de licitações rápidas, aquisição de insumos e parcerias.

“O cotidiano nosso como profissional de saúde mudou muito. São plantões muito diferentes do que a gente tem acostumado a dar. Diferente pela quantidade de precauções que a gente tem que ter, pelos EPIs. O processo de paramentação que é colocar os EPIs e retirar os EPIs dura praticamente uma hora. Por causa desses EPIs a gente não se conhece enquanto equipe”, aponta.

Por lá ainda não faltam equipamentos de proteção individual, mas o médico relata que, devido à escassez no país, eles tem utilizado os materiais até a exaustão, para além das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

“Por exemplo, a máscara N95 por recomendação da OMS ela deve ser trocada por plantão e pelo potencial de escassez, estamos usando em torno de 15 dias, que é a capacidade máxima da máscara. A gente está lutando contra isso, exaurindo a capacidade do próprio EPI”, ressalta.

Isolamento e falta de testes

O clínico geral destaca que o distanciamento social é a alternativa mais eficaz para combater a pandemia e aponta que a quantidade reduzida de testes em sua região, assim como no restante do país, impede de pensar no momento em formas de realizar um isolamento segmentado por grupos, por exemplo.

“A gente sabe que o distanciamento tem até agora se mostrado como alternativa mais eficaz para gente conter a pandemia, como qualquer outro tratamento em saúde, ela não é isenta de efeitos colaterais. Ela tem seus efeitos colaterais muito importantes. Mas é o que tem do ponto de vista da sociedade.  A gente não tem como fazer o isolamento de alguns grupos de pessoas porque a gente não tem como testar, a gente não tem a real dimensão da pandemia. Isso não é uma particularidade da região do sertão do São Francisco, acho que no Brasil inteiro”, conclui.


Leia também


Últimas notícias