Ideologia do sofrimento

Governo Bolsonaro é cínico e negligente ao se opor à cannabis para uso medicinal

Para o neurocientista Renato Malcher (UnB), chantagear Anvisa contra regulamentação é tirar proveito político do "caldeirão de ódio, insatisfação e desconfiança da ciência"

Dave Coutinho/Smoke Buddies
Dave Coutinho/Smoke Buddies
Pais pedem a regulamentação da cannabis e acesso aos benefícios comprovados em casos de epilepsia, Parkinson, dor crônica, câncer e outros

São Paulo – Ao afirmar que defende o fechamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) caso seja regulamentada a produção da Cannabis no país para a produção de medicamentos, o ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB-RS), reforça que o Brasil passou a ser gerido por uma ideologia centrada em um “caldeirão de ódio, insatisfação e desconfiança da ciência”. E que tem na produção de sofrimento uma maneira de obter benefício político e simpatizantes. A opinião é do neurocientista e professor da Universidade de Brasília (UnB) Renato Malcher.

Nesta terça-feira (23), em entrevista ao portal jurídico Jota, Terra disse que a agência “está enfrentando o governo. É um órgão do governo enfrentando o governo. Não tem sentido”. O ministro já havia se manifestado nesse sentido em maio, quando o diretor da Anvisa, Renato Porto, disse a setores industriais interessados na liberação da maconha para uso terapêutico que seu desejo era deslanchar a regulação no Brasil.

O ministro do governo de Jair Bolsonaro (PSL) é autor do projeto, transformado em lei, que altera a política de drogas. Na contramão da Reforma Psiquiátrica em vigor,  a internação compulsória de usuários de drogas passou a ser permitida. E as comunidades terapêuticas, muitas delas cometendo violações de direitos conforme pesquisa do Ministério Público Federal, passou a ser incorporada ao Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad). A nova legislação também coloca a abstinência como objetivo de tratamento da dependência química, em vez da política de redução de danos sociais e à saúde dos usuários.

“Quando o governo anuncia que vai fechar a Anvisa se ela regulamentar o acesso dos brasileiros, mostra que está indo muito além de questões de mercado e de acesso econômico do que propriamente aceitar o uso médico. Até porque o uso médico já é feito no Brasil, pelas pessoas que podem importar o produto. O que a Anvisa quer é que o Brasil possa produzir também. Como é possível ser contra isso?”, questiona Malcher.

Para ele, também o fato de o Conselho Federal de Medicina se posicionar contrário à regulamentação expõe “uma certa frieza por parte desse sistema político, que resolveu atropelar preceitos éticos básicos não só do governo mas de uma série de instituições que tentam impedir que os brasileiros tenham a mesma oportunidade de escolher a possibilidade deste uso que cidadãos do resto do mundo estão tendo”.

O neurocientista atribui o descompasso entre os interesses do governo e da sociedade a um fenômeno de massa no Brasil que ele chama de “caldeirão social de ódio, insatisfação e desconfiança”. E acredita que  houve uma aposta dos meios de comunicação, com intenções políticas, até mesmo objetivando o atual governo.

“Isso gerou esse ambiente em que vale tudo do ponto de vista de massacrar as pessoas com informações confusas e desencontradas, cruzadas, tendenciosas, sistemáticas, que vão gerando bodes expiatórios e nutrindo ódio e ao mesmo tempo uma grande confusão e desconfiança entre as pessoas. E se apostou tanto nisso que hoje em dia a gente chegou a um ponto em que a ciência, o conhecimento e o bom senso viraram inimigos. A noticia, de verdade, virou um problema para esta sociedade que buscou esse espaço político como estratégia”, disse, referindo-se à falta de ética de setores da mídia tradicional.

“O que agora vimos é um governo que virou refém disso tudo ou que continua apostando nisso. Ou seja: O que a Fiocruz fala não serve; o que a Anvisa fala não serve, o que o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) fala não serve; o que a universidade produz não serve. A ciência não serve para esse nosso Brasil. E onde é que a gente vai parar?  Por que na hora que um neto ou parente de um desses políticos que estão no governo estiver à beira da morte precisando de um derivado da cannabis, eles também vão sofrer (como sofrem pessoas, pais e familiares que necessitam ter acesso aos benefícios terapêuticos oferecidos por esses medicamentos à base da maconha). Essa regulamentação que o governo quer barrar é simplesmente a possibilidade de se ter empresas produzindo no Brasil o que muitos brasileiros já estão comprando no Exterior. Qual o sentido de o governo ser contra isso?”

Benefícios

Estudioso dos efeitos do canabidiol, um dos princípios ativos da Cannabis sativa – a popular maconhaem pacientes com algum tipo de autismo, Renato Malcher tem dificuldade de entender as razões de tanta resistência à regulamentação. Respaldo científico para os mais diversos usos medicinais é o que não falta nos países mais desenvolvidos. Segundo ele, é fato consumado pela ciência que a cannabis é uma planta medicinal. Tanto que a indústria voltada a ela é a que mais cresce. “Existe uma revolução na ciência, na medicina, na biologia, na neurociência, que tem no centro o entendimento do sistema endocanabinoide.”

Assim, não há argumentos na ciência capazes de evitar o uso medicinal da cannabis e, por consequência, que pessoas que sofrem muito continuem a sofrer. “A única explicação eu que eu vejo para esse tipo de abordagem do governo é a esperança de ganhar simpatia causando sofrimento nos outros. E não é sofrimento só de impedir o avanço da discussão do acesso da sociedade aos benefícios que ela vê pela internet, em notícias sobre os avanços do setor em Israel, o fim do sofrimento de pessoas nos Estados Unidos, no Canadá. Já há documentos que estabelecem, do ponto de vista cientifico,  que os canabinoides são importantes para o tratamento de dor crônica.”

Malcher enumera uma série de outros benefícios atestados pela ciência quanto ao uso de medicamentos derivados da cannabis. Tratamento de espasmos de esclerose múltipla, do sofrimento devido ao uso de quimioterapia em casos de câncer. E controle da epilepsia, que por sua vez está associada ao surgimento de vários tipos de autismo. Porque inclusive os canabinoides estão sendo usados hoje em dia, por exemplo, para tratar dependência em crack, em cocaína, em anfetamina e em álcool, que são substâncias que causam dependência mais grave que o abuso da cannabis.

E critica o fato de que, diante de tantas possibilidades terapêuticas, o Brasil estar ainda discutindo uma proposta de regulamentação tímida, atrasada e ainda distante de um projeto revolucionário de expansão do uso médico para além das fronteiras.  “A agência tem feito um trabalho extremamente técnico e cauteloso, mais cauteloso do que acho necessário. O que o governo quer é fazer com que as pessoas sofram. Algo como dizer a doentes e familiares: ‘olha, não tenham nem a esperança de que a instituição mais adequada que existe no Brasil para julgar isso vai ter espaço para aliviar o sofrimento de vocês. Nós vamos impedir’. Isso que está sendo dito causa mais sofrimento em pessoas que já estão sofrendo, o que é uma brutalidade. Mesmo que seja só um discurso, só uma forma de colocar a barganha política que ele está fazendo seja lá por que o outro lado se opõe a esse uso, seja qual for a intenção dele, o fato é que o ato em si é de abuso contra pessoas que estão doentes”.

É assustador, considera Malcher. “Parece que são pessoas que querem uma espécie de “ideologia do sofrimento”. Ao invés de a gente ter o estado que busca na ciência as condições de buscar reduzir o sofrimento de quem sofre, melhorar a vida de todos, estamos vendo algo sendo feito ao contrário, tentando impedir que as pessoas tenham acesso aos benefícios que a ciência pode gerar para a saúde pública, para o bem estar geral do Brasil. Como pode existir um governo que impede que as pessoas se beneficiem do conhecimento cientifico melhorando a saúde, diminuindo o seu sofrimento?

Brecha

A preocupação do ministro de que a regulamentação abra uma brecha para a produção para outros meios além do medicinal não faz sentido. Há no Brasil um acesso caótico, desregulamentado, à cannabis. É possível comprar maconha em qualquer esquina, com fornecedores desconhecidos – que Malcher chama de um estado que libera, mas que não regulamenta. Em países mais avançados no setor, como Portugal, as pessoas estão se beneficiando do processo de regulamentação da produção e acesso, que acabou com o comércio ilegal. Nesses países há constatação de redução do consumo do álcool, de problemas com opioides vendidos em farmácias e do número de adolescentes usando maconha.

Isso porque foi estabelecida uma rede, uma estrutura de comércio e produção dentro das regras, que tomou dos criminosos o domínio do mercado, e o governo ainda lucra. “Na medida em que se esvazia a fonte de renda do comércio ilegal, esse comércio vai perdendo aderência e vai diminuindo com ele toda a cadeia de crimes conectada com a regulamentação da produção e do comércio de uma substância legal. Inclusive crimes violentos, porque há disputas entre grupos que produzem de maneira ilegal, de um fornecedor que deu cano no outro – uma disputa que não se pode levar para o estado resolver”, diz Malcher.

Ele lembra que enquanto o Brasil ainda patina no debate da regulamentação médica, há pessoas sofrendo, morrendo, com a perspectiva de vida reduzida, muitas inclusive querendo se matar por causa de tanta dor, apesar de centenas de artigos publicados sobre os benefícios e a segurança, com menos efeitos colaterais. Então como você pode ser cínico o suficiente para dizer que não vai deixar o seu filho parar de sofrer porque eu acho que os jovens podem cair na desgraça de usar maconha? Isso é ridículo. É negligência do estado que mantem um tema de saúde pública sob gestão policial”.

O Brasil é um dos países mais atrasados do mundo em termos de regulamentação da cannabis. E mais atrasado entre os da América Latina. Na Colômbia, Peru, Uruguai e México, os debates já estão em outro patamar. No entanto, houve avanços segundo o professor da UnB. Um deles foi a autorização para uso de extrato de cannabis importado em 2014, o que levantou uma questão: como autorizar o uso de uma substância que não foi registrada no país? De lá para cá, com mais de 4.000 pessoas importando os medicamentos, não houve registro de casos de efeitos colaterais. Atualmente são mais de 900 médicos que prescreveram o medicamento autorizado pela Anvisa.

“A agência tem condições técnicas de regulamentar. Já estava tudo pronto quando Michel Temer entrou. Desde então virou uma discussão política. E sobrepor ideologia a critérios médicos e científicos para zelar pelo bem das pessoas configura falta de ética.”

Assista documentário que mostra luta de pais pela regulamentação da cannabis no Brasil:

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