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Organizações temem as mudanças nas políticas para HIV/Aids

Desmonte no departamento responsável preocupa entidades de apoio a pessoas que vivem com o vírus. Ministério da Saúde ainda não esclareceu questionamentos

UNAIDS
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Organizações temem esvaziamento das ações de prevenção e falta de medicamentos para o tratamento de pessoas vivendo com HIV/Aids

São Paulo – A falta de esclarecimentos sobre o rebaixamento do Departamento de IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde para parte de um setor mais amplo, denominado Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis, preocupa ativistas e pessoas que vivem com HIV/Aids. Três semanas após o decreto do governo de Jair Bolsonaro (PSL) que fez a alteração, nenhuma informação foi divulgada. “O governo tem dito que as ações sobre HIV/Aids não vão sofrer impacto. Mas até agora não há clareza alguma sobre o que vai acontecer, só incerteza”, disse Paulo Giacomini, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids.

A Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia) levantou uma série de questões ainda não respondidas pelo governo Bolsonaro. Entre outras preocupações da organização estão a distribuição dos recursos financeiros do novo departamento, a estimativa de orçamento para 2020, os impactos da redução da importância do HIV/Aids no nível federal nas esferas estadual e municipal, já que cidades e estados dispõem de pouco recurso para tratamento da doença, o nível de autonomia de cada coordenadoria dentro do novo departamento, e os mecanismos que serão adotados para o monitoramento e avaliação da execução dos recursos destinados a cada uma das doenças relacionadas ao vírus.

O governo Bolsonaro fala em aumento do orçamento, de R$ 1,7 bilhão em 2018 para R$ 2,2 bilhões em 2019. Porém, dos R$ 500 milhões a mais, R$ 300 milhões são relativos à aquisição de medicamentos para tratamento das hepatites, que já estava acertado. O aumento real é de R$ 200 milhões. Mas também aumentou a demanda do departamento, que agora compartilha políticas de combate à leishmaniose, tuberculose e hanseníase. Uma das principais críticas é que são doenças completamente distintas, tanto quanto ao meio de infecção, quanto ao agentecausador – vírus, bactérias, vermes – e os segmentos populacionais afetados. As mudanças foram oficializadas no decreto 9.795/2019.

Mais temor

Outra preocupação é quanto à autonomia do programa de combate ao HIV/Aids. O departamento tinha poder de decidir sobre a compra de insumos e medicamentos, elaboração de políticas e linhas de ação. Com a inserção em outro departamento, as compras deverão ser definidas de outra forma, podendo haver atrasos e mudança de prioridades.

“Quem faz uso de retrovirais não pode interromper o tratamento. A combinação de medicamentos perde a eficácia e o vírus se torna resistente. O tratamento começa, em geral, com três medicamentos em dois comprimidos e de acordo com a evolução pode ser de um comprimido diário. Existe uma melhora visível na qualidade de vida população vivendo com HIV/Aids, principalmente devido a distribuição de medicamentos. Nossa preocupação é principalmente que a mudança no departamento possa causar algum atraso na aquisição e distribuição”, afirmou Giacomini.

O ativista lembra ainda que a mudança realizada pelo governo Bolsonaro atinge um programa que é reconhecido internacionalmente e que nunca sofreu interferências políticas significativas nos governos anteriores. “O programa se mantém desde 1988, a despeito das influências políticas. A atuação do departamento sempre se desenvolveu por ações técnicas”, destacou Giacomini. Além disso, o rebaixamento do departamento desrespeita compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como a eliminação da Hepatite C até 2030, conforme plano nacional aprovado em 2017, e a eliminação da Aids até 2030, conforme os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU, firmada pelo Brasil em 2016.

A decisão de rebaixar o departamento pegou os movimentos que atuam na causa de surpresa. Segundo o Movimento Nacional de Luta Contra a AIDS, o governo Bolsonaro não apresentou qualquer proposta de alteração nas reuniões da Comissão Nacional de IST, HIV/Aids e Hepatites Virais (CNAIDS) e da Comissão Nacional de Articulação com Movimentos Sociais (CAMS), ocorridas há um mês. “Não se trata apenas de uma questão de nomenclatura: é o fim do Programa Brasileiro de AIDS. O governo, na prática, extingue de maneira inaceitável e irresponsável um dos programas de AIDS mais importantes do mundo, que foi, durante décadas referência internacional na luta contra a Aids”, diz o movimento.

Visão preconceituosa

Bolsonaro nunca escondeu sua visão preconceituosa sobre pessoas vivendo com HIV. Em entrevista ao programa Custe o Que Custar (CQC), em 2010, o então deputado federal declarou que a infecção é problema de quem vive com a doença. “A pessoa não pode ficar aí na vida mundana e depois querer cobrar do poder público um tratamento que é caro nessa área aí. Se não se cuidou, o problema é dele”, afirmou. Na prática, as políticas de enfrentamento da doença passam a ser elaboradas conjuntamente e dividindo recursos com ações contra a Tuberculose e a Hanseníase.

O ex-ministro da Saúde e atual deputado federal Alexandre Padilha (PT/SP) lembrou que o país completou 30 anos de enfrentamento ao HIV/Aids em 2018. E que nesse período a política sempre foi marcada por uma progressão. “Fomos um dos primeiros países em desenvolvimento a garantir todo o tratamento na rede pública. Depois incorporamos novos medicamentos e desenvolvemos o teste rápido. Colocamos a população mais vulnerável como protagonistas nas campanhas, que sempre foram referências mundiais. Em 2013, adotamos a estratégia de, ao testar, tendo resultado positivo, já começar a tratar. Essa ação foi responsável por ampliar o tratamento da população. E, também, reduziu a transmissão”, explicou.

O Boletim Epidemiológico de 2018, elaborado pelo Ministério da Saúde, indica que a taxa de detecção de Aids era de 21,7 casos a cada 100 mil habitantes, em 2012. Cinco anos depois, o número caiu para 18,3 casos a cada 100 mil habitantes. Também houve queda de 16,5% na taxa de mortalidade por HIV/Aids entre 2014 e 2017. Apesar de todos esses avanços, ainda há desafios a resolver, como a garantia do acesso aos medicamentos, os efeitos adversos por uso prolongado, como lidar e cuidar das pessoas vivendo com HIV/Aids e o atual crescimento da transmissão entre homens jovens.

“O desmonte do departamento de HIV/Aids tem dois impactos imediatos. O primeiro é não dar visibilidade ao tema. Isso tem um peso importante sobre qual é a preocupação e a importância que ministério vai dar ao combate da epidemia de HIV/Aids. O segundo problema é concreto. Um departamento tem autonomia administrativa para fazer licitações, compra de medicamentos. E isso tem sido muito importante para que não haja interrupção no tratamento das pessoas. Hoje o ministério já vive a falta de medicamentos especializados, para transplantados, falta de vacinas. A interrupção do tratamento leva a uma piora significativa na qualidade de vida e voltam a ter carga viral detectável, se tornando novamente transmissor. É muito grave”, explicou Padilha.

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