Ilegal e faz mal

Por que a liberação comercial de milho transgênico tem de ser anulada?

Para liberar milhos da Monsanto e da Syngenta em 2016, CTNBio atropelou a lei e desprezou alertas sobre os sérios riscos à saúde e ao meio ambiente – vícios que, segundo o MPF, justificam a anulação

Pixabay

Insuficientes e cheio de falhas, estudos que a CTNBio aceitou não foram realizados no Brasil

São Paulo – Depois de ser condenada pelo tribunal de júri da Califórnia por causar câncer em um trabalhador naquele estado estadunidense, há duas semanas, a Monsanto volta a ser destaque. Desta vez, pela possibilidade de duas de suas sementes de milho transgênico ter a liberação comercial cassada em território brasileiro. Nesta semana, o Ministério Público Federal no Distrito Federal (MPF-DF) divulgou Ação Civil Pública na qual pede à Justiça Federal a anulação, em caráter liminar, da liberação dos milhos MON 87411 e MON 87460, da transnacional recentemente adquirida pela Bayer, e também da semente de milho 3272, produzida pela Syngenta. Em 2016, a importação e plantio desses transgênicos obtiveram sinal verde da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Clique aqui para ler a íntegra da ação.

Os procuradores consideram que o regime de urgência que levou à liberação comercial dessas sementes contém vícios que, por si só, já são suficientes para sustentar a anulação. Os mais graves são a falta de estudos específicos sobre os biomas brasileiros, como determina a legislação nacional, e as deficiências metodológicas no parecer técnico da CTNBio e nos estudos apresentados pelas empresas, que o embasaram. Sem contar a ausência de estudos relacionados à segurança do consumo desses milhos e de seus derivados, como os efeitos tóxicos à saúde humana e animal.

Há ainda outro aspecto: essas sementes são provenientes dos Estados Unidos, país que não assinou a Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, tampouco o Protocolo de Cartagena, tratado complementar à  convenção do qual os estadunidenses são apenas observadores. Na prática, isso significa que lá se adota o princípio da equivalência substancial, não sendo feita distinção entre semente transgênica e não transgênica. E não há uma legislação federal e uniforme voltada à regulação dos transgênicos. Já o Brasil, signatário da convenção e do protocolo, adota o princípio da precaução: a identificação de organismos geneticamente modificados é obrigatória.

Por isso eles pedem que a CTNBio seja obrigada a anular as liberações comerciais desses produtos e abster-se de autorizar a importação de sementes transgênicas oriundas de países que não sejam signatários da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica e do Protocolo de Cartagena.

A importância da ação do MPF extrapola interesses dos produtores de milho no Brasil e pode ter impactos na qualidade do alimento que chega à mesa. O milho é um dos cereais mais consumidos em todo o mundo, inclusive no Brasil, e é largamente utilizado pela indústria de alimentos. É muito mais que o bolo de fubá, a pamonha, o curau. Está no óleo, na cerveja, na maionese, nos salgadinhos de pacote cada vez mais consumidos e em uma infinidade de outros produtos. É também ingrediente da ração animal que alimenta rebanhos de corte. Sem contar sua aplicação na produção de etanol.

Legalidade

Um dos três votos contrário à liberação das sementes, o ex-integrante da CTNBio Antônio Inácio Andrioli acompanhou de perto a apressada tramitação. “O MPF quer restabelecer a legalidade. Trata-se de uma comissão que ignora a biossegurança, em que o presidente define os relatores dos pedidos de aprovação conforme o objetivo que se tem. E quanto às sementes de milho, falamos de uma liberação estranha do ponto de vista jurídico, passando por cima até do regimento da CTNBio, e científico. Que tipo de ciência sem critério é feita ali?”, questiona o especialista em agricultura familiar. Com doutorado em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück, na Alemanha, e pós-doutorado em Sociologia pela Universidade Johannes Kepler de Linz, na Áustria, Andrioli é autor de livros sobre transgenia, tema sobre o qual se especializou em suas pesquisas. Confira ao final da reportagem o vídeo que ele gravou para falar sobre a importância da anulação da liberação comercial das sementes de milho da Monsanto e da Syngenta pedida pelo MPF.

Desde que deixou a comissão, em outubro passado, Andrioli tem sido chamado para palestras na Europa sobre o funcionamento do órgão brasileiro de liberação de transgênicos. Para ele, o Brasil está seriamente equivocado ao priorizar políticas que fortalecem tecnologias criadas para aumentar o uso de agrotóxicos, cada vez mais combatido em países desenvolvidos, associadas a outras práticas retrógradas do ponto de vista socioambiental. “Estamos na contramão. Para quem vamos vender nossa produção?” 

Para o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, que integrou a CTNBio, a ação é antes de tudo uma advertência. “A ação do MPF é importante porque temos na pauta muitos pedidos de liberação de sementes para plantio. É um aviso para que haja mais cuidado nos processos de aprovação, que até aqui têm sido conduzidos de forma pouco cautelosa, deixando de levar em conta aspectos básicos do princípio da precaução. Por meio do processo, os procuradores estão advertindo que estão atentos ao tema. Isso pode fazer com que não existam mais experimentos fictícios, que mais se dedicam à produção de sementes com antecipação à aprovação dos pedidos de liberação comercial do que à busca de informações para subsidiar tais pedidos”, avalia.

Dirigente da Associação Nacional de Agroecologia (ABA), ele chama atenção para outro aspecto importante envolvendo os processos de liberação de transgênicos: a Resolução Normativa nº 16 (RN 16), da própria CTNBio, que traz para si a prerrogativa de determinar quais produtos das novíssimas tecnologias de modificação genética deverão apresentar estudos mais aprofundados no pedido de liberação no Brasil.

“Pedidos de liberação comercial em breve serão coisa do passado. A corrida agora é por novas tecnologias, edições gênicas, que ao abrigo da RN 16 serão dispensadas de realizar testes de biorrisco. A CTNBio vai dizer que a modificação genética se enquadra nos limites para isenção da apresentação de estudos, e o mercado tomará todas as decisões. Produtos entrarão e sairão dos pontos de venda sem que saibamos os motivos que os tornaram ‘necessários’ e em seguida ‘obsoletos’. Os piores momentos, em termos de ofensa ao princípio da precaução, estão por vir”, avalia Melgarejo.

Samira Gasparini/Prefeitura de Vitória
In natura ou processado, o milho é um dos cereais mais consumidos em todo o mundo e um dos principais ingredientes da indústria em geral

Pressões

Para aprovar as liberações, a CTNBio cedeu a pressões do setor interessado, como indústrias e produtores, por meio da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA). Ao aceitar o argumento de um suposto risco de desabastecimento interno de milho para justificar a pressa na liberação, a comissão ignorou até notícias da mídia especializada, segundo a qual a safra da época ia muito bem. A de 2015/2016 foi a maior da história, atingindo cerca de 88 milhões de toneladas. Um volume suficiente para atender à demanda interna e fazer o Brasil se manter entre os cinco maiores exportadores mundiais do grão.

Ao pedir a anulação da liberação do milho MON 87411, resistente aos agrotóxicos glifosato e glufosinato de amônio, os procuradores estão levando em consideração diversos aspectos técnicos e científicos. Entre eles, graves deficiências metodológicas do parecer técnico da presidência da CTNBio em defesa da aprovação do milho apontadas pelo analista ambiental Rogério Magalhães, do Ibama. Voto contrário à liberação, Magalhães chegou a colocar em dúvida a validade técnica dos documentos apresentados.

Em resumo, apontou que a engenharia genética produz novas combinações de genes que, introduzidos na natureza, podem se tornar irreversíveis na evolução das espécies e afetar o curso de vida de todos os seres – o que exige a produção de informação sobre os potenciais efeitos da liberação comercial do organismo geneticamente modificado e seus derivados sobre o ambiente como medida de segurança. “Caso ocorra a contaminação de espécie nativa por algum transgênico, o dano será irreparável, uma vez que aquele espécime deixará de existir e seguirá outro curso evolutivo. Nesse caso, os danos serão irreparáveis”, destacaram os procuradores, com base no parecer de Magalhães.

Integrante do GT Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e da CTNBio, contrária à liberação, Karen Friedrich apresentou na época parecer que respalda tecnicamente a Ação Civil Pública, especialmente quanto aos riscos da semente MON 87460, modificada geneticamente para suportar situações de estresse hídrico. Segundo a especialista, os dados sobre biossegurança alimentar do milho foram obtidos nos Estados Unidos e no Chile – uma clara violação ao artigo 1º da Lei de Biossegurança (Lei n. 11.105/05), que versa sobre o princípio da precaução, e ao artigo 19 da Resolução Normativa nº 5/08, da CTNBio.

Karen apontou também a falta de estudo de avaliação ambiental, inclusive dos estudos realizados nos Estados Unidos e no Chile, bem como de dados sobre as vantagens da semente sob condições de estresse hídrico, e que a propalada maior produtividade não foi comprovada. A falta de informações, entre as quais dos estudos realizados com frangos de corte, sobre o potencial teratogênico (de causar malformações congênitas) e de análises imunológicas, entre outras, também foram apontadas.

Para completar, “a avaliação do risco dietético foi realizada utilizando-se os dados de consumo de milho nos Estados Unidos da década de 1990, que não se aplica à realidade atual de consumo de milho no Brasil”. Outro agravante: a semente MON 87460 contém o gene aadA, que pode levar à resistência aos antibióticos espectinomicina e estreptomicina – característica que pode ser transferida ao genoma do milho e, assim, transferida também para as pessoas e animais que venham a ingeri-lo.

O fato de as pesquisas terem sido feitas nos Estados Unidos e não no Brasil é relevante não só pelas diferenças ambientais, que por si só já exigem estudos aprofundados no país importador da tecnologia. Um aspecto importante é que nos processos de liberação de organismos geneticamente modificados, os estadunidenses adotam o princípio da equivalência substancial. Ou seja, não fazem distinção entre a semente transgênica e não transgênica.

Absurdos

Os absurdos que envolvem as liberações questionadas pelo MPF incluem o fato de a semente 3272, modificada pela Syngenta para aumentar a produção de etanol nos Estados Unidos, ter sido liberada no Brasil para uso exclusivo na alimentação humana e animal – o que já levanta dúvidas sobre a segurança do produto. No país de origem, aliás, foram adotadas medidas de rastreabilidade para evitar que o milho seja empregado em outras finalidades que não a produção de etanol.

Segundo parecer de Karen Friedrich, a Syngenta não apresentou resultados de estudos realizados nos biomas brasileiros, como exige a Lei de Biossegurança e a Resolução Normativa n° 5 de 2008, da CTNBio. Além disso, não foram realizados estudos para avaliação dos efeitos deletérios e o potencial teratogênico decorrentes do uso do milho. O estudo de 90 dias realizado com ratos não se aplica à avaliação dos efeitos sobre os fetos em formação pois não são realizados com animais prenhes.

A falta de transparência e os conflitos de interesse na Comissão são motivo de preocupação do MPF-DF desde a sua criação, em 2005. Tanto que em 2017 os procuradores emitiram recomendação de alterações no regimento do colegiado em prol de mais transparência, publicidade, lisura no trato da coisa pública e impessoalidade, princípios basilares da administração pública.

Essas questões também estão na pauta da RBA. Tanto que duas de suas reportagens foram citadas pelos procuradores na Ação Civil Pública. Na mira do MPF, irregularidades na CTNBIo vêm à tona com a cana transgênica mostra conflitos de interesse envolvendo o ex-presidente da comissão, Edivaldo Velini, com a indústria de agrotóxicos e transgênicos e com o setor canavieiro. Velini teve boa parte de suas pesquisas acadêmicas custeadas por empresas privadas atuantes nos mercados alcançados pelas decisões do colegiado, como a Monsanto, Syngenta e Basf – o que motivou o MPF a instaurar procedimento para apurar possível irregularidade.

Outra reportagem – Ao deixar CTNBio, especialista expõe esquemas na liberação de transgênicos –, reproduzida no página pessoal de Antonio Andrioli na internet, relata irregularidades no âmbito da comissão criada para assessorar o governo federal em assuntos envolvendo transgênicos.

Saiba mais:

Assista depoimento de Antônio Andrioli sobre a liberação dos milhos questionados pelo MPF:

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