Na contramão

Brasil de Temer facilita adoção de tecnologias com potencial cancerígeno

União Europeia decide que ferramentas de edição genética, como o Crispr, devem seguir o mesmo rigor dos transgênicos. Já no Brasil, essa técnica associada ao câncer pode ser liberada sem estudos

Leveduras que prometem aumentar lucros dos usineiros, obtidas por meio da técnica do Crispr, são consideradas seguras e têm sinal verde da CTNBio

São Paulo –  A Corte de Justiça da União Europeia decidiu hoje (25) que organismos obtidos por alterações genéticas, como por meio de técnicas de edição de genes, e organismos geneticamente modificados (OGM) – os transgênicos – estão, em princípio, sujeitos aos mesmos critérios da legislação. Novas tecnologias, como o Crispr Cas9, que edita o genoma de células humanas, de animais, plantas e micro-organismos, para fins agrícolas, industriais, terapêuticos e de pesquisa, passam a ter o mesmo tratamento que os transgênicos. E os projetos que utilizam essas técnicas passam a ser submetidos, obrigatoriamente, às mesmas exigências de avaliação e risco para liberação experimental e comercial que os transgênicos. Tudo em nome do maior controle e da biossegurança.

No Brasil, no entanto, ocorre exatamente o contrário. No começo de junho a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) deu parecer favorável à empresa belga-brasileira GlobalYeast, dispensando dois de seus pedidos do cumprimento da Lei de Biossegurança. Trata-se das linhagens de leveduras Excellomol 4.0 e Excellomol 4.0 Next, destinadas à produção de etanol. O extrato do parecer técnico foi divulgado na edição de 22 de junho do Diário Oficial da União (página 11). Clique aqui para acessar. 

“Não são considerados transgênicos, porque não deixam rastro de outro DNA dentro dele. E essa foi uma decisão histórica, porque é uma tecnologia completamente nova e recente, e que nunca havia sido feita e aprovada aqui na CTNBio. Então, acho que temos um dia histórico hoje”, chegou a afirmar a presidenta da Comissão, Maria Sueli Soares Felipe, na ocasião da dispensa de mais estudos para as leveduras.

A decisão foi tomada com base na Resolução Normativa (RN) nº 16, da própria CTNBio, publicada em janeiro passado. A norma possibilita que os organismos produzidos pelas novas técnicas inovadoras de melhoramento de precisão (Timps), todas com alteração genética, não sejam considerados geneticamente modificados – ou transgênicos. E como tal, não precisariam cumprir os dispostos na Lei de Biossegurança. No caso das leveduras, cabe agora ao Ministério da Agricultura chancelar a liberação. 

A GlobalYeast, especializada em produtos e soluções para fermentação industrial, comemorou a medida e chegou a agradecer publicamente. Em nota divulgada em seu site, saudou a Comissão pelo enquadramento no rol dos organismos considerados seguros, “que não precisam ser submetidos aos rigores regulatórios”. E que graças a essa decisão, “pode contribuir para um processo de produção de bioetanol industrial mais eficiente e, como consequência, pode fazer parte de uma comunidade mais sustentável”. 

A animação toma conta também do setor sucroalcooleiro. Afinal, as novas leveduras prometem aumentar a produção de etanol em 3% a 5%. Parece pouco, mas representa ganhos aos usineiros, que a revista Época Negócios considera milionários: algo em torno de R$ 16 milhões com a fabricação de 2 mil metros cúbicos do combustível. 

McGovern Institute/MIT
Imagem mostra recorte durante edição de gene por meio da técnica Crispr Cas9

Transgênico

Em entrevista à RBA, a pesquisadora do Centro de Biossegurança Genok, da Noruega, a brasileira Sarah Agapito, explicou por que a decisão da corte europeia é acertada, enquanto que a da CTNBio é equivocada.

“Crispr/Cas9 só funciona quando acoplada a uma molécula de RNA guia, ou seja, uma molécula manipulada fora da célula viva, independente de ter segmentos equivalentes ao DNA natural. Não precisa ter introdução no genoma para ser um transgênico. Basta ter sido ‘modificado’ por técnica de engenharia genética. No caso das leveduras, o DNA foi modificado pela engenharia genética definida como manipulação de DNA ou RNA recombinante. Pela legislação brasileira, organismo geneticamente modificado é todo aquele cujo material genético tenha sido modificado por qualquer técnica de engenharia genética. Então essas leveduras são transgênicas”, afirmou. O DNA e o RNA são estruturas presentes no núcleo das células. 

Segundo ela, em sua resolução normativa nº 16, a Comissão está equivocada ao insistir em definir um organismo geneticamente modificado a partir da análise do produto final. “Todavia, a Lei de Biossegurança define um OGM conforme o processo pelo qual foi submetido, a técnica utilizada, e não o produto final. Existe uma diferença muito grande nisso. Para a legislação, não importa se a transgenia foi utilizada para se fazer um milho exatamente igual a um milho que já existe na natureza. Se usou transgenia, vai ser um milho transgênico”, explicou.

Para a pesquisadora, o que a CTNBio tenta implementar é uma normativa segundo a qual algo que foi feito igual ao natural tem de apresentar riscos  iguais àquele natural. “Mas isso está errado, pois a semelhança entre um organismo editado geneticamente e um organismo feito pela natureza é uma questão técnica. Hoje podemos não conseguir distingui-los, amanhã, com novas técnicas, isso pode ser possível. E daí, toda a argumentação pode cair por terra. Antigamente não conseguíamos distinguir uma vaca saudável de uma vaca com o mal da vaca louca. Hoje conseguimos. A mesma coisa com a doença de Alzheimer e por ai vai”, comparou.

Câncer

Sarah explicou ainda que como a tecnologia Crispr permite cortar o DNA na sequência desejada e também em sequências indesejadas, ainda não se sabe ao certo os danos e riscos. Estudos mostram que softwares usados para indicar o ponto do DNA que será cortado são baseados em algoritmos que nem sempre têm alta correlação com ensaios in vivo (dentro do organismo). “Isso porque cada célula, cada organismo, reage diferentemente à edição de DNA por meio da técnica. Sem contar os estudos recentes, mostrando que células humanas alteradas com êxito com Crispr são aquelas com o gene defectivo p53. Daí a correlação muito alta entre defeito na função do gene p53 e o desenvolvimento de câncer. Por isso a reação extraordinária da comunidade acadêmica. Foram dois artigos publicados juntos na Nature Medicine“.

Ela se referiu às pesquisas da Universidade de Helsinque e Instituto Karolinska, na Suécia, em parceria com a Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e do Instituto de Pesquisa Biomédica da Novartis, gigante do setor farmacêutico, ambas divulgadas em junho na revista científica. Os estudos sugerem que células humanas deficientes em uma proteína chamada p53, quando alteradas por meio do Crispr, são mais propensas a modificações genéticas. Ou seja, de se transformar em células cancerosas. 

Na ocasião, o Genok emitiu nota a respeito, chamando atenção para o fato de que a técnica não pode ser diretamente responsabilizada por causar câncer – e sim por aumentar o risco de desenvolver células cancerígenas. E ressalvou que o impacto negativo do Crispr sobre as células pode ocorrer “em todos os organismos vivos na terra, não estando limitados àquelas alteradas pela tecnologia na terapia genética humana”.

Além disso, o centro de pesquisas norueguês, um dos mais avançados do mundo, destacou que os estudos sobre a edição genética têm se limitado à avaliação da eficiência, e não dos riscos. Assim, esses dois estudos divulgados recentemente revelam uma outra relação, desta vez com o desenvolvimento de células cancerosas. “Isso abre a possibilidade de comportamento similar em outros organismos que ainda não foram testados. Mais uma vez é importante reconhecer que o futuro bem-sucedido de tais aplicações biotecnológicas deve ser acompanhado de pesquisas sobre biossegurança, bem de regulação para o seu uso seguro”. Ou seja, o contrário do que está sendo feito no Brasil.

No último dia 4, em palestra na Universidade Federal do ABC (UFABC), campus Santo André, a vice-presidenta da CTNBio, Maria Lucia Zaidan Dagli, defendeu a decisão da CTNBio quanto às leveduras, argumentando que as análises no colegiado sempre consideram todos os aspectos, “caso a caso”. E saiu em defesa do Crispr. “Ao que consta, a técnica tem provado ser bastante segura”. A participação da dirigente em evento da UFABC ocorreu menos de um mês após a publicação dos estudos.

Confira um trecho da fala da integrante da CTNBio sobre a tramitação de novas tecnologias no colegiado: