Saberes da floresta

Centro médico atende a população de Manaus com técnicas e conhecimentos indígenas

Primeiro centro médico indígena do Brasil completou um mês de funcionamento, com tratamentos à base de plantas medicinais. 'É o nosso modo de pensar e ver a saúde', diz antropólogo criador do espaço

Agência Amazônia Real

Manoel Lima, 85 anos, da etnia Tuyuka, é um dos atendentes

São Paulo – Fruto do desejo do antropólogo João Paulo Barreto, de 45 anos, ávido em mostrar à sociedade a eficácia do ancestral conhecimento médico das tribos do Alto Rio Negro, no extremo norte do Amazonas, o Bahserikowi’i – ou Centro de Medicina Indígena da Amazônia – completou nessa quinta-feira um mês de funcionamento. Localizado no centro de Manaus, foram atendidas, em média, 25 pessoas por dia, praticamente todos não-indígenas, com exceção de apenas dois casos.

“A maioria das pessoas chegam aqui desesperadas. São pessoas que estão fazendo tratamento com a medicina convencional há anos e tem tido uma reação muita satisfatória com a nossa medicina”, explica João Paulo, da etnia Tukano. Os casos mais frequentes no primeiro mês de abertura do Centro de Medicina Indígena estiveram relacionados à diabete, doenças de pele, feridas que não cicatrizam, dores musculares e problemas de coluna.

A consulta e o tratamento são realizados por seu tio Manoel Lima, de 85 anos, da etnia Tuyuka, e seu irmão José Maria, de 45 anos, da etnia Tukano. Chamados de Kumuã (pajé, na tradução ocidental), ambos utilizam como principais técnicas o conhecimento das plantas medicinais e o Bahsese (conhecido popularmente como benzimento).

Doutorando em Antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), João Paulo Barreto explica que os Kumu (plural de Kumuã) já costumam atender pacientes de modo informal, tanto em Manaus quanto nas cidades do interior do estado e nas aldeias. A questão, diz ele, é que o Estado brasileiro não reconhece e tampouco se interessa pelo conhecimento indígena. O antropólogo acredita que o Centro de Medicina Indígena da Amazônia seja o primeiro do Brasil, com endereço fixo, aberto à população indígena e não-indígena.

“Eles já fazem esse trabalho, exercem seu ofício na aldeia e fora da aldeia, mas de modo clandestino. O que a gente fez foi só mostrar o que já é feito”, ponderou.  “Quando se trata de tratamento de doenças, as técnicas são as mesmas que permeiam vários povos do Alto Rio Negro.” Segundo Barreto, outros povos indígenas da Amazônia talvez tenham técnicas de cura distintas e, por isso, seu desejo é oferecer o espaço do centro para outras etnias atenderem o público.

Barreto faz questão de ressaltar o caráter independente do Bahserikowi’i e diz não haver nenhum tipo de contato formal com os órgãos de saúde do município e do estado. “Digo sempre que essa casa é uma ação ‘contra-estado’, fora das instituições oficiais, eles não entendem isso. É uma iniciativa independente, não temos nenhum financiamento ou apoio público. É o nosso modo de pensar e ver a saúde. Queremos começar a discutir isso, independente da cultura do governo ser sempre a ocidental. Queremos levar isso para o debate”, afirma.

O casarão onde funciona o centro pertence à Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e foi cedido para a realização do projeto.

Agência Amazônia Legal
O antropólogo João Paulo Barreto e seu tio, o Kumu Manoel Lima

Amputação

O surgimento do Centro de Medicina Indígena da Amazônia está diretamente relacionado a uma história pessoal do antropólogo João Paulo Barreto. Em 2009, sua sobrinha Luciane Trurril Barreto, na época com 12 anos, foi picada por uma cobra jararaca na comunidade de São Domingos, em São Gabriel da Cachoeira, extremo norte do estado. Transferida dias depois para Manaus, deu entrada no Hospital João Lúcio. Foi quando os médicos que atenderam a menina decidiram que era preciso amputar sua perna. O diagnóstico deixou a família desesperada.

“A primeira coisa que a equipe médica decidiu foi amputar o pé dela”, lembra Barreto. Incrédulos com a situação, começaram a consultar os Kumu da família para saber se haveria possibilidade de tratamento com conhecimento indígena. A avaliação foi que sim. A família então propôs à equipe médica uma terapia conjunta, unindo os dois conhecimentos, ideia imediatamente negada pelos médicos do hospital.

“Dissemos que queríamos fazer um tratamento conjugado, entre a medicina tradicional e o nosso conhecimento, até que chegasse a um limite de decidir, de fato, se precisaria mesmo amputar. Em nenhum momento a equipe médica aceitou a proposta”, recorda o antropólogo. O impasse causou grande confusão e a família retirou “quase à força” a menina do hospital, levando-a para uma casa de apoio. O fato teve grande repercussão local e nacional e, dias depois, outras unidades de saúde se sensibilizaram, entre elas o Hospital Universitário Getúlio Vargas, que fez contato para saber o que estava acontecendo, disposto a ouvir a proposta da família. “Com essa outra equipe nós conseguimos dialogar melhor”, diz Barreto.

A nova equipe médica descartou a necessidade de amputação e concordou que a garota recebesse os dois tratamentos. Um mês depois, Luciane Barreto teve alta, num prazo menor do que o inicialmente previsto pelos médicos. Segundo João Paulo Barreto, a eficácia do tratamento deveu-se à aplicação conjunta das  técnicas.

Durante todo o drama vivido pela família, um momento específico marcou João Paulo Barreto: foi quando o médico que queria amputar sua sobrinha desdenhou dos conhecimentos dos Kumu da sua família, incluindo seu pai Ovídio Barreto. Em meio à confusão, ele lembra, o médico bateu na mesa e disse para seu pai que havia estudado oito anos para decidir se amputava ou não.

“Isso me serviu como motivação. Comecei a pensar qual seria o melhor caminho para mostrar que o conhecimento indígena é um sistema, com conceito e técnica, mas que não se ancora na epistemologia ocidental. E assim começou a ideia de um dia termos nosso centro de tratamento de saúde indígena, com nossas técnicas, nosso conhecimento das plantas medicinais”, explica.

Decidiu então fazer mestrado em antropologia e começou a sistematizar o conhecimento da sua etnia. “Queria mostrar pra universidade que existe sim um sistema de conhecimento tão organizado quanto à ciência.”

Hoje o Centro de Medicina Indígena conta com apoio do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai), onde ele próprio é pesquisador, além de professores e alunos do mestrado e doutorado em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

E sua sobrinha Luciane, hoje com 20 anos de idade, segue morando – e caminhando – em São Domingos, no rio Tiquié, afluente do rio Negro.

Com informações da Agência Amazônia Real

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