Violações

Brasil explicará funcionamento de prisão psiquiátrica paulista para ONU nesta quarta

Unidade Experimental de Saúde mantém encarcerados por tempo indeterminado cinco infratores egressos da Fundação Casa que não cumprem pena nem recebem tratamento médico

Eduardo Knapp/Folhapress

Internos não recebem atendimento médico e não há um regimento interno da unidade

São Paulo – Representantes do governo brasileiro terão a oportunidade de prestar explicações hoje (10) para autoridades de 47 países que participam da reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, sobre o funcionamento da Unidade Experimental de Saúde, um suposto hospital psiquiátrico do governo paulista que mantém encarcerados por tempo indeterminado cinco jovens infratores que não cumprem pena nem recebem tratamento médico.

As acusações fazem parte do relatório do Grupo de Trabalho sobre Prisões Arbitrárias no Brasil, que será lançado oficialmente durante a 27ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, que teve início na segunda-feira (8) e segue até o próximo dia 26. Os especialistas da ONU estiveram no Brasil entre 18 e 28 de março de 2013 e realizaram visitas a sete locais de privação de liberdade em Brasília, Campo grande, Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo, quando a Unidade Experimental de Saúde foi inspecionada. Na época da visita eram seis internos. De lá para cá um deles conseguiu liberdade.

Os internos do “hospital”, localizado na Vila Maria, na zona norte de São Paulo, são egressos da Fundação Casa que cometeram atos infracionais considerados graves e que foram supostamente diagnosticados com transtorno de personalidade antissocial, com laudos médicos considerados duvidosos por instituições pró-direitos humanos. Eles já cumpriram as medidas socioeducativas previstas em lei e, sem terem praticado novos crimes, continuam detidos de forma “preventiva” – e aparentemente perpétua.

A “Guantánamo psiquiátrica” paulista foi criada pelo governador-tampão Cláudio Lembo (então no DEM), que governou o estado de abril a dezembro de 2006, e mantida por seus sucessores, José Serra (2007-2010) e Geraldo Alckmin, ambos do PSDB. Até 2007, o equipamento estava sob a responsabilidade da antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem), atual Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa). Naquele ano, o então governador de São Paulo, José Serra (PSDB), transferiu o imóvel para a Secretaria de Estado da Saúde, pelo Decreto 52.419.

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“Os adolescentes foram inicialmente detidos por crimes graves e perigosos, cumpriram a sentença máxima de três anos descrita na lei e foram transferidos para a Unidade Experimental de Saúde, onde eles estão interditados sem um processo legal”, aponta o relatório. “O grupo de trabalho está preocupado com a detenção dos seis adolescentes na Unidade Experimental de Saúde em São Paulo e com a ausência de bases legais para essas prisões, particularmente pela falta de clareza de um prazo para as detenções. Além do mais, não houve nenhuma revisão judicial efetiva dos casos.”

Pelo fato de não haver prazo para as detenções, o relatório afirma que membros do judiciário brasileiro consideram a prisão dos jovens como “inconstitucional”. “Para justificar a privação de liberdade desses indivíduos e responder a uma pressão social e da mídia, foi usada uma lei de 1930 que deu suporte legal a decisão. Essa lei não cumpre os princípios e normas estabelecidos na Constituição do Brasil nem nas leis internacionais de direitos humanos”, diz o texto.

“A Unidade Experimental de Saúde é um excrescência que viola qualquer ordenação judicial no país e não está amparada na Constituição. Ela cria um situação de exceção”, avalia a advogada do Programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos, organização que terá um representante na sessão. A delegação do governo brasileiro é composta pela ministra conselheira da Missão Permanente do Brasil em Genebra, Maria Luiza Escorel de Morais, pela embaixadora Regina Maria Cordeiro Dunlop e pelo conselheiro Carlos Eduardo da Cunha Oliveira.

Esta é a segunda inspeção da ONU na Unidade Experimental de Saúde. A primeira, realizada em 2011, foi feita pelo Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes. O relatório final recomenda que a unidade seja desativada.

No ano passado, irregularidades como a falta de médico de plantão, de projeto terapêutico e de regimento interno motivaram a Procuradoria da República de São Paulo, entidades pró-direitos humanos e o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo a moverem uma ação civil pública exigindo o fechamento da unidade. Ela será julgada pela Justiça Federal porque eventual condenação internacional do país por violações aos direitos humanos recai sobre a União.

“O tratamento que tem sido dispensado a esses jovens é medieval. São encarcerados sem o devido processo legal, por tempo indeterminado, em estabelecimento que não lhes proporciona tratamento adequado aos distúrbios de que são portadores”, diz a petição inicial do processo. “Além de estarem sendo responsabilizados duas vezes pela prática de um mesmo fato, a internação na UES se dá por tempo indeterminado, como se fosse perpétua.”

Não existia destinação orçamentária especifica para a Unidade Experimental de Saúde no orçamento do governo estadual de 2013. O estabelecimento não consta do organograma da Secretaria Estadual de Saúde e não está inscrito no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Segundo o Ministério da Saúde, responsável pelo cadastro, o registro só é obrigatório se a unidade receber financiamento do governo federal. O processo aponta que os recursos para a unidade são do Tesouro do Estado.

Outras irregularidades

O relatório que será apresentado na 27ª sessão do Conselho de Direitos Humanos aponta outras irregularidades no sistema carcerário brasileiro, entre elas a dependência institucional, a falta de recursos para as defensorias públicas, a prisão compulsória de dependentes químicos, o tratamento cruel dado aos detentos e o uso excessivo de presos provisórios, que ainda aguardam julgamento, situação de 41,8% dos presos do país, segundo dados de 2012 do Ministério da Justiça.

Após a apresentação, a delegação brasileira em Genebra terá de apresentar o que pretende fazer para solucionar os problemas. O Brasil possuía, em 2012, 548 mil pessoas presas, com um déficit de vagas de pelo menos 230 mil. É a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia.

“O relatório aponta que o governo brasileiro usa o encarceramento como principal solução para os problemas de segurança pública. O GT da ONU recomenda uma mudança de paradigma, com o uso de mais penas alternativas e de prisão como última alternativa, como exceção”, afirma Vivian. “A ONU constatou diversas violações de direitos graves no nosso sistema carcerário com recomendações concretas de como o Brasil pode melhorar. O ideal seria que o país, como um membro do Conselho de Direito Humanos das Nações Unidas, implementasse essas recomendações.”

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