Uso medicinal

À espera de decisão, pacientes buscam alternativa para tratamento à base de cannabis

Definição da Anvisa sobre produção de medicamentos com substâncias derivadas da maconha é esperada ainda este ano. Em Brasília, criança é tratada desde novembro do ano passado com sucesso

Bruno Peres/RBA

Katiele foi a primeira mãe a obter autorização ma Justiça para ministrar à filha remédio à base de cannabis

Brasília – Quem chega na casa verde do condomínio Taquari, em Brasília, encontra a paisagista Katiele Bortoli, uma moça de temperamento comunicativo que costuma receber a todos, com um sorriso no rosto. Na verdade, essa atitude positiva de Katiele foi uma opção que resolveu adotar depois do nascimento da segunda filha, Anny, portadora de uma síndrome rara – a CDKL 5, que provoca crises convulsivas e atraso neuropsicomotor.  Em razão dos problemas da caçula, Katiele e o marido foram o primeiro casal a obter, na Justiça, autorização provisória para ministrar à menina um remédio à base da planta cannabis sativa, a popular maconha.

O medicamento é o CBD, feito com uma substância chamada cannabidiol, que é originária da cannabis. Nos Estados Unidos, é vendido livremente como suplemento alimentar, mas, no Brasil, tem uso proibido. Depois de ter procurado médicos de todo o país e tentar diversos tipos de tratamento, o casal resolveu lançar mão do CBD, após ser informado dos efeitos benéficos do produto para portadores dessa síndrome por intermédio de um grupo de pais no Facebook.

A primeira compra, feita mediante dosagem orientada por um pai americano que ministrava o remédio em sua filha com o mesmo problema, foi feita por um amigo de Katiele que mora nos Estados Unidos. O medicamento foi trazido de forma ilegal. De imediato já levou Anny a cessar com as convulsões nas primeiras nove semanas de uso.

O envio do remédio para os pais de Anny terminou sendo barrado, poucos meses depois, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). E, como o casal já tinha procurado um advogado para tentar acabar com a situação de ilegalidade e solicitar formalmente a compra do medicamento, Katiele e o marido impetraram ação judicial explicando o caso. Foi quando obtiveram, em abril passado, a liminar provisória da Justiça Federal para continuar utilizando o CBD.

Só uso medicinal

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Katiele com as filhas Anny e Júlia

Tanto o marido, o bancário e professor Norberto Fischer, como Katiele – que deixou de trabalhar para cuidar da casa e dar atenção integral às filhas em razão do problema de Anny – foram criados numa família com padrões conservadores. “Quando lemos num grupo de pais do Facebook essa informação, ficamos de início surpresos, como outras pessoas ficariam. Mas depois nos desarmamos, porque já tínhamos tentado de tudo com a Anny”, contou Katiele.

Ela já chegou, inclusive, a conversar com parlamentares, na Câmara dos Deputados, sobre projeto de lei autorizando o uso medicinal da planta e teve a vida da família mostrada por vários veículos de comunicação por conta do uso do medicamento na filha. Mas deixa claro que não se envolve na discussão sobre a liberação ou não da maconha, porque entende que são dois debates diferentes a serem travados.

Katiele enfatizou que não se arrepende de nada na vida: ama as filhas, acha que Anny lhe ajudou a mudar a visão que tinha do mundo e a não se importar com coisas pequenas e, principalmente, está certa de que a decisão de ministrar o produto para sua caçula foi mais do que acertada, pelos benefícios que vem trazendo.

Qualidade de vida

A paisagista acredita que a questão da liberação da planta como lazer é um tema que exige cuidado e amplo debate. “O CBD nos trouxe qualidade de vida, nos trouxe paz. A Anny tinha, em períodos de crise, convulsões a cada duas horas, sendo que nestas convulsões corria risco de vida, sem falar que muitas das convulsões aconteciam à noite. Com o medicamento, essas convulsões pararam. Sabemos que o CBD não vai trazer cura para a síndrome da minha filha, mas trouxe paz para a família inteira”, acentuou.

A maconha possui aproximadamente 400 canabinóides, pelo menos 80 deles com propriedades terapêuticas. Os presnetes em maior quantidade na planta são o CDB e o THC. A diferença dos componentes da cannabis é que eles agem no chamado efeito comitiva, no qual o efeito final é resultado da ação de inúmeras moléculas, atuando juntas no organismo.

“O potencial terapêutico disso é enorme. Essa grande quantidade de moléculas juntas pode ajudar em uma série de doenças porque no corpo ela tem uma característica modulatória de outros sistemas: modula a saciedade, a  ingestão alimentar, a sede, o sono e o comportamento sexual”, afirma o pesquisador de cannabis medicinal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Renato Filev.

Na literatura científica, a cannabis foi descrita como ansiolítico, indutor de sono e anticonvulsivo, usado por isso em casos como o de Anny. Ela ajuda no relaxamento muscular e diminuição de espasmos, o que é benéfico para doenças degenerativas, como esclerose múltipla, esclerose lateral amiotrófica, Alzheimer e Parkinson.

Além disso, o canabidiol pode ativar um receptor específico no cérebro, que evita que suas células morram, retardando a degeneração. Pesquisas mais recentes têm indicado que, nos casos de cânceres cerebrais, substâncias da cannabis podem impedir a formação de vasos sanguíneos que irrigam os tumores, além de induzir as células tumorais à morte.

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‘Nós nos desarmamos, porque já tínhamos tentado de tudo’, diz Katiele

Katiele afirma que quando a filha nasceu, notou que era uma menina diferente da irmã, mas não tinha certeza se Anny tinha problemas. Até que aos 45 dias de nascida a menina teve a primeira convulsão. Foi então que o casal partiu em peregrinação a vários pediatras, neurologistas, geneticistas e outros especialistas para descobrir do que se tratava. A princípio se achou que era um erro metabólico. Só quando a criança tinha quatro anos foi que o médico Charles Lourenço, de Ribeirão Preto, chegou ao diagnóstico, durante uma consulta.

Anny chegou a fazer uma cirurgia para amenizar o quadro, na qual foi instalado nela aparelho semelhante a um marcapasso, a partir do qual um eletrodo que fica preso ao nervo vago (pescoço) envia estímulos para a atividade cerebral. O objetivo da cirurgia foi evitar as convulsões, mas as crises não cessaram.

Transporte e custo

Uma das preocupações do casal, atualmente, é como transporte e custo do medicamento. O processo não é fácil e envolve Receita Federal, Polícia Federal e transportadora. O CBD chega no país com 60% de valo de importação sobre o valor da nota fiscal, mais os 18% de ICMS. No caso de Anny uma seringa de 10 miligramas custa US$ 500. “Estamos estudando as melhores formas de envio de mercadoria, como por meio de carga expressa ou remessa postal, mas isso vai exigir o uso de um despachante”, ressaltou.

Katiele participa de discussões sobre a doença e sobre as melhores formas de tratamento com grupos de pais pela internet, numa maneira de ajudar outras famílias com o mesmo problema que o seu. Também atua, com suas informações, junto à ONG Amavi. Ela disse que até chegou a pensar em abrir uma entidade, mas descobriu que existem muitas já fazendo este tipo de trabalho e de forma eficiente. Sendo assim, entendeu que seria melhor colaborar com as ações das entidades já existentes. A paisagista também é da opinião de que a Anvisa tem um papel importante no país, mas acha o efeito do remédio excelente, assim como os ganhos observados na filha.

A legislação brasileira permite apenas a utilização de componentes químicos da maconha por pedidos médicos, feitos exclusivamente por pessoas jurídicas. Para as pessoas físicas, o acesso a medicamentos à base de cannabis depende de pedido feito à Anvisa e, em determinados casos, medida judicial. Até 14 de julho haviam sido formalizados 28 pedidos de importação excepcional das substâncias na Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Desses, 11 já foram autorizados. O restante aguarda apresentação de documentação do paciente ou análise da área técnica. O pedido mais antigo no processo é de 2 de julho deste ano, segundo o órgão.

Técnicos e diretores da Anvisa discutem a possibilidade de reclassificação das substâncias obtidas da cannabis, que passariam da lista de produtos proibidos para a lista de controlados, exclusivamente para o uso medicinal. A última reunião da Diretoria Colegiada da Anvisa sobre o tema foi em 29 de maio, porém não houve decisão. Os pareceres relacionados estão sob a análise do diretor Jaime Oliveira, que solicitou vista do processo antes de relatar seu voto. Assim, o debate deverá ser retomado em agosto. A agência não discute sobre o uso recreativo da maconha.

“A Anvisa não tem know-how técnico para entender essa questão e trabalha com a política preconizada nas convenções internacionais, que proíbe o uso. É uma incongruência essencialmente política, que foge do escopo científico”, critica Filev, da Unifesp. “É tão incongruente que o componente que causa o barato, chamado TCH, pode ser sintetizado de forma idêntica em laboratório desde o início da década de 2000 e é usado em medicamentos para redução de náuseas e aumento de apetite em pacientes com câncer e aids.”

A jornalista brasiliense Andrea Vieira é outra cidadã que aguarda a autorização da Anvisa para venda de medicamentos que tenham em sua composição produtos derivados da cannabis sativa. Andrea sofre da doença de Crohn, uma doença crônica inflamatória que afeta a área gastrointestinal, normalmente provocada por desregulação do sistema imunológico e que se inicia entre os 20 e os 30 anos de idade. Por conta disso, toma medicamentos disponíveis por um custo alto, como o Pentasa, que não são de todo eficazes para controlar o problema. “Enquanto isso, nos Estados Unidos e outros países, pacientes estão conseguindo 100% de remissão dessa doença incurável com cannabis sativa”, afirmou. “Até quando nós brasileiros vamos ser privados desse tratamento que está melhorando a vida de pessoas com os mais diversos tipos de doença?”

O bom resultado do uso dessa planta para pessoas que possuem a doença de Crohn foi constatado pela especialista em imunologia da Universidade Hebraica de Jerusalém, Ruth Gallily, que realizou vários estudos sobre o tema nos últimos anos. “Na contramão do que se acreditava até então, as substâncias da cannabis que provocam efeitos cognitivos não são exatamente as mesmas que possuem propriedades terapêuticas. O CBD, por exemplo, não gera qualquer fenômeno cognitivo nos pacientes”, afirmou a médica, em entrevista para um site que congrega um grupo de pessoas com a doença de Crohn. Segundo Gallily, as pessoas com Crohn têm apresentado resultados significativos após a prescrição destes medicamentos.

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‘O CBD nos trouxe paz. A Anny tinha convulsões a cada duas horas e corria risco de vida’

Atualmente quatro projetos de lei sobre o uso da maconha tramitam no Congresso Nacional. Um deles foi proposto pelo portal e-cidadania do Senado e recebeu mais de 20 mil assinaturas eletrônicas de apoio à legalização do plantio doméstico e do comércio em locais licenciados. A proposta seguiu, em fevereiro, para a Comissão de Direitos Humanos, com a relatoria do senador Cristovam Buarque (PDT-DF).

Os projetos de lei dos deputados Eurico Junior (PV) e Jean Wyllys (Psol) seguem a mesma linha. O primeiro, protocolado também em fevereiro, propõe a legalização e a regulamentação do cultivo e da comercialização da maconha, autorizando a plantação em residências e o uso medicinal e recreativo, além de prever mecanismos para o poder público monitorar a produção da erva. A proposta de Jean Wyllys, protocolada em março, autoriza a produção e venda de maconha no país e cria o Conselho Nacional de Assessoria, Pesquisa e Avaliação para as Políticas sobre Drogas.

Já a proposta do deputado Osmar Terra (PMDB-RS) critica a legalização da maconha e acredita que é preciso limitar o consumo de drogas lícitas e não legalizar as ilícitas. “A maconha causa dependência, psicose e problemas graves de saúde a médio e longo prazo, como retardo mental”, argumentou para a Agência Câmara.

“Há um viés ideológico que influencia no debate, diferente do que acontece com outras drogas, com efeitos semelhantes. O uso abusivo pode gerar efeitos adversos, como com qualquer substância”, afirmou o pesquisador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, Lucas Maia, que defende que faltam pesquisas na área.

O caminho da proibição

Os primeiros registros de uso de cannabis datam de 8 mil anos antes de Cristo, na China, sendo que a apropriação da planta para fins medicinais teve início 2.700 anos antes de Cristo, usada como analgésico, anticonvulsivante, sonífero, tranquilizante e controlador de espasmos. Da China a maconha se espalhou pela Índia, Tibete, Síria e África, de onde foi levada pelos escravos para a América e para a Europa, apenas no século 19.

Havia na época a concepção médica de que os negros – então os principais usuários de maconha – eram mais doentes, débeis e menos desenvolvidos. Especialistas em saúde e Direito passaram a defender que o uso da maconha aumentava a capacidade de cometer crimes.

Com a evolução de pesquisas consideradas comprometidas em comprovar malefícios da maconha, a Organização das Nações Unidas classificou, em 1961, a planta como uma droga, motivando a proibição e a criminalização em diversos país, inclusive para uso medicinal. “A escravidão foi ruim para os negros, mas também para os brancos, que perderam e criminalizaram hábitos dos negros”, comenta o pesquisador sobre uso histórico de cannabis, Rafael Morato Zanatt.

Atualmente, alguns países voltaram atrás e legalizaram o uso recreativo ou medicinal, entre eles Uruguai, Portugal e Holanda, além de Israel, onde as pesquisas médicas sobre a planta são mais avançadas. Nos Estados Unidos, 23 estados já legalizaram o uso da maconha para fins recreativos ou medicinais. O último deles foi o Colorado, há seis meses. Uma pesquisa divulgada em junho mostra que a partir da legalização a arrecadação de impostos aumentou em US$ 10 milhões, que 10 mil empregos diretos foram criados e que houve redução significativa na criminalidade.

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