Telecomunicações

Medidas do governo aumentam infraestrutura, mas não impedem espionagem

Mesmo com satélite, cabos submarinos e redes de fibra ótica nacionais, bisbilhotagem continuaria sendo possível graças à natureza da rede e presença de empresas estrangeiras

José Cruz/Agência Senado

“Paulo Bernardo tem visão de telecom dos anos 1980”, diz ativista do software livre

São Paulo – As medidas anunciadas pelo governo para defender o país da espionagem cibernética são importantes para o desenvolvimento de nossa tecnologia, mas dificilmente poderão deter a bisbilhotagem internacional. Lançamento de satélite próprio, instalação de servidores, construção de cabos submarinos e novas redes de fibra ótica ampliariam a autonomia do Brasil em telecomunicações, mas nada disso seria, por si só, capaz de frear o monitoramento de dados pelos órgãos de inteligência dos Estados Unidos.

De acordo com especialistas ouvidos pela RBA, o vigilantismo continuaria sendo possível, nos moldes denunciados pelo ex-técnico da CIA Edward Snowden, graças à própria natureza da rede, que está globalmente interligada, pela massiva presença de empresas estrangeiras operando no mercado brasileiro de internet e pelos hábitos de uso dos internautas, que priorizam programas, aplicativos e equipamentos norte-americanos.

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Documentos desclassificados por Snowden, e publicados pelo diário carioca O Globo no início do mês, pegaram as autoridades federais de calças curtas. Há algumas semanas envolvidos em costuras políticas que pudessem responder às manifestações de junho, e minimizar o desgaste popular da administração petista, os ministros e a própria presidenta da República se apressaram em reafirmar a soberania do país. “É uma violação”, reagiu Dilma Rousseff. Também anunciaram medidas para frear o monitoramento de dados produzidos por empresas, instituições e cidadãos em território nacional.

Essa pressa, dizem especialistas, produziu um corolário de declarações ora disparatadas, ora interessantes, mas que não exatamente miram no enfrentamento à espionagem cibernética nem representam garantias de segurança digital. “Quem orientou o governo não conhece muito sobre o funcionamento da internet”, avalia o ativista digital Marcelo Branco, 52 anos, um dos criadores da Campus Party, que há três décadas trabalha com tecnologia da informação.

Pouco depois das denúncias de O Globo, os ministros das Relações Exteriores, Antonio Patriota, da Defesa, Celso Amorim, e das Comunicações, Paulo Bernardo, foram convidados por deputados e senadores para prestar esclarecimentos sobre o nível de preparação do país para enfrentar a interceptação de dados. Além de reconhecerem a vulnerabilidade brasileira, as autoridades anunciaram uma série de medidas – até agora as únicas elencadas pelo poder público para enfrentar a espionagem.

Promiscuidade

A maior ênfase do governo está no “breve” lançamento de um satélite geoestacionário “genuinamente” nacional para substituir o aparato atualmente em uso pelo país, que um dia fora administrado pelo Estado, mas que em 1999 acabou sendo vendido a executivos norte-americanos na onda de privatizações provocadas por Fernando Henrique Cardoso. Hoje, pertence a uma empresa de capital misto chamada America Movil, propriedade do homem mais rico do mundo, segundo a revista Forbes: o mexicano Carlos Slim.

“Isso traz um desconforto, que as forças armadas sempre alegam, pois todas as comunicações estratégicas do país são viabilizadas por empresas privadas estrangeiras. Além disso, os valores de uso estão sempre aumentando de acordo com os preços do mercado e estourando o orçamento”, explicou Paulo Bernardo aos parlamentares no último dia 11. “Nosso satélite deve ser lançado em 2016 e vai operar em banda X, de uso exclusivo da defesa, e banda K, para comunicações em banda larga, em todo o território nacional.” O próprio ministro admite, porém, que o mero lançamento de um satélite não garante que as informações brasileiras estarão asseguradas. “Temos que construir tudo isso pensando nas recentes revelações, mas, quando você lida com comunicações internacionais, é evidente que você fica sujeito a qualquer intervenção.”

“Construir e colocar em órbita um satélite brasileiro pode ser muito bacana para o desenvolvimento científico nacional, mas não resolve o problema da espionagem”, complementa Marcelo Branco, para quem os satélites são a versão tecnológica da promiscuidade. “Eles espalham sinais indiscriminadamente. Qualquer ponto que esteja ao alcance desse sinal pode atacá-lo e espionar as informações.” As ressalvas se confirmam com as declarações do ministro da Defesa proferidas no Congresso no dia 10, que apontam para a dependência tecnológica do país. “Não temos um sistema brasileiro que possa proteger as redes por onde circulam as informações”, reconheceu Amorim. “As ferramentas que existem são todas estrangeiras.”

De acordo com Celso Amorim, a empresa responsável por administrar o satélite brasileiro chama-se Visiona Tecnologia Espacial S.A., uma fusão entre a estatal de telecomunicações Telebras e uma das maiores indústrias aeronáuticas do mundo, a Embraer, sediada em São José dos Campos (SP). Apesar disso, e ao contrário do que sugere o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, o aparato que brevemente entrará em órbita não será 100% brasileiro. “Hoje em dia, a maior parte dos equipamentos e softwares usados no país não é nacional. Nossa ideia é que, no momento seguinte, possamos ter equipamentos brasileiros também dentro do satélite. É uma área que exige investimentos redobrados.”

Operadoras

De acordo com especialistas, a presença massiva de companhias estrangeiras na operação das telecomunicações brasileiras é o nó górdio da proteção dos dados produzidos pelo país. Vivo, Claro, Oi, Tim, Sky, Net, Embratel, Nextel e GVT são todas – ou têm participação – estrangeiras. “Essa é a grande questão: a maioria das operadores de internet e telefonia do país não é nacional”, explica Dalton Martins, professor de análise de rede na Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (Fatec) e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). “Apesar de terem sede em nosso território e estarem sob nossa legislação, elas tendem politicamente a favorecer seus proprietários ou seus países de origem sempre quando for preciso.”

O problema fica ainda mais complexo se lembramos que a internet trabalha com computadores interligados entre si ao redor do mundo – e que essa interatividade em algum momento necessitará dos serviços de alguma operadora privada de telecomunicação. “Podemos ter uma infraestrutura própria de rede para garantir a inviolabilidade do tráfego de dados entre dois órgãos governamentais”, continua Martins. “Mas, se em algum momento esses dados passarem, por exemplo, por uma conexão 3G ou banda larga, que está nas mãos de empresas estrangeiras, essa informação é passível de ser rastreada.” O professor da Fatec lembra que as linhas telefônicas usadas pelo governo pertencem às operadoras. “As ligações caem na rede comum e podem ser interceptadas”, diz. “Estamos nas mãos de empresas que não têm interesses apenas no Brasil.”

Por isso, a construção de cabos submarinos e redes de fibra ótica nacionais – outro anúncio feito pelo ministro das Comunicações durante audiência no Congresso – tampouco seria efetiva para impedir a espionagem. De acordo com Paulo Bernardo, o governo federal está patrocinando a construção de três novas estruturas para transmissão de dados digitais: uma para os Estados Unidos, “extremamente necessária devido ao tráfego, que é grande”, outra para a Europa, “que não temos ainda”, e mais uma para a África, “saindo de Fortaleza até Angola”. Os cabos serão construídos pela Telebras. “Em 2017 podemos ter um estrangulamento no nível de tráfego internacional”, justifica o ministro. “A internet vai crescer 16 vezes no país nos próximos quatro anos.”

Além das ligações submarinas, o titular das Comunicações afirmou que o Brasil está construindo redes de fibra ótica até Assunção, no Paraguai, a exemplo do que já foi feito com o Uruguai. “Vamos com a Telebras chegar ao Acre até setembro e, de lá, poderemos nos conectar com o Peru. Estamos também discutindo conexões com a Guiana pelo Amapá”, continuou. “Assim poderemos fazer tráfego regional diretamente, sem passar pelos Estados Unidos ou Europa. Isso significa mais rapidez e menos custos.”

Soberania

Como o próprio Paulo Bernardo deixa subentendido, porém, essas medidas de infraestrutura visam a resolver um problema de saturação das redes disponíveis no país – e pouco têm a ver com segurança. “A ideia é construir soberania nacional, mas há uma visão romântica nisso”, avalia Sady Jacques, analista de sistema da Companhia de Processamento de Dados do Estado do Rio Grande do Sul (Procergs), que trabalha com tecnologia da informação há 26 anos. “Funcionariam se o Brasil ficasse isolado da internet, mas isso não vai nem deve acontecer.”

Os argumentos do especialista gaúcho são secundados pelas opiniões de Marcelo Branco. “São medidas muito focadas na visão telecom dos anos 1980, que é a visão do ministro Paulo Bernardo: cabo, estrutura, satélite. Colocou-se um discurso nacionalista, que é bom, mas não para resolver o problema da espionagem. A segurança está mais embaixo.” Para o sociólogo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro do Comitê Gestor da Internet (CGI), os interesses empresariais predominam. “As operadoras têm acordos que não controlamos”, reforça. “Toda vez que nossos dados passarem pelas redes norte-americanas, eles serão entregues à inteligência e devassados.”

Ainda que pudéssemos imaginar um cenário fictício, em que fossem nacionais todas as linhas, cabos e satélites utilizados pelos brasileiros que se comunicam pela internet e pelo telefone, e todas as empresas de telecom em operação no país fossem administradas por capital brasileiro, nem assim seria possível impedir que os dados circulassem por redes estrangeiras. Ainda assim, a espionagem poderia continuar ocorrendo. “Isso não evita que nossas informações trafeguem pelos bancos de dados de Microsoft, Apple, Google ou Facebook”, explica Dalton Martins. “Nós e o mundo inteiro usamos sistemas de informação majoritariamente norte-americanos.”

Por isso mesmo, tampouco seria efetiva a ideia de armazenar em grandes servidores instalados no país os dados de navegação produzidos pelos brasileiros. Essa foi outra proposta anunciada pelo ministro das Comunicações, e que deve figurar nas alterações ao projeto de lei do Marco Civil da Internet que o governo está finalizando. “Isso pode ser bom economicamente, mas não adianta”, pontua Sérgio Amadeu. “Os arquivos do Google podem até ficar armazenados no Brasil, mas sempre serão acessíveis à matriz da empresa.”

Amadeu lembra ainda que a maioria dos internautas do país está conectada às redes sociais estrangeiras, com destaque para o Facebook, preferida por 70% dos brasileiros, segundo pesquisa CNT/MDA divulgada há pouco mais de uma semana. Além disso, a maioria de nós – cidadãos, empresas e governos – ainda utiliza programas de código fechado, como Windows e Macintosh, além de equipamentos com um dispositivo chamado backdoor, cuja instalação é obrigatória pelas leis dos Estados Unidos.

“Satélite nacional e cabos submarinos controlados pelo país só agregariam efeito neutralizador do vigilantismo global quando as duas pontas de uma comunicação internacional estiverem operando com computadores protegíveis, ou seja, com software livre sanitizado de backdoors para conexões corretamente criptografadas”, orienta Pedro Rezende, professor de segurança de rede da Universidade de Brasília (UnB). “Mas isso ainda não é possível aqui, devido à privatização total da infraestrutura de telecomunicações. As medidas anunciadas têm grande chance de ser, sozinhas, na prática, inócuas ou irrisórias, no máximo apenas encarecendo um pouco a bisbilhotagem desbragada.”

Governança

As únicas providências tomadas pelo governo brasileiro que, segundo especialistas, podem surtir efeito sobre a espionagem de dados pela internet foram anunciadas pelo ministro das Relações Exteriores. “Promoveremos no âmbito da União Internacional de Telecomunicações (UIT), em Genebra, o aperfeiçoamento de regras multilaterais sobre segurança”, mencionou o ministro Antonio Patriota. “Também lançaremos nas Nações Unidas iniciativas para proibir abusos e impedir a invasão de privacidade dos usuários das redes virtuais, estabelecendo normas claras de comportamento dos Estados na área de comunicações para garantir uma segurança cibernética que preserve o direito dos cidadãos e a soberania dos países.”

As declarações do chanceler sugerem que o Itamaraty está disposto a comprar uma briga bastante grande com os Estados Unidos e seus aliados ao advogar por uma governança compartilhada da internet, que se concentra na maior potência do planeta, onde nasceu e se desenvolveu, e obedece prioritariamente à legislação norte-americana sobre todas as outras. “É uma questão que enfrenta resistências consideráveis para ser multilateralizada”, avalia Patriota, acreditando que as revelações de Edward Snowden desgastaram Washington. “Agora temos novos elementos e uma alteração no quadro político em função das denúncias que afetaram países da Europa e América Latina.”

“Precisamos de um conjunto de ações pra minimizar a força e influência das empresas de telecomunicação, cujo poder econômico é desigual, assim como é desigual o poder político e militar dos Estados Unidos”, analisa Sady Jacques. “Mudar as regras do jogo não será trivial: a internet deve ter outro espaço jurídico, com legislação internacional específica que garanta a segurança e soberania de todos. E isso não está pautado hoje, nem de longe. Levantar essa bandeira junto à ONU coloca o Brasil numa posição de liderança e pode vir a trazer mudanças importantes. Quem sabe dentro de alguns anos poderemos ter uma internet mais democrática.”

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