Viagem

Nova Caledônia, a ilha que fica logo ali, no fim do mundo

Depois de mais de 150 anos de colonização francesa, o arquipélago pode passar a ser dono de suas riquezas, de sua beleza, e resgatar a força de sua cultura milenar

Os Kanaki estão presentes na Nova Caledônia há cerca de 3 mil anos <span>(Foto Celso Maldos)</span>A arquitetura do Centro Cultural Tjibaou é inspirada nas casas dos nativos  <span>(Foto David Becker/Acervo Centro Cultural Tjibaou)</span>Crianças e músicos indígenas Kanaki, a população original, de diferentes lugares da(s) ilha(s) celebram durante dez dias em oficinas de teatro, música, dança, produção de instrumentos musicais e vídeos <span>(Foto Celso Maldos)</span>Com uma barreira de corais de 1.600 quilômetros, um oceano verde-esmeralda, basta uma simples máscara com canudo para ver as mais diversas e coloridas espécies marinhas <span>(Foto Philippe Miot/Flickr/CC)</span>Jean-Marie Tjibaou, líder popular assassinado em 1989 <span>(Foto Acervo Centro Cultural Tjibaou)</span>Criança indígena Kanaki <span>(Foto Celso Maldos)</span>

Agora, na Nova Caledônia são exatamente 13 horas mais tarde que em Brasília. O arquipélago é possivelmente a colônia mais distante de sua “metrópole”, Paris, a quase 17 mil quilômetros. Não é exagero, portanto, dizer que fica mais ou menos próxima do “fim do mundo”. Estima-se que a região seja habitada há cerca de 3 mil anos. E até hoje resgata, em eventos musicais anuais chamados DK Festival, raízes de sua cultura tradicional.

A reportagem esteve lá no início deste ano. Crianças e músicos indígenas Kanaki, a população original, de diferentes lugares das ilhas, celebram durante dez dias em oficinas de teatro, música, escultura, dança, produção de instrumentos musicais e vídeos.

A paisagem impressiona. Em alguns lugares, se assemelha à da Serra do Mar, no litoral norte de São Paulo. Afinal, ali também passa o Trópico de Capricórnio. O arquipélago foi declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. A terra, 1.500 quilômetros a leste da costa australiana e 2 mil quilômetros ao norte da Nova Zelândia, foi “encontrada” por navegadores ingleses no século 18 e batizada Nova Caledônia (em latin “Nova Escócia”). No século 19, prevalece a colonização comandada por Paris. Portanto, o francês é a língua oficial, embora o idioma kanaki seja falado em toda parte, com algumas centenas de variações e dialetos.

Em 1853 é fundada e capital, Numea, e em 1866 os franceses começam a usar o lugar para enviar presos políticos após os eventos da Comuna de Paris. O processo de colonização é complicado. Em 1931, um grupo de Kanaki é exposto como canibais, dentro de caixas, por ocasião da Exposição Colonial Internacional na França. Já durante a Segunda Guerra, a população local apoia os franceses contra a ocupação alemã e Numea torna-se base estratégica na batalha contra os japoneses, aliados dos nazistas.

Além da posição geográfica, a Nova Caledônia atrai por suas gigantescas minas de níquel, hoje pertencentes a grandes empresas canadenses, multinacionais e à brasileira Vale, que tem ali seu maior investimento no exterior. A mineradora paralisou no ano passado sua unidade de produção de ácido sulfúrico, após vazamento do produto, usado no tratamento do níquel.

Na década de 1980, a luta pela independência levou a divisões políticas internas que chegaram ao nível de guerra civil. O líder popular Jean-Marie Tjibaou, pacifista convicto, foi assassinado em 1989 por um de seus pares que viam no confronto armado o único caminho para conquistar a independência. Tjibaou dá nome ao impressionante centro cultural projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano (coautor do Centro George Pompidou, em Paris) e tem uma história incomum. Adepto da não violência, como Ghandi, foi dado a um padre aos 6 anos, estudou na França com o famoso antropólogo e filósofo Claude Lévi-Strauss e voltou para resgatar a autoestima e a cultura de seu povo.

A presença de sua memória é grande e estimula a preservação da cultura Kanaki, asfixiada nesses 150 anos de colônia. Entre as atividades dos festivais, há fortes movimentos de resgate de saberes, da mitologia, da agricultura, da dança, do conhecimento da floresta, da culinária, da vida kanaki. Caminhar na floresta acompanhado de quem conhece seus segredos é uma experiência única.

Eles sabem obter água depositada em algumas espécies, extrair cascas de árvores para produzir instrumentos sem ferir o tronco, escolher diferentes tipos de bambu para fazer objetos de percussão ou flautas. Preservam o cultivo ancestral de maçã, batata-doce e inhame. Tudo é um aprendizado. Ali, onde são comuns furacões e tsunamis, chama atenção a técnica da construção das casas, redondas, de taipa, com telhados cônicos de palha e uma amarração que permite a passagem de fortes ventos.

O mergulho na Nova Caledônia é imperdível. Com uma barreira de corais de 1.600 quilômetros, um oceano verde-esmeralda, basta uma simples máscara e canudo para ver as mais diversas e coloridas espécies marinhas, e, se tiver a sorte de estar acompanhado de mergulhadores Kanaki, em poucos minutos poderá desfrutar uma saborosa salada de peixe cru.

O arquipélago se estende por 19 mil quilômetros e possui a maior lagoa de água salgada do mundo. A Grande Terre é a ilha mais rica e mais povoada, rodeada por grande número de ilhotas. Um músico que conhecemos no festival vinha de uma que não chega a cinco quilômetros quadrados, não tem um único rio e coleta-se água das chuvas para todos os usos.

As escolas têm o mesmo currículo que as da metrópole francesa, não se fala nem se estuda absolutamente nada da história Kanaki. No passado recente, quando fez parte da administração setorial, Jean-Marie Tjibaou implementou no sistema de educação de base métodos muito semelhantes aos do educador brasileiro Paulo Freire.

No início de 2014, a população da Nova Caledônia estará apta a decidir, por meio de um referendo, se quer se tornar um país independente ou se permanece como parte da República Francesa. O mais provável é que até a França, já tendo privatizado as ricas minas de níquel, não se oponha a ter ali um problema a menos a administrar. A aprovação da independência, afinal, não será o fim do mundo.