Democracia?

Trabalhadores da Nissan no Mississipi: sonhos violados

No estado norte-americano do Mississipi, polo da luta por direitos civis nos anos 1960, trabalhadores e comunidade cobram da montadora Nissan democracia e respeito ao direito humano de se organizar

V. Solis/AP Photo/Glow Images
V. Solis/AP Photo/Glow Images
Trabalhadora da linha de montagem da Nissan em Canton, estado do Mississippi

Na noite de 12 de junho de 1963, o presidente norte-americano fazia um discurso na TV. Ele lembrava que a lei da abolição ainda não bastava para fazer os homens “enxergarem” o que é direito. “Enfrentamos uma questão moral: se todos os americanos podem ter direitos e oportunidades iguais”, dizia John Kennedy, admitindo que cidadãos americanos, por ter a pele escura, não podiam comer num restaurante público, pôr os filhos em escola pública, votar nem ter uma vida livre e completa. “Cem anos se passaram desde que Lincoln libertou os escravos, mas seus herdeiros, seu filhos, não são livres dos grilhões da injustiça nem da opressão social e econômica. Este país, apesar de sua esperança e de seu orgulho, nunca será livre até seus cidadãos serem livres.”

Pouco antes da fala de Kennedy, o ex-corretor de seguros Medgar Wiley Evers estacionava na porta de casa num bairro de Jackson, capital do estado do Mississipi. No quarto, sua mulher Myrlie via TV com os três filhos pequenos, Darrell, James Van e Reene. Todos ouviram o estampido. Medgar saía do carro quando a bala acertou-lhe as costas, entrou pela janela, ricocheteou na geladeira, quebrou um bule e estacionou na pia da cozinha.

Medgar Evers era um batalhador. Quando adolescente, andava quilômetros para cursar o ensino médio porque não podia ir no ônibus dos brancos. Mas amava seu país. Em 1943, aos 18 anos, lutou na Segunda Guerra. Voltou sargento, formou-se em Administração e engajou-se na luta pelos direitos da população negra – ao voto, à educação, a frequentar estabelecimentos comerciais, a oportunidades de sonhar o sonho americano.

Nissa Canton (Fotos: Rogelio V. Solis/AP Photo/Glow Images)


Gerente da Nissan em Canton, Dan Bednarzyk, discursa em cerimônia dos 10 anos da unidade, para palmas do governador Phil Bryant (dir). Na pátria mãe do liberalismo, Bryant diz que a presença de um sindicato seria negativa para fábricas da região

Quando morreu, era liderança destacada da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (Naacp, na sigla em inglês), uma das maiores entidades civis do mundo, com mais de 500 mil associados e apoiadores.

Na ocasião do assassinato, seu estado ainda resistia a aplicar a lei federal de 1954 que assegurava direito de voto aos negros, e Medgar liderava uma campanha de boicote a postos de gasolina onde os negros podiam abastecer automóveis, mas ir ao banheiro, não.

O empresário do ramo de fertilizantes Byron De La Beckwith era membro do Conselho de Homens Brancos da cidade e integrante da organização racista Ku Klux Klan. Sabia que a suspeita sobre ele lhe conferiria prestígio na elite branca, e ao mesmo tempo contava com a impunidade. Do outro lado da rua, largou o rifle de mira telescópica no chão e sumiu. No dia do primeiro julgamento, em 1964, do qual saiu livre, um ex-governador o cumprimentou efusivamente no momento em que Myrlie Evers-Williams dava seu testemunho. O crime e a impunidade causaram comoção e manifestações.

A casa de Medgar Evers permanece como estava em junho de 1963 e foi transformada em museu. Sua curadora é Minnie White-Watson, amiga da família que mora até hoje na mesma rua.  “Os vizinhos não os aceitavam, não por não gostar deles, mas porque tinham medo do ativismo. Medgar sabia dos perigos que corria. As crianças não podiam brincar na rua. Os colchões ficavam no chão, por temor de atentados. Até coquetel molotov já foi jogado aqui”, conta.

Território fértil

O Mississipi é famoso por fornecer talentos ao mundo. Entre eles, deuses do blues e do jazz, como Robert Johnson, Muddy Waters, John Lee Hoocker, Lester Young, Bo Diddley, B.B. King. Elvis Presley nasceu e viveu no estado até os 12 anos, antes de se tornar o “rapaz de Memphis, Tennessee” e rei do rock.

O veterano ator Morgan Freeman, a popularíssima entrevistadora Ophra Winfrey e a polêmica Britney Spears também são de lá. Mas não foi a fertilidade cultural e artística do território nem a grandeza de caráter como o de Evers o que atraiu empresas transnacionais à região nas últimas décadas do século 20. O estado que já foi o maior exportador agrícola do século 19 tem hoje a menor renda per capita dos Estados Unidos, cerca de US$ 25 mil por ano.

O ambiente de miséria formado após o fim da escravidão se consolidou com a falta de empregos de qualidade. Progrediram a concentração de renda e a desigualdade social. E a pobreza é território fértil para as más condições de trabalho, com pouca ou nenhuma margem de negociação entre o empregador e os empregados. Para instalar uma fábrica na cidade de Canton em 2003, por exemplo, e ali criar 4 mil postos de trabalho, a montadora japonesa Nissan, controlada pela francesa Renault, obteve do estado subsídios fiscais de US$ 425 milhões e 30 anos de desoneração tributária. Para Daphne, do Instituto Cofo, lutas dos trabalhadores e por direitos civis se integramDaphne - Cofo

Hoje, prestes a se completarem 50 anos da morte de Medgar Evers, organizações estudantis, igrejas, associações comunitárias e parlamentares comprometidos com causas sociais se ocupam de novos desafios, sem perder de vista aqueles provocados pela opressão racial. A luta por direitos humanos como serviços públicos de educação, saúde, cultura ocupa como nunca a agenda dos movimentos do Mississipi. Inclusive a liberdade dos trabalhadores de se organizar por trabalho decente.

Nos Estados Unidos, não há legislação trabalhista consistente. Direitos como férias, licença-maternidade, auxílio-acidente, seguro-saúde, aposentadoria, participação nos resultados, indenização por demissão imotivada, 13º salário – tão elementares para os trabalhadores formais no Brasil – só são possíveis aos norte-americanos em duas situações: por liberalidade da empresa ou por negociação firmada por sindicatos.

“Mas se os direitos não são protegidos por contrato, por meio da negociação coletiva, não há liberalidade que os garanta. Nada define se determinada empresa vai manter, reduzir ou excluir certos direitos quando bem entender”, afirma o diretor do United Auto Workers (UAW) Richard Bensinger, que coordena na região campanha pelo direito à sindicalização na Nissan.

O UAW é o sindicato que representa metalúrgicos dos Estados Unidos, Canadá e Porto Rico. No país de Barack Obama, para que uma entidade seja representante dos funcionários de uma fábrica, a filiação precisa ser referendada por 50% mais um do quadro de pessoal. E, para que essa votação aconteça, tem de ser reivindicada formalmente por pelo menos 30% dos empregados. Não é fácil. Apenas 7% dos trabalhadores do setor privado norte-americano estão protegidos por acordos coletivos firmados entre entidades sindicais e empresas no país. É o mais baixo índice de sindicalização da história é resultado dos ataques aos movimentos desferidos nos últimos 30 anos.

No caso da Nissan, a dificuldade é ainda maior. A montadora, segundo os dirigentes do UAW, mantém um clima ameaçador em suas dependências. E produz uma anticampanha no interior da fábrica em Canton, pela qual dissemina recados intimidadores, do primeiro contato com o RH, no momento da admissão, a reuniões periódicas nos locais de trabalho.

Vagner Freitas Jim Evans João Cayres (Foto: Paulo Donizetti de Souza/RBA)Vagner Freitas (CUT), o deputado Evans e Cayres (CMN-CUT) em frente ao parlamento de Jackson: solidariedade

A prática causa reações iradas no Mississipi, onde a montadora desfruta de agrados tributários. A luta pelo direito à sindicalização une parte dos políticos locais e movimentos sociais. “Queremos apenas o direito a uma eleição limpa e que cada parte expresse seu ponto de vista democraticamente”, diz o deputado estadual Jim Evans, do Partido Democrata.

Medgar estaria aqui

Movimentos de juventude e estudantis põem pilha na campanha. No final de janeiro, o UAW promoveu eventos com a comunidade de Jackson.

Movimentos de juventude e estudantis põem pilha na campanha. No final de janeiro, o UAW promoveu uma semana de eventos com a comunidade de Jackson, que parece abraçar a causa. Das reuniões com vários atores sociais – nas sedes dos Poderes Legislativos locais, em universidades, com estudantes e acadêmicos – participaram os sindicalistas brasileiros Vagner Freitas, presidente da CUT, e João Cayres, secretário de Relações Internacionais da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM-CUT).

O senso de integração está expresso no mote da campanha: Do better together, façamos melhor juntos. “O bem-estar dos trabalhadores está diretamente associado ao bem-estar da comunidade”, afirma a professora Daphne Chamberlain, diretora do instituto Cofo, hoje mantido pela Universidade do Mississipi. “Os trabalhadores merecem fazer valer seu direito humano de se organizar e poder sentar à mesa em seu local e trabalho com o empregador para negociar a solução de conflitos”, diz um documento distribuído por jovens da Aliança Estudantil pela Justiça (SJA).

Universidade de Tougaloo (Foto: Paulo Donizetti de Souza/RBA)


Universidade Tougaloo, em Jackson, ex-fazenda escravocrata, hoje é referência para movimentos sociais e integra estudantes à causa dos trabalhadores da Nissan


Vagner Freitas disse aos estudantes que considera sua participação um exemplo de maturidade. “Não há educação plena se a instituição escolar se descola da realidade. E a luta pelos direitos civis prossegue em outro patamar, quando o estudante de hoje se tornar o trabalhador amanhã. Então, construir um movimento sindical e respeitado também é missão do movimento estudantil”, afirmou o presidente da CUT.

A vice-reitora da Universidade Tougaloo, Betty Parker-Smith, associou o apoio ao movimento à própria história da instituição. Ela lembra que o campus existe há 144 anos, instalado após a Guerra Civil e a derrota dos escravocratas num local que era sede de fazenda escravagista. “Os prédios são os mesmos, e há sangue de afro-americanos em toda parte. Os antigos proprietários devem se revirar no túmulo. Esta escola criada para abrigar jovens recém-colocados em liberdade tornou-se um santuário dos movimentos sociais. Trazer essa luta pelo direito de sindicalização para cá faz parte da preparação dos alunos para o mundo globalizado”, diz Betty.

Danny Glover-Medgar-Minnie (Fotos: Paulo Donizetti de Souza/RBA)


Danny Glover lembrou Medgar Evers, cuja casa virou museu em memória da luta pelos direitos civis; Minnie cuida do acervo

Numa manifestação que lotou o auditório da universidade com mais de 500 pessoas, Cayres, da CMN-CUT, disse que a postura da empresa na região surpreende.

“Existe uma unidade da Renault no Brasil, onde já existe sindicato, e outra da Nissan prestes a ser instalada, onde também já há sindicato. É uma surpresa que nos Estados Unidos, supostamente a maior democracia do mundo, haja esse tipo de restrição”, criticou.

O ator Danny Glover, conhecido por sua atuação em filmes como Máquina Mortífera ou a Cor Púrpura e também por sua participação em causas sociais, era um dos oradores mais esperados no ato da Tougaloo. “Estou aqui para ser parte do que vocês estão fazendo. O movimento prospera com apoio externo. Vocês não estão sós. Eu penso que Medgar Evers, que tinha apenas 37 anos quando morreu, estaria exatamente aqui e agora”, disse.

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Direitos globalizados

Lula e Bob King (Foto: Paulo Donizetti de Souza)
Lula e Bob King, da UAW: “Como se pode falar em democracia e em liberdade se não há liberdade de o trabalhador se organizar?”

“Numa economia globalizada, os direitos também têm de ser globalizados.” Assim o presidente da CUT, Vagner Freitas, justifica o apoio da central ao movimento do UAW.

Para os sindicalistas, a política da Nissan tem de ser vista com apreensão e como ameaça de retrocesso aos padrões da relação capital-trabalho do século 19.

Por isso a briga caminha para uma dimensão internacional. “Se não interrompermos essas estratégias de ataque aos sindicatos nos Estados Unidos, as multinacionais e seus aliados políticos passarão a usá-las em outras economias em desenvolvimento”, alerta o presidente da entidade, Bob King.

Para o professor Lance Compa, da Universidade de Cornell, estado de Nova York, a fábrica está errada. “Em outras regiões onde sindicatos e empresas se relacionam democraticamente, se constroem bons acordos e as empresas vão muito bem”, critica. O professor lembra que a companhia fere princípios básicos de convivência entre empregadores e empregados estabelecidos por organismos como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reúne representantes do capital e do trabalho e de governos, e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), associação de 34 países ricos, com sede na França.

O presidente da CUT lembra que os planos da montadora no Brasil estão associados ao bom momento econômico, com nível de emprego e de renda em alta há dez anos. “Se o momento em nosso país é bom para a estratégia da empresa, será bom também se conseguirmos expandir essa campanha até lá”, diz Freitas. A Força Sindical também participará da próxima reunião internacional programada pelo UAW para este mês de março, no Mississipi, com centrais do mundo todo. A ideia é disseminar as denúncias das práticas autoritárias da Renault-Nissan nos demais mercados consumidores onde atua.

Em Curitiba, onde fica a fábrica da Renault, e em Resende (RJ), onde a Nissan se instalará, os sindicatos locais são ligados à Força. A unidade de Resende terá investimentos de R$ 2,5 bilhões para entrar em atividade em 2014 e meta de produzir 200 mil veículos por ano para elevar sua participação, de menos de 2% para 5%, no mercado brasileiro. “Boa parte desses investimentos sairá de linhas de crédito do BNDES. Será importante conversarmos com o principal banco de fomento do país para que os empréstimos tenham como contrapartida a garantia de trabalho decente, no Brasil e no mundo”, defende o presidente da CUT.

No início de fevereiro, em Washington, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi convidado a fazer o discurso de abertura de uma conferência do UAW. E ganhou um reforço mundialmente respeitado a sua campanha. “Como se pode falar em democracia e em liberdade se não há liberdade de o trabalhador se organizar?”, criticou.

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 Aos que vierem depois

Canton-Mississippi (Foto: Paulo Donzietti de Souza)


Não fosse pelo asfalto no lugar da poeira e pelos automóveis no lugar das diligências, caminhar pelo centro de Canton remeteria a um cenário de filme de caubói.


A população tem menos de 14 mil habitantes e quase um terço trabalha na Nissan. Três em cada quatro funcionários da companhia são negros. A elite mais bem paga reside em casas de alto padrão em condomínios bem ajeitados, enquanto a maioria vive em vilarejos periféricos. O poder político do coronelismo branco também lembra o tempo das diligências.

Lee e Patricia (Foto: Paulo Donizetti de Souza)


Lee e Patricia sabem que podem sofrer represálias, mas preferem agir em vez de esperar acontecer


Recentemente, o governador do Mississipi, o republicano Phil Bryant, teria dito num evento em Oxford que a existência de sindicato tem efeitos negativos para as indústrias automobilísticas na região sul e encorajaria o setor a se opor radicalmente aos processos de sindicalização.

O operário Lee Ruffin, técnico em manutenção na fábrica, sugere que o governador deveria “descer aqui embaixo para trabalhar” e verificar a realidade. Lee chegou a ser acomodado com as condições de trabalho, mas nos últimos anos tornou-se ativo defensor da sindicalização. “As coisas começaram a descer ladeira abaixo”, conta. “Houve perda de benefícios, aumento do valor do seguro-saúde, interrupção de contribuições da empresa ao fundo de pensões e, de outro lado, aceleração do ritmo de trabalho, aumentos dos acidentes e da tensão.”

Lee e sua mulher, Patricia, receberam a reportagem em sua casa. Contam que se tornaram árduos defensores de um processo limpo e democrático para que os empregados decidam por si próprios pela entrada do UAW na fábrica. “Sem um acordo coletivo negociado que tenha força de lei, nossos direitos nunca estarão garantidos. Ontem tinha, hoje não tem. E sem sindicato não há acordo coletivo”, diz Patricia, analista de processos e contratada desde a instalação da fábrica, em 2003. “A empresa insiste que a maioria não quer o sindicato, mas não se expões às urnas.”

Eles se sentem inseguros. “Estou para completar dez anos de casa e prestes a ter direito a duas semanas de férias – quem tem entre cinco e dez anos tem direito a uma. Não duvido nada que mexam com minha contagem de tempo para reduzir minha férias. Sem acordo coletivo, ditam as regras”, preocupa-se Lee.

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Patricia também receia que as atividades do casal provoquem retaliações e isolamento. “Acabamos de comprar esta casa e temos a vida toda pela frente para pagar.” Mas ambos preferem ter lutar a esperar que as coisas aconteçam. “Lutamos por dois grandes sonhos: um é poder se aposentar e ter mais tempo para cuidar do nosso jardim. Mas antes disso queremos alcançar o direito de sindicalizar, para que os que vierem depois tenham maior força e segurança para ir atrás de seus sonhos.”