Festa da cultura sertaneja

A celebração dos vaqueiros, heróis do sertão ainda à espera do reconhecimento

Festa em S. Maria da Boa Vista. Fotos:Jesus Carlos e José Augusto Cíndio)

A Festa do Vaqueiro é um evento popular sertanejo ao mesmo tempo festivo e religioso. É realizada todos os anos, em datas diferentes, nos rincões mais distantes do Nordeste. A de Santa Maria da Boa Vista, no sertão pernambucano, ocorreu agora em maio. Centenas de vaqueiros, com suas armaduras de couro e seus cavalos reluzentes, tomaram conta das ruas.

“A festa é importante porque preserva e valoriza a nossa cultura, além de representar uma justa homenagem aos heróis do sertão, que são os vaqueiros”, destaca José Mendonça Filho, o Mendoncinha, presidente da Associação de Vaqueiros João Barros de Araújo, promotora da festa.

O acontecimento tem origem em uma tragédia: o assassinato de Raimundo Jacó na caatinga de Araripe, em Pernambuco, na madrugada de 8 de julho de 1954. Raimundo foi um dos melhores vaqueiros de sua época.

Quando aboiava, seu canto atraía o gado para perto dele. Era capaz de adivinhar onde dormia e comia cada cabeça de gado sob sua responsabilidade. As qualidades de Raimundo provocaram inveja em um companheiro, também vaqueiro, Miguel Lopes, que o teria assassinado com uma pedrada na cabeça. O crime nunca foi esclarecido. Miguel morreu negando a autoria. Conta-se também que o cachorro de Raimundo acompanhou todo o trajeto do enterro. Depois, ficou guardando o túmulo do dono até morrer. 

Festa vaqueiros 2 (PE). fotos: Jesus Carlos e José Augusto CíndioEm julho de 1971, por iniciativa do padre João Câncio e do músico Luiz Gonzaga, surgiu no município de Serrita, alto sertão pernambucano, a Missa do Vaqueiro. Raimundo virou mito na voz de Gonzagão. “Numa tarde bem tristonha/ Gado muge sem parar/ Lamentando seu vaqueiro/ Que não vem mais aboiar/ Sacudido numa cova/ Desprezado do Senhor/ Só lembrado do cachorro/ Que inda chora sua dor/ É demais tanta dor…” Não demorou muito e a missa passou a atrair milhares de vaqueiros, que, com seus gibões e os chapéus de couro, a intimidade com as montarias e as músicas típicas do sertão, deram um toque de festa ao evento religioso.

Em Santa Maria da Boa Vista não foi diferente. Carregando com orgulho as bandeiras do Brasil, de Pernambuco e da cidade de 40 mil habitantes às margens do Rio São Francisco, centenas de vaqueiros “encourados” desfilaram, sob os aplausos da multidão, até a Igreja Nossa Senhora Imaculada Conceição, onde foi reverenciada a memória não só de Raimundo Jacó, mas dos vaqueiros que morreram recentemente.

Toda a liturgia é baseada na vida desses heróis, que assistem à celebração montados nos cavalos. O padre Xavier, vigário de Santa Maria, transforma a homilia num credo. “Creio na realidade sertaneja, sua cultura e seus valores sociais…” No ofertório, os vaqueiros, um a um, depositam seus instrumentos de trabalho em frente ao altar: gibão, perneira, arreios, assim por diante. Ao final, comungam pedaços de rapadura e queijo.

Que nem jumento 

Raimundo Nonato de Souza Pereira, o “Nonato do Neco”, 60 anos, vice-presidente da Associação de Vaqueiros João Barros de Araújo, conhece bem o ofício, mas não se ilude. “O trabalho do vaqueiro só é reconhecido quando ele ainda é novo. Depois de velho, o patrão não dá cobertura e, então, o vaqueiro pode morrer na beira da estrada que nem jumento. O vaqueiro já nasce sofrendo.”

O desabafo se justifica. Embora a figura do vaqueiro tenha se originado a partir da expansão da pecuária sertão adentro, lá pelos confins do século 17, até hoje a profissão não foi reconhecida. “Não conheço nenhum vaqueiro com carteira assinada”, diz Nonato, sem disfarçar a ironia. “Hoje, a gente se aposenta como lavrador, e não como vaqueiro, profissão que a gente exerce a vida inteira.”

Em 2003, uma comissão esteve com o presidente Lula para pedir o reconhecimento da profissão. “Ele nos disse que, se dependesse dele, a questão seria resolvida na hora. Até agora, nada.” De acordo com Nonato, a regulamentação pode ser feita seguindo o mesmo modelo adotado para a profissão de pescador. “Durante o período do defeso, época de reprodução quando a pesca fica proibida, os pescadores recebem o seguro-desemprego, que ajuda na sobrevivência deles. O mesmo poderia ser feito com os vaqueiros no período das secas, quando falta serviço e ficamos completamente abandonados”, explica.

Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que regulamenta a profissão. Pelo texto, considera-se vaqueiro “o profissional que trata, faz o manejo e a condução de bovinos, bubalinos, equinos, muares, caprinos e ovinos”.

A proposta define “trato e manejo” como os cuidados que o vaqueiro deve ter com os animais sob sua responsabilidade, garantindo que não sejam submetidos a atos de violência e recebam alimentação adequada e atendimento à saúde. Também inclui na categoria de vaqueiro o profissional que presta consultoria técnica relacionada a questões de meio ambiente.

“Essa demora acaba desanimando os vaqueiros. Quando fundamos a Associação de Vaqueiros aqui em Santa Maria, tínhamos cerca de 400 associados. Hoje restam apenas uns trinta e poucos”, lamenta.

Vaqueiro José Manoel junho 2011 (fotos: Jesus Carlos e José Augusto Cíndio)

“Bom mesmo era o meu cavalo”

José Manoel de Oliveira, o “Zé Ribeiro”, 95 anos, é o decano dos vaqueiros da região. Apesar da ponte de safena e da “fraqueza” nas pernas, faz questão de comparecer a todas as festas. “O senhor quer saber? Nunca fui um bom vaqueiro. Bom mesmo era o meu cavalo. Quando ele percebia uma árvore mais alta pela frente, baixava a cabeça e me livrava do perigo”, conta. Viúvo, Zé Ribeiro diz que não fica sem dar suas voltinhas. “Nunca deixei de gostar de mulher. Afinal, não tô cego nem tô doido.” O velho só lamenta a falta de conhecimento das coisas da caatinga pelas gerações mais novas. “Vaqueiro bom não passa fome no meio da caatinga. É só cortar uns pés de xique-xique, assar na brasa e comer com mel de abelha. A moçada de hoje não sabe fazer isso.”