300 anos de grandeza

As histórias centenárias de Assis Valente, Nelson Cavaquinho e Mário Lago não se misturam. Somam-se

Nelso, Lago e Assis foram gênios de sua época (Ilustração: Vicente Mendonça)

Se vivos fossem, os três continuariam desafiando o coro dos contentes e subvertendo a linha evolutiva da MPB. Boêmios, controversos e geniais, Nelson Cavaquinho, Assis Valente e Mário Lago estariam completando 100 anos neste final de 2011. A reportagem da Revista do Brasil ouviu especialistas para entender a real importância do trio para a cultura nacional e o quanto ele continua influenciando o imaginário artístico brasileiro.

Há quem diga que se Cartola é o “Pelé do samba”, pelas harmonias e letras irretocáveis e pelo imenso apelo popular, Nelson Cavaquinho só pode ser comparado a Garrincha. Sim, Nelson adorava uma boa birita, mas não é por aí. A comparação se dá pela naturalidade com que o sambista transgredia. Assim como as pernas tortas e o drible de Mané, o violão tocado por Nelson nada tinha de previsível. Enquanto as rosas de Cartola exalavam o perfume da mulher amada, Cavaquinho destilava toda a sua mágoa em A Flor e o Espinho: “Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor”. Genial.

Nelson era um boêmio inveterado, capaz de passar semanas rodando de bar em bar, com o violão a tiracolo

Produtor musical, criador do programa Ensaio, da TV Cultura, Fernando Faro conviveu de perto com Nelson Cavaquinho. Faro conta que Nelson era o sujeito mais imprevisível que ele conheceu, um boêmio inveterado, capaz de passar semanas rodando de bar em bar, com o violão a tiracolo, sem dia para voltar. Não tinha compromisso com nada e tampouco noção de sua genialidade (Garrincha puro).

E passou boa parte da vida vendendo composições de sua autoria em troca de “dois mil réis”. “Um dia o encontrei e comecei a cantarolar uma música que havia sido gravada pela Isaurinha Garcia. Ele parou, arregalou os olhos e disse: ‘Nossa, que música bonitinha, de quem é?’ ‘Do Nelson Antônio da Silva’, respondi. E ele: ‘Mas o Nelson Antônio da Silva sou eu’.” Para Faro, em cada samba composto, em cada lágrima rolada, há um pouco de Nelson Cavaquinho. “É impossível calcular sua influência no samba de hoje.”

Valente   

Assis Valente também não era dado a convenções. O compositor baiano não entrou para a história da música popular apenas pelos seus clássicos, todos imortais (Brasil Pandeiro, Camisa Listrada, Boas Festas), mas também pela maneira conflituosa com que combateu a hipocrisia da sociedade. Negro, pobre e homossexual, o sambista lutou a vida inteira para ser reconhecido como o grande compositor que era, livre de preconceitos. Nem sempre conseguiu.

Assis Valente não entrou para a história da música popular apenas pelos seus clássicos, mas também pela maneira conflituosa com que combateu a hipocrisia da sociedade

Suas letras, alegres e festivas (“Brasil, esquentai vossos pandeiros/ iluminai os terreiros que nós queremos sambar”), não combinavam com a forma trágica como viveu. Tentou suicídio por quatro vezes. Na primeira, atirou-se do alto do Corcovado, sob a bênção do Cristo Redentor – acabou salvo pelos bombeiros, quebrando apenas algumas costelas. Só conseguiu tirar a própria vida em 1958, ao ingerir guaraná com formicida. Tinha 50 anos.

O jornalista e escritor Gonçalo Júnior acaba de assinar contrato com a editora Record para lançar a biografia definitiva do compositor baiano. Com o livro Quem Samba Tem Alegria – A Vida e a Música de Assis Valente, espera que a obra de Assis seja reconhecida à altura de sua importância e muitas lendas em torno de sua figura sejam enterradas. “Ele foi um compositor dos mais sofisticados e refinados, que deu à música popular brasileira uma densidade temática pioneira”, diz o escritor. Para Gonçalo, a questão da homossexualidade nunca foi muito bem resolvida por Assis. “Só porque ele cantava, em primeira pessoa, o drama de muitas mulheres? Se for assim, Chico Buarque também é gay.”

Duas canções de Assis Valente, ambas autobiográficas, são espelho fiel de sua personalidade, na opinião de Gonçalo: Cai, Cai, Balão e Alegria. “Elas contrapõem a alegria do samba e do Carnaval às tristezas e mazelas do dia a dia.” Em Alegria, por exemplo, o sambista resume sua melancolia no verso: “Vou cantando, fingindo alegria/ para a humanidade não me ver chorar”.

Mário Lago, em papo e prosa

Mário não morreu amargurado, muito menos esquecido. Era um homem muito bem resolvido, ciente de seus talentos e de suas poucas limitações. Fazia de tudo com imensa classe. Compositor invejável, poeta vigoroso, ator versátil, era dessas unanimidades incontestáveis. Não que não tenha tido suas desilusões. Sobretudo políticas. “Ele era um socialista de formação e passou a vida insatisfeito com os rumos do país”, diz o jornalista e crítico musical Jairo Severiano. 

Lago dizia que a abordagem de Amélia não é de gênero, pois também existe o “amélio”. O tema fala de um estado de amor, não de submissão

Filiado ao antigo PCB, o artista sempre foi um militante engajado, mas sua posição ideológica não era refletida nas letras. Não fez canções de protesto, mas em compensação entrou para a história como autor de letras comportamentais, como Ai, Que Saudades da Amélia (em parceria com Ataulfo Alves), muitas vezes contestada como exacerbação do politicamente incorreto, mas sempre defendida pelo compositor como uma singela crônica de confrontação da consumista fútil com a mulher parceira, cúmplice, solidária.

Em entrevista, chegou a dizer que abordagem não é de gênero, pois também existe o “amélio” para explicar que o tema é um estado de amor, não de submissão.

Severiano e ele foram amigos viscerais. Querido pelos colegas e parceiros, Mário Lago só se tornava “desleal” quando uma conquista amorosa estava em jogo, como lembra o jornalista, em referência ao “roubo”, pelo sambista, de uma das maiores paixões da vida de Noel Rosa, a dançarina Ceci. Noel ainda tentou dar o troco, reconquistar a amante (ele era casado e Lago, solteiro), mas a tuberculose o consumiu. Quando o coração de uma mulher estava em jogo, Lago “não era solidário nem no câncer”.

Severiano conta que ele não poupou nem mesmo o amigo Custódio Mesquita (seu parceiro em clássicos como Enquanto Houver Saudade e Nada Além), famoso pela boa-pinta e pelo jeitão sedutor. Mas não era páreo para Lago, que ganhou todas as disputas com o parceiro e não tinha nenhuma dificuldade moral ou remorso em fazer o papel de “ladrão amoroso”. Ai, meu Deus, que saudade de Mário Lago.