De previsões e oportunismos

Alarmismo com os números tenta contaminar campanhas por melhores salários

No mundo hermético e misterioso das previsões econômicas, passou praticamente batida a crise financeira que abalou o mundo em 2008. Talvez por isso o economista Nouriel Roubini, tido como o único a prever a crise, tenha sido chamado de “doutor apocalipse”. Ao comentar aquele período, um importante especialista de um grande banco brasileiro chegou a dizer que 2008 foi difícil para fazer projeções “porque houve muitas incertezas”.

O momento atual da economia, obviamente, suscita previsões, mas prescinde de cornetagens. E recomenda prudência, não alarmismo. No início de maio, um telejornal matutino da maior emissora do país preparou uma longa reportagem sobre os tempos de hiperinflação. O economista Luiz Gonzaga Belluzzo espantou-se ao vê-la: “Como eles instigam o pânico!”

Alguns já saíram até apontando para as campanhas salariais do segundo semestre, que vão coincidir, conforme preveem­, com o pico da inflação em 12 meses. De um lado, o “mercado” (em geral o financeiro) pressiona com projeções alarmantes, enquanto de outro o governo diz que o pior já passou.

Para o professor Heron do Carmo, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), o país vive uma situação paradoxal. A inflação anual, acumulada nos últimos 12 meses terminados em abril, vinha em alta. Mas, considerados os três ou os seis meses anteriores, desacelerou. Ele avalia que as medidas adotadas até agora estão na direção correta. “É muito mais para controlar as expectativas de inflação”, afirma Heron, também presidente do Conselho Regional de Economia (Corecon) de São Paulo.

Maio 2011 inflação e PIB

Nesse sentido, não deixa de haver uma queda de braço entre mercado – leiam-se agentes financeiros – e governo, que produz expectativas sobre a própria inflação. “O mercado faz o jogo do mercado, ele vai ser sempre premiado com inflação mais alta. No mínimo, não vai ser chamado de ingênuo”, comenta o professor Antônio Corrêa de Lacerda, do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. “Assim, a tendência dos chamados analistas é carregar nas tintas, enquanto o governo sempre tende a ser mais otimista.” 

Sangue-frio

O governo deve ser preciso e calculista para não tomar medidas que descambem para uma recessão. “Este ano vamos crescer metade do ano passado, e a inflação vai ficar perto da meta”, lembra Lacerda. Do lado do mercado, é necessário analisar os números com responsabilidade. “Os modelos de projeção são muito falhos.” Um exemplo simples está no boletim Focus, divulgado semanalmente pelo Banco Central. No começo do ano passado, os analistas estimavam inflação de 4,50%. Fechou em 5,91%. Já a aposta para o crescimento do PIB era de 5,2%. Deu 7,5%.

Belluzzo observa que é função da política monetária justamente administrar as expectativas. “É um jogo de espelhos entre o BC e o mercado”, diz, chamando a atenção para a capacidade dos agentes do mercado de influenciar uma inflação mais elevada. “Quanto mais altistas sejam as previsões, mais influenciam os formadores de preços, que antecipam uma certa função de reação do BC.” Para Belluzzo, o mercado muitas vezes se apoia em mudanças de ritmo para expor expectativas negativas e, nessa relação, costuma colocar o BC no córner. “Não vamos pensar que é uma questão meramente técnica. É uma questão de poder.”

Embora nada justifique alarmar a população exibindo cenários de catástrofe, segundo o economista, é preciso, claro, tomar cuidado. “De fato, o Brasil sofreu os efeitos do choque de commodities, que subiram 45% nos últimos 12 meses. Esse é o lado inevitável da inflação. Todos os países estão fora de suas metas.” 

O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann­, lembra que “em casa de enforcado, não se fala de corda”, aludindo à memória inflacionária do país. “Por outro lado, tem um certo terrorismo de alguns setores, que são os ganhadores com uma taxa de juros maior”, afirma. 

Ele também ressalta que o mundo inteiro está convivendo com pressões inflacionárias. “Temos, no Brasil, vários componentes dessa pressão de alta. O Plano Real não representou uma desindexação total. Há também preços de serviços que subiram, relacionados a mudanças no mercado de trabalho. Isso está sendo enfrentado de forma diferente que no passado.” Na opinião de Pochmann e de outros analistas, o segundo semestre já deve mostrar inflação em queda.

O Dieese observou que as causas da recente elevação da inflação não estão claramente determinadas. “Há um conjunto de situações que, de uma forma ou de outra, pressiona para cima o nível geral de preços.” Entre esses fatores estão alimentos, commodities, aquecimento da demanda, oligopólios, tarifas públicas, preços administrados, inflação mundial e as próprias expectativas criadas no mercado. Assim, o instituto alerta para a conduta dos chamados formadores de opinião.

Alguns, “por motivos inconfessáveis”, exageram na importância dada a aumentos sazonais de preços (aqueles que sempre têm variação em determinada época por razões de clima, safra, datas comemorativas etc.) e ajudam a criar expectativas negativas em relação ao comportamento futuro da economia. “Na esteira desse alarmismo, propugnam, em defesa da estabilização, o aumento das taxas de juros, o que, nesse instante, só beneficiará os rentistas e o setor financeiro.” Em outras palavras, os que sempre se beneficiam, mas também sempre querem mais.

O guarda-metas

O Comitê de Política Monetária (Copom­) brasileiro é inspirado nos modelos do Federal Open Market Committee­ ­­(Fomc) norte-americano e do Central Bank Council (CBC) alemão. “Uma vasta gama de autoridades monetárias em todo o mundo adota prática semelhante, facilitando o processo decisório, a transparência e a comunicação com o público em geral”, diz o Banco Central.

Em 1999, o BC adotou o sistema de metas. Assim, cabe à autoridade monetária garantir o cumprimento da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), composto pelos ministros da Fazenda e do Planejamento e pelo presidente do BC. Atualmente, a meta da inflação oficial (IPCA, calculado pelo IBGE) é de 4,5%, com tolerância de dois pontos percentuais­.

“O sistema de metas, no fundo, garante o mercado contra a desvalorização da riqueza financeira”, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. “Essa vigilância tem um lado bastante negativo. Pela maneira como são feitas as projeções, acabam provocando uma reação dos formadores de preços.”

A CUT e a própria Fiesp contestam o modelo adotado pelo BC, que ouve agentes financeiros para publicar semanalmente o boletim Focus, com as expectativas para a economia. Para os críticos, isso influencia as decisões do Copom. “Se não pudermos acabar com essa forma de pesquisa, que pelo menos os trabalhadores sejam ouvidos. Afinal, somos o setor produtivo”, diz o presidente da CUT, Artur­ Henrique. 

Salário não é vilão

Por Artur Henrique da Silva Santos

A Central Única dos Trabalhadores, e eu pessoalmente, estamos orientando nossos sindicatos filiados a organizarem as mais ousadas mobilizações e as mais arrojadas e exigentes pautas de reivindicações dos últimos tempos durante as campanhas salariais que vão ocorrer no segundo semestre.

É tempo de ousadia, especialmente para mostrar nossa contrariedade com a ideia de que aumentos reais de salário podem representar uma ameaça ao controle da inflação no Brasil. Ora de maneira sutil, ora escancarada, análises inspiradas a partir do mercado financeiro, repercutidas pela imprensa, sugerem que a conjuntura desaconselha aumentos salariais acima da inflação, pois poderiam pressionar as taxas.

Em primeiro lugar, para nos contrapor a esse ataque concentrado aos salários, queremos dizer que é um absurdo tentar esconder que há outros fatores que pressionam de fato a inflação, mas jamais são citados por essas análises conservadoras. Lucro causa inflação. Distribuição de dividendos também pressiona a inflação.

O fato de a estrutura tributária ser regressiva, punindo quem ganha menos, também causa inflação, pois os impostos incidem majoritariamente sobre o consumo e são repassados diretamente aos preços. A existência de setores oligopolizados, especialmente na indústria, faz com que a ausência de concorrência facilite o repasse para os preços de qualquer aumento nos custos. Os oligopólios também têm maior facilidade para aumentar margem de lucros. 

Devemos lembrar ainda das tarifas públicas, muitas regidas por contratos indexados, que ajudam a ampliar os custos da produção e a pressionar a inflação. Querer tratar da questão inflacionária, e principalmente combatê-la, sem considerar essas variáveis é falso e mal-intencionado. 

Outro detalhe importante, ao qual é dado pouco destaque, refere-se ao fato de os salários estarem há muito tempo perdendo a corrida para o aumento da produtividade e para o crescimento veloz dos lucros obtidos por todos os setores de atividade. No período de quase 20 anos entre 1989 e 2008, a produtividade da indústria cresceu 84%, enquanto no mesmo espaço de tempo a renda média dos salários caiu 37 pontos. Se a teoria clássica associa inflação a aumentos salariais acima da produtividade, podemos então descartar o risco.

Tabela salário x inflação

Por fim, quero repetir que não estamos diante de um cenário de inflação de demanda, no qual as pessoas querem comprar algo que está em falta no mercado. Segundo o Sistema de Contas Nacionais do IBGE, o consumo das famílias, em relação ao PIB, caiu entre 2009 e 2010, de 61,7% para 60,6%. Esse dado sinaliza que o consumo das famílias tem permanecido estável em relação ao crescimento da economia. Há alguns fatores que pressionaram a inflação nos últimos meses. Sazonais alguns, fruto das tarifas públicas indexadas, outros. Sem esquecer da ação dos oligopólios. Mas querer apontar os salários como vilões da inflação é uma falácia. A CUT e seus sindicatos não vão cair nessa.

Artur Henrique é presidente da CUT. Artigo originalmente publicado n’O Globo, em 12 de maio