Getulio Varga em três tempos

Caixa com três DVDs lançada pelo documentarista Eduardo Escorel recupera e organiza, com riqueza de imagens e depoimentos, o contexto e o legado da Era Vargas

O cineasta Eduardo Escorel passou anos reunindo imagens, depoimentos de intelectuais e historiadores e tramando um roteiro consistente. O resultado parcial coube numa caixa com três volumes em DVD – Era Vargas: 1930-1935. Longe de propor um julgamento dos valores, Escorel lança luzes sobre sombras e mitos que perpassam acontecimentos das últimas nove décadas – com cenas e fotos, muitas inéditas, a partir dos anos 1920.

“Não há um Vargas benévolo e um malévolo”, assinalou o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro. Há apenas um Getulio Vargas. Pinheiro participou de uma conversa com o diretor e o historiador Boris Fausto num evento de lançamento da obra, em junho. Para ele, a tortura, tal como se conhece hoje, surgiu entre 1935 e 1937. Boris Fausto relativizou o radicalismo: “Entre 1930 e 1937, foi imensa a quantidade de livros produzidos no Brasil, o que mostra a importância das mudanças que (o período) proporcionou ao país”.

O primeiro filme, 1930 – Tempo de Revolução, traz imagens do Rio dos anos 1920, capital federal. Na montagem, paisagens são sobrepostas por imagens atuais, como o Canal do Mangue, com efeito mágico: sentimentos vão em alguns segundos da nostalgia do preto e branco ao deslumbramento das cores presentes. Escorel sabe fazer cinema. O episódio se concentra no período em que os grandes proprietários rurais de São Paulo e Minas revezavam-se no comando da política do café com leite. Na época, mais de 60% dos brasileiros viviam no campo, os presidentes eram eleitos por menos de 3% da população, as mulheres não votavam, os coronéis davam as cartas e o voto de cabresto era a lei. Assiste-se às mais antigas imagens de uma campanha presidencial no Brasil, de Arthur Bernardes para suceder Epitácio Pessoa.

Apesar de o anarcossindicalismo ter marcado época com mobilizações e greves a partir dos anos 1910, os trabalhadores entraram nos anos 20 sem os direitos pelos quais tanto lutaram.

Dos ecos da campanha civilista de Rui Barbosa no início do século 20 à guerra civil no Rio Grande, em 1923; da revolta tenentista e da formação da Coluna Prestes à sucessão do mineiro Arthur Bernardes pelo paulista Washington Luís, a história chega a Vargas, nomeado ministro da Fazenda em 1926.

Quatro anos depois, Washington Luís indica outro paulista, o governador Júlio Prestes, à sua sucessão. A ruptura do café com o leite precipita a união de mineiros e gaúchos na fundação da Aliança Liberal, que lança como candidatos Getúlio e João Pessoa, com uma plataforma que defendia voto secreto, voto feminino, jornada de trabalho de oito horas. Mas Júlio Prestes é eleito em março de 1930, sob suspeita de fraude.

A obra não se limita à narrativa histórica, o que a tornaria comum. Incorpora elementos culturais e artísticos e a evolução tecnológica – como o papel do rádio na modernização da propaganda. Os depoimentos de veteranos dos levantes dão vida aos documentários.

Se a eleição parecia encerrar um ciclo de conspirações, um tiro mudou o rumo da história. O assassinato de João Pessoa (em 26 de julho de 1930) transformou o líder paraibano em líder de uma “revolução que ele próprio condenava”, diz Barbosa Lima Sobrinho. Em outubro de 1930, Washington Luís é preso no Forte de Copacabana e Getúlio é reconhecido como chefe do governo provisório, os tenentes derrotados em 1924 são recebidos em festa pelos paulistas. A República Velha chega ao fim.

O filme que aborda 1932, A Guerra Civil, mostra como é falso o mito segundo o qual a Revolução Constitucionalista era separatista. Diz o mestre Antonio Candido: “O movimento de 32 era de homens movidos por sentimentos civilistas”. A luta era por uma nova Constituição e liberdades políticas. O ideário paulista era “federalista, civilista, liberal e socialmente conservador, contra o governo central, que era autoritário e socialmente reformista”, diz a narrativa. Os paulistas eram conservadores, sugere um sutil Antonio Candido, com a elegância que lhe é peculiar. Seja como for, sem a adesão de Minas e do Rio Grande do Sul, não havia como a revolução paulista sair-se vitoriosa.

Em 1935 – O Assalto ao Poder, que fecha a série (tem cerca de 90 minutos, e os outros, 50 cada um), descrevem-se os sinuosos movimentos e a inteligência política de Getulio Vargas; a ambiguidade da atuação de Luiz Carlos Prestes; o surgimento do integralismo de Plínio Salgado, fascista, e, em oposição, a fundação da Aliança Nacional Libertadora, comunista; os equívocos da esquerda brasileira; o endurecimento jurídico; os levantes reunidos sob o rótulo de Intentona Comunista; a institucionalização da tortura e o golpe constitucional de Vargas, que forma a Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo (janeiro de 1936) e o Tribunal de Segurança Nacional. “A última etapa da escalada autoritária”, narra o filme, viria no ano seguinte.” A ditadura do Estado Novo tem início em novembro de 1937.

Longe do epílogo

Para quem ainda se surpreende com os dias atuais, a revisão da história ensina que o mundo da política dá muitas voltas desde sempre. Em 1945, Luiz Carlos Prestes participa de grande comício no Pacaembu. Anistiado por Getulio depois de nove anos de prisão e secretário-geral do Partido Comunista desde 1943, Prestes defendia uma política de união nacional em apoio ao governo Vargas, após este declarar guerra à Alemanha nazista. Em 1946, Vargas e Prestes sobem no mesmo palanque e se encontram na mesma tribuna. Getulio é eleito senador pelo Rio Grande do Sul; Prestes, pelo Rio de Janeiro.

No ano seguinte o PCB já estava novamente na clandestinidade, vítima da Guerra Fria e de um legado de ódio que se expandiria pelas próximas décadas. Depois de algumas tentativas de golpe – como a de meados do anos 1950, para impedir a posse de JK, e em 1961, a de João Goulart, Jango –, as mesmas forças “ocultas” derrotadas por Vargas nos anos 1920 conseguem, enfim, em 1964, golpear as instituições e impor uma ditadura que duraria 21 anos, cujas feridas até hoje ainda não cicatrizaram.

A força dessa cronologia mexe com a veia cinematográfica de Escorel. “No momento temos em finalização para lançamento no primeiro semestre de 2012 a continuação da série, 1937-45 – Imagens do Estado Novo. Pretendemos iniciar a partir de agosto a elaboração de outro capítulo, dedicado ao período 1945-1954”, prevê Escorel, sem desanimar: “Tendo iniciado a série em 1990, teremos levado 22 anos para cobrir o período até 1945. Com a idade que estamos, nesse ritmo, teremos que deixar para nossos netos a tarefa de completar a série”, brinca, revelando o projeto de recontar os fatos até 1985, início da redemocratização.

Curta essa dica Era Vargas: 1930-1935 Direção de Eduardo Escorel. Texto: Escorel e Sérgio Augusto Narração: Edwin Luisi e Paulo Betti. Preço sugerido: R$ 60

Colaborou Paulo Donizetti de Souza