Ouvi o toque me chamar

Baião, jazz, Gonzagão, Beethoven, Sivuca, Tchaicovsky. Quem pode com a sanfona?

Hermeto Paschoal, pioneiro na fusção da sanfona com o jazz (Foto: Divulgação)

Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Sivuca, Hermeto Pascoal, Toninho Ferragutti, Oswaldinho do Acordeon e Renato Borghetti são unidos pela mesma paixão: a sanfona. De origem incerta – alguns acreditam que tenha surgido no norte da Península Ibérica, no século 16, outros apostam no norte da África –, esse instrumento se abrasileirou rapidamente, assim que chegou ao país no final do século 19, trazido por imigrantes italianos e alemães. Há quem diga, porém, que a primeira sanfona teria aportado aqui numa das caravelas de Pedro Álvares Cabral, com o nome de concertina.

Certo mesmo é que a sanfona ou concertina – ou harmônica, cordeona, acordeão, pé de ode, gaita ou fole – é versátil a ponto de servir de inspiração desde a uma peça clássica do russo Tchaicovsky (1849-1893) até a música brasileira executada nas mais diferentes regiões, dos pampas gaúchos ao sertão nordestino. Também rompeu fronteiras, virou tema de documentários e passou a ser aclamada na Europa e nos Estados Unidos.

“A sanfona é, de todos os instrumentos, o que mais está ligado às tradições culturais de um povo. E em cada região é tocada de maneira diferente. Através dela, pode-se conhecer as tradições da música religiosa em Minas Gerais, das italianas e alemãs e adentrar na melancolia alegre do sertanejo”, avalia o cineasta Sérgio Roizenblit, diretor do documentário O Milagre de Santa Luzia (2009). O título homenageia Luiz Gonzaga, que nasceu no dia da santa, 13 de dezembro, e a narrativa é conduzida por Dominguinhos, por meio de uma viagem realizada pelo país e por várias escolas de sanfoneiros. “É o único instrumento que embute vários outros, como o sopro e o piano, por exemplo. Assim, a sanfona faz uma festa sozinha e, no Sul ou no Nordeste, agrega a comunidade”, observa Roizenblit.

Seu documentário mergulha neste universo: o toque nordestino e sua saga de retirante, a partida e o desejo de um dia voltar; o pantaneiro e sua atitude contemplativa, conectada ao tempo da natureza; o gaúcho e sua ode às tradições, o orgulho pela terra; e o paulista, que dividido entre a cultura caipira e o emaranhado de informações da metrópole cria um estilo único e diversificado. “Musicalmente, o instrumento se caracteriza como capaz de traduzir as mais variadas culturas, seus diferentes povos”, descreve o diretor.

Folclóricos e modernos

Toninho Ferragutti (Divulgação)Para o músico Toninho Ferragutti­, o nordestino toca com maior leveza, com contenção no volume. “Geralmente aprende observando e não prioriza o estudo da técnica separado do estudo da música. O gaúcho, não. 

Em geral aprende por método e leitura, tem um volume mais alto de tocar e gosta de acordeom de som mais aberto e de mostrar virtuosidade”, descreve. 

“No Centro-Sul há influência dessas duas escolas. Assim como o pantaneiro do Centro-Oeste recebe influência do Paraguai e do nordeste­ da Argentina.”

Nascido em Socorro (SP) e filho de saxofonista e maestro de banda, Ferragutti cursava Veterinária quando abandonou a faculdade. Atribui sua dedicação à música à obra e personalidade do multi-instrumentista Hermeto Pascoal. Nascido em Lagoa da Canoa (AL) em 22 de junho de 1936, Hermeto conquistou o mundo tocando, além de sanfona, flauta, piano, saxofone, trompete, violão e diversos outros objetos de onde consegue extrair sons e notas. Ferragutti já acompanhou o ídolo e outros grandes nomes da música brasileira, como Dominguinhos, Elba Ramalho, Marisa Monte, Gilberto Gil e Antonio Nóbrega, e astros internacionais, como a cantora cubana Omara Portuondo, o norte-americano Doug Kershaw e o japonês Seigen Ono. Sempre com a sanfona.

Outro nome importante em São Paulo é Mario Zan (1920-2006). Mario Giovanni­ Zandomeneghi nasceu em Roncade, uma comuna italiana da região do Vêneto, e chegou com a família a Catanduva (SP). Ficou famoso por canções típicas das festas juninas, como Quadrilha Completa, Balão Bonito, Noites de Junho e Pula a Fogueira, compôs os hinos comemorativos dos 400 e dos 450 anos da cidade de São Paulo e, certa vez, pelo conjunto da obra, foi considerado por Luiz Gonzaga o “verdadeiro rei da sanfona”.

Dois dos mais expressivos sanfoneiros do Rio Grande do Sul são Gilberto Monteiro e Renato Borghetti. Natural de Santiago do Boqueirão, cidadezinha próxima à fronteira com a Argentina, Monteiro é um dos maiores nomes da música gaúcha e autor de sucessos como Milonga pras Missões e Pra Ti Guria. Já Borghetti fez o primeiro disco brasileiro de música instrumental, Gaita-Ponto (1984), com mais de 100 mil cópias vendidas. Borghettinho, de 48 anos, é de Porto Alegre. Aos 10 anos ganhou uma gaita-ponto do pai e nunca mais parou de tocar – e virou mestre em misturar música folclórica gaúcha com vários elementos modernos.

O maior sanfoneiro da região Centro-Oeste é Dino Rocha. Filho de mãe alemã e pai paraguaio, ele começou a tocar aos 9 anos e, desde essa idade, vive em Mato Grosso do Sul. Já lançou mais de 20 discos e trabalhou com artistas como Almir Sater, Renato Teixeira, Chitãozinho & Xororó. Seu trabalho mistura viola, acordeom­ e harpa paraguaia e músicas cantadas em português, guarani e castelhano.­

Rei do Baião

Veio do Nordeste, de Exu (PE), aquele que ganhou o título mais nobre entre os sanfoneiros. Luiz Gonzaga (1912-1989) imortalizou a imagem do músico de gibão, chapéu na cabeça e sanfona no pescoço, e emplacou sucessos hoje considerados clássicos obrigatórios do cancioneiro popular, como Asa Branca, Baião, Juazeiro, Assum Preto, Qui Nem Jiló e Baião de Dois, entre outros. Ele arrastava verdadeiras multidões a cada show que realizava pelo Brasil e encantou músicos internacionais, como o ex-líder do Talking Heads, David Byrne.

“A sanfona faz parte da feitura do baião, que é uma das duas dinastias da música brasileira, junto com o samba. Ela também faz parte da tríade de instrumentos do forró pé de serra, ao lado da zabumba e do triângulo. Em 1975, havia predomínio de foxtrotes por aqui, e Luiz Gonzaga, com Humberto Teixeira, foi fundamental para a revitalização do baião, como a música autêntica brasileira, até hoje reconhecida e institucionalizada, alcançando sucesso também em Nova York”, destaca o cineasta Lírio Ferreira, diretor de O Homem Que Engarrafava Nuvens (2009), a respeito do compositor, advogado e político pernambucano Humberto Teixeira. 

Luiz Gonzaga também foi mentor de José Domingos de Morais, o Dominguinhos, que completou 70 anos em 12 de fevereiro. Para o cineasta Felipe Briso, é o melhor sanfoneiro em atividade. Briso prepara um documentário, Dominguinhos Volta e Meia, com lançamento previsto para o início de 2012, que traz também encontros dele com outros grandes nomes da música brasileira. “Nosso intuito é mostrar o lado universal de um músico virtuosístico e talentosíssimo. Carregando um instrumento pesado com muito prazer, ele faz questão de levar a sanfona além das fronteiras do regional e colocá-la num pedestal, tanto que se envolveu, por exemplo, com a tropicália e a bossa nova”, observa o cineasta.

Instrumento sem limites

Dominguinhos aprendeu a tocar com o pai, Chicão, que era afinador e tocador do instrumento de oito baixos. “Luiz Gonzaga foi o que sempre permaneceu na história, talvez seja por sua astúcia e simplicidade… Foram décadas de dedicação, fé, perseverança e luta, e por isso ele deve ser lembrado. Já eu fui aprendendo, tocando, estudando, e são anos tocando. A única coisa que quero daqui para a frente é saúde. Saúde para poder continuar fazendo aquilo que tanto gosto, e espalhar por todo o país”, afirma Dominguinhos.

Gravando desde 1942, com mais de 40 álbuns lançados, ele acompanhou o mestre durante vários anos e também fez escola, influenciando músicos hoje reverenciados do instrumento, caso de Oswaldo de Almeida e Silva, mais conhecido como Oswaldinho do Acordeon­, com quem lançou, junto com Sivuca, o disco Cada um Belisca um Pouco, de 2004. A primeira sanfona Oswaldinho ganhou aos 6 anos – o pai e o avô também eram sanfoneiros. Inquieto, Oswaldinho se destacou por misturar a 5ª Sinfonia de Beethoven com ritmos nordestinos, ou Asa Branca com blues. 

“Sempre soube que o acordeom é um instrumento sem limites e cabe em qualquer situação. Acredito que, com essas experiências, incentivei muitos acordeonistas a tocar outros estilos. Meu ecletismo, devido aos meus estudos e minhas influências da música regional, do jazz, blues, rock e do erudito, é uma forma de valorizar a música brasileira, pois seus clássicos podem perfeitamente fundir-se aos universais”, defende Oswaldinho.

O acordeonista considera seu maior mestre Severino Dias de Oliveira, o Sivuca (1930-2006). Filho de Itabaiana (PB), Sivuca fez de baiões como Adeus, Maria Fulô, com Humberto Teixeira, um clássico da MPB, e João e Maria, com Chico Buarque­. E foi, ao lado de Hermeto Pascoal, pioneiro da fusão do sotaque brasileiro da sanfona com a universalidade do jazz. “Sua genialidade colocou o acordeom­ na frente, com suas adaptações harmônicas modernas. Seu som era um ‘jazz tupiniquim’, como ele mesmo dizia.” 

Oswaldinho agora leva as lições dos mestres adiante. Para ele, os sanfoneiros brasileiros ainda não têm domínio de técnicas e estudos teóricos, se comparados com os que optam pelo violão, guitarra, teclado ou instrumentos de sopro. “Estou planejando o desenvolvimento de métodos para acordeom, pois no Brasil somos muito deficientes de conhecimento específico do instrumento”, admite. “Quando comecei a ter intimidade com o acordeom­, descobri que seria meu companheiro para o resto da vida, enfrentando preconceitos e conquistando espaços, pois já chegou a ser considerado em extinção. Pretendo perpetuar para as novas gerações o meu conhecimento.” 

Música para os olhos: documentários sobre o tema

O Milagre de Santa Luzia (Divulgação)

O Milagre de Santa Luzia (2008). Documentário de Sérgio Roizenblit, Dominguinhos percorre o Brasil e mostra os diferentes mestres, estilos e culturas, a versatilidade regional da sanfona e a infinita universalidade do instrumento

O Homem que engarrafava nuvens (divulgação)

O Homem Que Engarrafava Nuvens (2009). Documentário de Lírio Ferreira a respeito do compositor Humberto Teixeira, parceiro de Luiz Gonzaga, que aponta a influência do baião na origem da bossa nova e de variações do pop e do jazz