Lisboa ao pé da letra

Fernando Pessoa leva a uma cidade para ser observada com a serenidade de quem lê um livro

Ponte 25 de Abril, sobre o Rio Tejo (Foto:João Correia Filho/Revista do Brasil)

Um dos livros de Fernando Pessoa mais vendidos a turistas que visitam Lisboa é pouco conhecido no Brasil. Nem mesmo é livro de poesia, tampouco leva o nome de algum de seus heterônimos ou lembra os temas introspectivos, que são sua marca. Lisboa: O Que o Turista Deve Ver é, na verdade, um roteiro que o poeta escreveu para divulgar “tudo que for de algum modo digno de ser visto nesta maravilhosa Lisboa”. Esse discreto best-seller envereda pela capital portuguesa com base nas aventuras de Pessoa, grande conhecedor da cidade onde nasceu, em 1888, e morreu, em 1935, aos 47 anos. “Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem desfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular multicolorida massa de casas que constitui Lisboa”, anuncia já no primeiro parágrafo.

Escrito há 86 anos, esse roteiro turístico-literário ainda é atual. Traz praticamente todos os locais hoje visitados por turistas, como o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, a Catedral da Sé, o Museu Nacional dos Coches, o Castelo de São Jorge, o Teatro Nacional São Carlos, o bairro do Chiado, a região da Baixa. Também passeia pelos bairros de Alfama, berço do fado, pelas avenidas que levam à Praça de Touros do Campo Grande e a palácios como o da Ajuda, que mantém intactos os aposentos de reis e rainhas de Portugal.

Escrito originalmente em inglês, o texto é mais um sinal da conhecida megalomania do poeta, como sugere uma das maiores estudiosas de sua vida e obra, Teresa Rita Lopes, que assina o prefácio da edição portuguesa – o livro também foi lançado no Brasil pela Companhia das Letras. “Antes mesmo de escrevê-lo, ele já devia imaginar seu texto rodando os quatro cantos do mundo, talvez por isso tenha escrito em inglês”, diz a pesquisadora. É bom lembrar que em vida Pessoa publicou apenas o livro A Mensagem. A fama mundial viria só depois de sua morte.

Seu roteiro turístico alardeia uma Lisboa moderna, a ponto de realizar sua viagem imaginária num automóvel que rompe as ruas do centro e de alguns bairros para passar rapidamente às atrações que merecem visita. “O nosso automóvel vai andando, percorre a Rua do Arsenal, e passa junto à Câmara Municipal, um dos mais belos edifícios da cidade” é um dos trechos que hoje podem soar como ironia, posto que Lisboa é uma cidade excelente para conhecer a pé e com ótimo sistema de transporte público.Colina Lisboa - João Correia Filho

Embora não seja um texto poético, bastam algumas páginas para se encantar com as descrições: “No nosso caminho de retorno à Baixa ou, por outras palavras, à parte baixa e central da cidade, passamos por um dos mais pitorescos bairros de Lisboa – Alfama, o velho bairro de pescadores, que ainda conserva uma grande parte do seu antigo aspecto”. E completa: “O turista que pode passar alguns dias em Lisboa não deve deixar de visitar este bairro; ficará com a noção de que nenhum outro lugar lhe pode proporcionar o aspecto que Lisboa tinha do passado”.

Em alguns casos é mais detalhista. “O corrimão, ricamente decorado de cobre e aço, abre com uma cabeça de carneiro de cobre reluzente”, diz ele, referindo-se ao Palácio Foz. E vai além em suas minúcias: “Este admirável corrimão foi executado em Paris e custou então 9.000 libras. É um espécime mais suntuoso que o do Castelo de Chantilly, dos duques de Aumale, que é tido como o mais belo do mundo”. Mesmo para quem vai ao Palácio Foz não apenas para ver tal corrimão, o relato é, no mínimo, curioso. Hoje no local funciona um grande centro de informações ao turista e seus salões requintados são abertos ao público.

O poeta, porém, deixa de citar os locais da cidade que ele frequentava. Talvez não tivessem ganho o status de turístico, como é o caso do café Martinho da Arcada – inaugurado em 1782 – ou do café A Brasileira, no bairro do Chiado, que passaram a ser visitados justamente pela fama do próprio Pessoa.

Outro aspecto de Lisboa: o Que o Turista Deve Ver é que seria impossível percorrer o roteiro em um único dia, como propõe o poeta. Seriam necessárias semanas para completar o trajeto “dessa curta mas interessante visita”, como ele sugere. Talvez esteja­ aí a maior ironia do texto. Afinal­, viajar­ exige tempo para silenciar, mente aberta para refletir, os olhos atentos para contemplar e, de preferência, um livro embaixo do braço.

João Correia Filho é jornalista, colaborador da Revista do Brasil e autor do guia Lisboa em Pessoa (Editora Leya, 370 páginas, R$ 80), baseado em Lisboa: o Que o Turista Deve Ver. Além dos lugares citados pelo poeta, o autor incluiu cafés, livrarias e outros locais imperdíveis da capital portuguesa. Lisboa em Pessoa traz ainda poemas de Fernando Pessoa, claro, e referências de obras de escritores portugueses, como Inês Pedrosa, José Saramago, Camões, Lobo Antunes e Batista-Bastos. O guia, portanto, pode ser degustado mesmo se o passeio for apenas literário.