Espera longa ou interminável?

A operação de busca pelo corpo de Virgílio Gomes da Silva, morto pela ditadura, reacende esperança entre as famílias e suspeitas sobre o real empenho do Estado na reparação dos erros do passado

Agulha no palheiro: vários profissionais trabalharam durante cinco dias nas buscas em Vila Formosa. Foto: Douglas Mansur

Foi uma semana longa, arrastada. Que chegou ao fim com um desconfortável adiamento. E a certeza de que restam mais algumas longas semanas de espera pela frente. No mês que vem, serão retomadas as buscas pelo corpo de Virgílio Gomes da Silva, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), assassinado em 1969 por agentes da ditadura militar. Entre o fim de novembro e o início de dezembro, foi realizada no Cemitério de Vila Formosa, na zona leste de São Paulo, uma busca que pode ser vista como um êxito parcial ou uma falha preocupante.

Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Polícia Federal, Ministério Público Federal (MPF) e Instituto Médico Legal de São Paulo empreenderam uma operação conjunta que, ao fim de cinco exaustivos dias, teve como balanço a localização de um ossário que não figurava nos registros do cemitério e a exumação de uma ossada que pode ser de Sérgio Correia, também militante da ALN morto em 1969.

O problema é que a questão central, a localização da ossada de Virgílio, não foi levada a cabo pelos agentes da PF, o que levantou dúvidas sobre o real empenho da instituição. O comandante Jonas, como era conhecido, foi responsável pela coordenação do sequestro, em 1969, do então embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick, e sua família foi a grande “provocadora” da ação apresentada ao MPF pelo Sindicato dos Químicos de São Paulo e pelo Grupo Tortura Nunca Mais. “É graças aos familiares que isso ainda está sendo feito, porque realmente as autoridades do passado optaram por uma política de esquecimento”, assinala Eugênia Gonzaga, procuradora da República em São Paulo.

Perto do fechamento da semana de buscas, havia a certeza de que a abertura da possível vala de Virgílio seria feita, mas a sexta­-feira­ chegou e, com ela, a frustração. A equipe de serviço forense da PF informou que havia dúvida quanto ao local exato de sepultamento e o melhor seria fazer um detalhamento de dados técnicos para, em fevereiro, voltar ao trabalho de campo. Ivan Seixas, consultor da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos, deixou clara a insatisfação com a notícia. “Não foi feita a abertura da vala do Virgílio por um critério com o qual não concordo. Não aceito. É muito precioso que se cumpra o foco da operação”, afirmou, acrescentando que lhe causa espanto que PF e familiares de vítimas não consigam, em tempos de democracia, caminhar na mesma direção: “Não é uma suspeita ao profissional, mas ao processo como um todo”.

Marlon Weichert, procurador regional da República, não escondeu que nem tudo saiu como imaginado, mas evitou criar polêmica. “Claro que a gente sempre tem uma certa ansiedade, uma vontade de ter resultados conclusivos o mais rápido possível. Mas diante do grande número de dificuldades técnicas, é melhor uma recuada e uma reanálise para que a gente tenha possibilidade maior de sucesso na hora da exumação.”

Contra a acomodação

O caso do comandante Jonas é revelador dos atuais movimentos em torno da ditadura. De um lado, setores da sociedade anseiam por uma solução para os crimes cometidos pelos agentes da repressão. De outro, segmentos do Estado brasileiro tentam manter tudo como está sob a tese de que mexer no passado irá, em vez de fechar feridas, suscitar novos problemas.

Em dezembro, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu a esperada sentença sobre o caso da Guerrilha do Araguaia (1972-75). Dentro das expectativas, a entidade integrante da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Estado brasileiro, obrigando-o a indenizar as vítimas da repressão e determinando que se levem adiante esforços para combater a tortura­, o que depreende, entre outras coisas, a necessidade de que se julguem os agentes do regime totalitário.

Com isso, foi aberta a possibilidade de revisar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, no primeiro semestre de 2010, defendeu a tese de que a Lei da Anistia, de 1979, é fruto de um amplo acordo da sociedade e, como tal, não há possibilidade de que se condene no âmbito penal os torturadores daquele período. “Até hoje não tivemos decisão judicial que tenha incriminado pessoas que mataram e torturaram­ outras em nome do Estado, e por isso famílias seguem angustiadas e sem direito ao luto”, lamenta a diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil), Beatriz Affonso, que espera ver a reversão da decisão­ do Supremo.

O Judiciário foi entrave para outro passo importante na busca por reparação dos erros da ditadura. No ano passado, o presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, 
Roberto Haddad, cassou liminar que definia o prazo de até 180 dias para a identificação das ossadas encontradas no cemitério Dom Bosco, em Perus, zona oeste paulistana. O desembargador aceitou o argumento apresentado pela Advocacia Geral da União de que o orçamento anual demandado para a formação de uma equipe, R$ 3 milhões, resultaria­ em “excessivo ônus ao Estado­ brasileiro” em um caso no qual impera a “inexistência­ de interesse público”.

No mérito da ação, ainda sem data para ser julgado, o Ministério Público Federal pede a responsabilização de diversas autoridades, entre elas o ex-prefeito Paulo Maluf e o ex-chefe do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Dops) Romeu Tuma, senador falecido em novembro último. Por fim, graças à parceria firmada entre MPF, Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e PF, estão sendo feitas identificações de duas ossadas.
A mobilização social é a chave para garantir que sejam levadas adiante buscas em outros lugares. A expectativa da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos é estabelecer um calendário para missões em cemitérios do Rio de Janeiro e novas expedições ao Araguaia. Este último caso é de uma complexidade ímpar: a área de atuação da repressão na região amazônica é imensa e a identificação dos locais de sepultamento depende, basicamente, da ajuda dos militares.

Estes, obviamente, não têm grande interesse em colaborar, o que levou o ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos Paulo Vannuchi a emitir um apelo para que se indique, sob anonimato ou não, a localização dos cemitérios clandestinos ou das valas existentes nos cemitérios legais. “Infelizmente, há ainda uma mentalidade raivosa, de ódio, e torturadores e comandantes de torturadores que não fizeram a conversão à vida democrática.”

Transição

Familiares e Comissão dos Mortos e Desaparecidos políticos acompanham operação. Foto: Douglas Mansur

Como lembrou Vannuchi, enquanto os familiares não puderem fechar essa ferida, o Brasil não será capaz de concluir sua transição para a democracia. No caso de Vila Formosa, em São Paulo, há uma grande dificuldade em reconstituir a antiga disposição do cemitério. Imaginando futuras buscas, os militares se empenharam em promover a descaracterização da área de 763 mil metros quadrados, o maior cemitério da América Latina: quadras foram renumeradas ou encurtadas e árvores foram plantadas sobre sepulturas. Funcionários de longa data relataram detalhes do processo de alteração. “Tinha só duas árvores aqui. Em poucos anos foram plantadas mais de 17 mil”, informa um senhor que aceitou falar sob a condição de anonimato. “Ali era a quadra 11. Por que você acha que construíram um ossário no meio da quadra?”, acrescenta.

À ação dos militares somou-se a desorganização do cemitério, que chegou a receber centenas de sepultamentos ao dia nos tempos da ditadura – a maioria sob a identificação de “indigente”, expediente usado por forças autoritárias para ocultar mortes violentas. Sem nenhum cuidado na conservação dos arquivos, Vila Formosa se transformou numa trama difícil de desvendar, que só se tornou menos obscura devido aos trabalhos da família de Virgílio e dos grupos que atuam no setor.

A solução, agora, depende da ação de agentes do Estado. Só eles poderão, no próximo mês, dar fim ao sofrimento de familiares que esperam há mais de 40 anos pelo desfecho. “Sem o contato com os restos mortais, não se cumpre o ritual fundamental, um direito que qualquer ser humano tem, que é velar seus entes queridos”, lembra Marco Antônio Rodrigues Barbosa, presidente da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Mesmo que se encontre alguma ossada durante a nova semana de operações, será necessário avaliar em que condições estará. É possível que, devido aos longos anos de exposição à terra e à umidade, o material genético tenha se perdido, inviabilizando a comparação com o DNA dos familiares de Virgílio.

Pensando nisso, os grupos envolvidos no trabalho já negociam a construção de um memorial em homenagem às vítimas da ditadura enterradas no Vila Formosa. Gregório Gomes da Silva, filho de Virgílio, considera que a busca pelo corpo de seu pai é fundamental, por mais difícil que seja. “Quero ter essa esperança. Não é pela ossada, pelos restos mortais, isso não vai mudar aquilo que penso sobre ele. É mais como uma simbologia, é importante para o país.”
Ilda Silva, esposa do militante, considera a construção do memorial uma alternativa para que, enfim, cada um possa chorar seus mortos. “Conforto nunca será. Seria se ele estivesse aqui conosco. Mas, de toda maneira, é um lugar para colocar uma flor, ter uma lembrança.” 

De retirante a guerrilheiro
Nascido no Rio Grande do Norte em 1933, Virgílio Gomes da Silva encontrou a militância política ao fugir da miséria do Nordeste. Morador da zona leste de São Paulo, entrou no Sindicato dos Químicos e se integrou à ALN. Em 1969, depois de comandar o sequestro do embaixador Elbrick, Virgílio acabou preso e levado para o DOI-Codi, entrando para a história da ditadura como o primeiro morto durante a tortura no aparelho repressivo.
Um dia após a prisão de Virgílio, sua esposa, Ilda, também foi detida. A filha mais nova, Isabel, com apenas 4 meses, ficou afastada da mãe, sofreu desidratação e acabou internada por quase 30 dias. “Faz pouco tempo que fiquei sabendo que colocavam eles (os filhos) nos carros e perguntavam pras famílias se queriam adotar porque os pais eram bandidos.”
Ilda, após exílio em Cuba, voltou para o Brasil no início da década de 1990, ainda em dúvida quanto à sobrevivência de Virgílio. Gregório Gomes da Silva, o primeiro a retornar ao Brasil, não deixou de aprender em Cuba sobre a importância do pai. 
“É um herói brasileiro. É um herói que não se calou. Que ofereceu o melhor que tinha, a vida, contra a arbitrariedade que estava ocorrendo.” Em 2004, descobriu-se a existência da ficha 4.059/69 do Instituto Médico Legal, o que deu à família a certeza da morte.Em dezembro, o Sindicato dos Químicos homenageou Virgílio ao rebatizar seu clube de campo com o nome do militante. “É muito importante que os trabalhadores, principalmente os jovens, conheçam a história de vida de Virgílio e se inspirem com ela”, diz o diretor Osvaldo Bezerra.