Muito além do Bolsa Família

Quem considerou que o voto no Nordeste na última eleição seria movido a assistencialismo, errou. O crescimento econômico na região, acima da média nacional, fez diferença na vida de muita gente, e não só dos mais pobres

A  votação expressiva obtida por Dilma Rousseff no Nordeste veio acompanhada de um bocado de ressentimento. Não foram poucos os que disseram que os votos eram dos “pobres” (automaticamente desqualificados como menos valiosos) e indiretamente resultado do assistencialismo, materializado pelo programa Bolsa Família. Nesse olhar, sobrou preconceito e faltou informação, ao não observar indicadores e fatos, como o crescimento da economia e a criação de empregos na região. Esses foram os fatores determinantes para a taxa de satisfação daquela população – e portanto, da maciça votação na candidata governista.

Aos números. A Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) feita pelo Dieese e pela Fundação Seade, de São Paulo, em parceria com entidades regionais, mostra desemprego em queda e ocupação em alta, inclusive com carteira assinada, nas maiores regiões metropolitanas: Fortaleza, Recife e Salvador. Nos últimos 12 meses, até outubro, as três criaram quase 350 mil empregos e reduziram em 160 mil o número de desempregados. A Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE, que usa outra metodologia, revela crescimento de 13,1% em 12 meses, até setembro, no nível de ocupação da Região Metropolitana de Recife, o equivalente a 179 mil pessoas a mais. No mesmo período, o número de desocupados caiu 7,1% (11 mil a menos). Em Salvador, os números são mais modestos, mas igualmente positivos.

Dados do Banco Central reforçam: o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil ficou praticamente estável (-0,2%) em 2009. Mas a economia cresceu 1,7% na Bahia, 3,1% no Ceará e 3,8% em Pernambuco. “A economia nordestina, ratificando a evolução registrada pelos principais indicadores mensais regionais ao longo do ano, assinalou, em 2009, dinamismo mais acentuado do que o experimentado em âmbito nacional”, diz o BC, que destaca o crescimento dos investimentos na região: no ano passado, os desembolsos, principalmente do BNDES e do Banco do Nordeste, representaram 5,2% do PIB local, ante média de 1,5% no período 2004-2008.

A Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, mostra ainda que, enquanto o emprego formal cresceu 4,48% no país em 2009, no Nordeste essa alta foi de 6,81%, chegando a 9,4% no Ceará, a 7,42% na Bahia e a 6,97% em Pernambuco, totalizando 335 mil novas vagas. Nesses três estados, a maior alta percentual foi do setor de construção civil: 27,82%, 30,23% e 23,83%, respectivamente.

Em artigo publicado no site Viomundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha, a economista Tânia Bacelar Araújo, professora do Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirmou que o Nordeste foi beneficiado com a preocupação do governo com as desigualdades sociais e regionais. Ela cita, por exemplo, a política de reajustes do salário mínimo e a ampliação do crédito como fatores que impulsionaram a economia da região, do ponto de vista do consumo. Norte e Nordeste, segundo a professora, lideraram as vendas do comércio varejista no país de 2003 a 2009.

Ela destaca também a decisão da Petrobras de construir novas refinarias e estimular a retomada da indústria naval. Vários estaleiros foram instalados no Nordeste. Os planos da Petrobras para a região incluem quatro novas refinarias, em Pernambuco, Rio Grande do Norte, Maranhão e Ceará. Os investimentos superam US$ 45 bilhões.

Canteiro

“Igualmente importante foi a política de ampliação dos investimentos em infraestrutura – foco principal do PAC –, que beneficiou o Nordeste com recursos que, somados, têm peso no total dos investimentos previstos superior à participação do Nordeste na economia nacional. No seu rastro, a construção civil bombou na região”, acrescentou a economista.

O coordenador da PED em Fortaleza, Ediran Teixeira, confirma. “Hoje, a Região Metropolitana é um canteiro de obras. Do lado da habitação, muitos imóveis estão sendo construídos e, do lado da construção pesada, muitas estradas são abertas e muitas indústrias se instalam. As reformas e as construções visando à Copa de 2014 estão em pleno vapor, além de outras obras estruturantes”, afirma Teixeira, citando ainda a ampliação do porto e a construção de uma siderúrgica no complexo portuário de Pecém, em São Gonçalo do Amarante, município da Região Metropolitana.

“Todas essas obras impulsionam não só a construção civil como também a indústria metal-mecânica, que em seu segmento foi a que mais gerou postos de trabalho nos últimos 12 meses, junto com a indústria têxtil e de vestuário (8 mil novas vagas cada uma)”, acrescenta. No comércio, o crescimento do emprego é determinado pela elevação das vendas. “A economia cearense está aquecida desde o início do ano e vem aumentando o volume de contratações.”

Principal exportadora do estado, a fabricante de calçados Grendene, com a maior parte de suas fábricas em Sobral, a pouco mais de 200 quilômetros de Fortaleza, ampliou em 60% a sua força de trabalho em 2009. Foram mais de 8 mil contratações, após uma redução de 3 mil no ano anterior, devido à crise econômica. Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, de janeiro a outubro a empresa foi responsável por 14% das exportações cearenses. Nos três primeiros trimestres do ano, as vendas ao exterior corresponderam a quase 20% da receita bruta da empresa.

Formalização

Na Região Metropolitana de Salvador, a economista Ana Simões, coordenadora da PED local, vê um movimento consistente do emprego formal na região, principalmente a partir de 2004. Em setembro, a taxa de desemprego atingiu o menor nível desde o início da pesquisa, em 1997.
Ao estabelecer aquele ano como o “ponto zero”, Ana diz que, enquanto a ocupação total cresceu 39,3% até 2009, o emprego com carteira dobrou. A construção civil teve alta de 71,9% no período. “Há muitas obras na área de habitação”, observa, destacando a importância de programas como o Minha Casa, Minha Vida.

O rendimento médio ainda é um ponto fraco, embora venha evoluindo. “Ainda não alcançou os valores de 1997, em termos reais”, afirma Ana. Com a economia muito indexada ao salário mínimo, a renda passou a se recuperar a partir de 2004. E a concentração de renda diminuiu um pouco, apesar de ser ainda elevada. Em 1997, os 10% mais pobres tinham 0,6% da renda, passando para 1,3% em 2009 – no mesmo período, os 10% mais ricos encolheram de 46,1% para 37,7%.

Segundo o Sinduscon, o sindicato da indústria da construção, o setor foi responsável por 39% das vagas formais criadas no estado da Bahia em 2009 e por 29,8% do total de janeiro a setembro deste ano. Também nesse período, só a Região Metropolitana de Salvador abriu 22 mil vagas, mais do que em todo o ano de 2009, quando foram criadas pouco mais de 15 mil. O total de empregados com carteira passou de 61 mil, em 2004, para 161 mil até setembro. A participação da construção civil no PIB estadual baiano aumentou nos três últimos anos.

Na Região Metropolitana de Recife, de 2003 a 2009 a ocupação cresceu 20,3%, com 240 mil novos postos de trabalho, dos quais 139 mil com carteira assinada. O maior número (141 mil) foi no setor de serviços, enquanto a maior alta percentual, 48,1%, foi justamente na construção civil, que criou 26 mil empregos.

“Ao longo do período analisado, a chegada de investimentos para a empresa Suape Complexo Industrial Portuário vem promovendo uma grande geração de empregos no estado de Pernambuco”, observa Jairo Santiago, do Dieese, coordenador da pesquisa em Recife. Ele cita dados do próprio complexo sobre os investimentos das 96 empresas já instaladas e outras 16 em fase de instalação, que somam US$ 15 bilhões apenas este ano. 

Mudança de vida

Em maio, a soldadora Josenilda Maria da Silva, 32 anos, foi escolhida como “madrinha” do navio João Cândido, o primeiro a sair do Estaleiro Atlântico Sul, no porto de Suape (PE). Casada e mãe de duas filhas, ela ficou cinco anos desempregada até ser selecionada para o estaleiro, três anos atrás. A concorrência era acirrada, mais de 5 mil inscritos para 500 vagas. Josenilda soube no último dia, por uma vizinha, inscreveu-se e entrou.
Antes, ela passou quase três anos em uma cerâmica. “Tentei outras áreas, mas não tinha nenhuma vaga disponível”, conta a trabalhadora, que agarrou a chance no estaleiro. “Eu me identifiquei com a solda e pretendo me aprimorar”, afirma, sem imaginar que um dia trabalharia nessa área, ainda mais depois dos avisos que recebia da mãe, quando pequena. “Ela me falava para tomar cuidado com a solda, para não ‘perder a vista’. Agora, trabalho com isso.”
O nome do navio homenageia o marinheiro que foi líder da chamada Revolta da Chibata, morreu esquecido em 1969, mas ficou eternizado na canção O Mestre-Sala dos Mares, de João Bosco e Aldir Blanc. A revolta, em 1910, foi contra os maus-tratos aos marinheiros, que chegavam a ser castigados com chicotadas. Em 2008, João Cândido foi anistiado e recuperou a patente. Em novembro, o centenário do movimento que liderou foi celebrado em várias manifestações pelo país.