Energia

Vida Transformada

Há quase quatro décadas o Brasil enfrenta embate entre ampliar potencial energético e conservar a identidade cultural das populações atingidas pela construção de barragens

Caio Coronel/Itaipu Binacional

Itaipu, assim como Tucuruí, Santo Antônio e Jirau, marcam a história do Brasil pela contradição entre a perspectiva do avanço econômico e tecnológico e a transformação socioambiental. Estima-se que o lago de Itaipu causou o êxodo de 42 mil pessoas

O  caminho é longo e, muitas vezes, percorrido com a ajuda de um barquinho. Eles vão remando e deixando para trás as águas escuras dos rios da região Norte até chegar às cidades mais próximas de suas vilas e povoados. E é assim que, desde novembro, os ribeirinhos se esforçam para participar das audiências públicas promovidas pelo Ministério Público Federal sobre a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, região de Altamira (PA). O projeto suscita divergências há mais de 20 anos.

“Os problemas causados durante essas construções são de várias ordens”, alerta Francisco Hernández, um dos coordenadores do painel de especialistas que examina a viabilidade de Belo Monte. “Os canteiros trazem um contingente de trabalhadores muito grande para as cidades, o que tem gerado aumento de criminalidade, prostituição, violência, tráfico de drogas. E a interrupção no curso dos rios provoca o alagamento das terras agricultáveis e das regiões em que vivem as populações ribeirinhas”, afirma Hernández.

Segundo estatísticas do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o número de pessoas que já passaram por algum tipo de deslocamento em consequência de aproveitamentos hidrelétricos já supera a marca de 1 milhão. Esse fenômeno traz resultados paralelos ao desenvolvimento previsto. Itaipu, Tucuruí, Santo Antônio e Jirau são nomes que marcam a história do Brasil pela contradição entre a perspectiva do avanço econômico e tecnológico e a transformação socioambiental nele implicada.

Em 1973, foi assinado o tratado que deu origem à usina de Itaipu, negociado entre Brasil e Paraguai havia uma década. A Itaipu Binacional é a empresa que gerencia a maior hidrelétrica do mundo. Naquela época a legislação ambiental não estava consolidada. A obra não contou com devidos estudos de impacto e, até entrar em operação em 1984, desencadeou uma série de implicações e transformou o perfil populacional da região. Se atraiu 40 mil trabalhadores, por outro lado estima-se que a área alagada, de 1.350 quilômetros quadrados, representou o êxodo de 42 mil pessoas.

Dali surgiram as primeiras mobilizações que mais tarde dariam origem ao Movimento dos Agricultores Sem Terra do Oeste do Paraná (Mastro) e também ao MAB. “Quando ribeirinhos recebem a notícia de que têm de sair da terra onde passaram toda a vida percebemos que, principalmente os mais idosos, depois de deslocados para grandes centros urbanos, não demoram muito a falecer”, relata Océlio Muniz, dirigente do MAB.

Segundo ele, o que começou apenas como uma luta por indenizações evoluiu para o questionamento sobre a construção das barragens e por um outro modelo energético. Para Muniz, no momento em que foram construídas, as hidrelétricas eram imprescindíveis. Mas acabaram ficando apenas a serviço do capital. “Em Itaipu, existem famílias que até hoje vivem sem energia elétrica morando embaixo dos linhões da usina”, ressalta, observando que a mobilização social e a melhoria da legislação ambiental – que acompanharam a democratização do país – provocaram uma mudança no tratamento e na interpretação das informações.

Imensidão de empregos

Ela nasceu no Maranhão. O pai era agricultor e a mãe, quebradeira de coco. “Saí da minha cidade para Tucuruí (PA) com 22 anos em busca de uma oportunidade. Tinha uma propaganda muito grande de que era fácil arrumar alguma coisa por lá”, conta Euvanice de Jesus Furtado, atingida indiretamente pela construção da hidrelétrica no Rio Tocantins, hoje coordenadora de Educação do MAB. “Quando cheguei vi que era mentira. As barragens já tinham sido construídas e grande parte dos empregos tinha sido gerada na construção.”

A maior usina totalmente brasileira, a 400 quilômetros de Belém, foi concebida para ajudar no desenvolvimento econômico da região Norte. Mas suas obras (1976-1984) reproduziram o mesmo inchaço populacional pelo qual passara o oeste do país com Itaipu. Tucuruí, que tinha 8 mil habitantes, está com quase 100 mil. “O povo costuma dizer que temos a divisão do céu e do inferno, porque as antigas vilas de operários conservam o nível superior de infraestrutura que conquistaram nos anos da construção, têm ar-condicionado, saneamento básico e casas que parecem mansões”, comenta.

Euvanice diz que 300 famílias moram à beira do rio, convivendo com problemas decorrentes da falta de condições para se adaptar à vida urbana. Com 28 anos, sem conseguir arrumar emprego nos arredores da hidrelétrica, ela foi tentar trabalho nas recém-criadas áreas urbanas. “Eu não tinha estudado pra trabalhar por um prato de comida, ou trabalhar o dia inteiro em uma lojinha pra ganhar meio salário mínimo.” Não tardou para ela começar a atuar no MAB, ajudando as comunidades ribeirinhas a ficar por dentro dos debates de temas que as afetavam.

E os avanços para a região? Euvanice responde que não foi beneficiada com energia nem com emprego. “Eu não perdi minha propriedade, mas estou com problemas seriíssimos porque moro perto da região das eclusas do rio.” Em relação às pessoas que tinham casa na área alagada, ela conta que a Eletronorte realocou a população para um local sem nenhum tipo de saneamento, em que não conseguiram ficar por conta dos mosquitos. “É o caso de ribeirinhos que passam por dois ou mais reassentamentos.”

Fornecendo quase toda a energia consumida nos estados do Pará, Tocantins e Maranhão, Tucuruí representa um marco para a produção energética brasileira, e dois períodos econômicos distintos. “Se antes nosso inimigo era o governo federal, hoje são as multinacionais. Antes você sabia com quem estava negociando, agora a gente não conhece quem está por trás do processo”, diz Euvanice, para quem ocorrerá o mesmo em Belo Monte.

divulgação/mabFamílias moram à beira do rio
Famílias moram à beira do rio em condições precárias na cidade de Tucuruí, que tem a maior usina totalmente brasileira, concebida para ajudar no desenvolvimento econômico da região Norte, mas cujas obras causaram inchaço populacional

Distâncias enfrentadas

Não é qualquer um que teria disposição para sair do Rio Grande do Sul para o extremo Norte brasileiro. No início de 2010, Rondônia foi o destino de Elias Paulo Dobrovolski. Filho de uma família atingida pelas barragens construídas no Rio Uruguai, em Itá, Elias, 20 anos, conheceu o MAB há três. “Simpatizei com a causa. Agora me pediram para reforçar a equipe do Norte do país. Hoje vivo em Porto Velho ajudando as comunidades ribeirinhas.” O cenário fica no curso de um dos principais afluentes do Amazonas, o Madeira, nas construções de Santo Antônio e Jirau. Coordenadas pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil (Enersus), as obras são consideradas fundamentais para o suprimento energético no Brasil a partir de 2013 e figuram na lista das mais importantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Estima-se que a construção injete na economia de Rondônia mais de R$ 40 milhões em seis anos, elevando Porto Velho a cidade de médio para grande porte. Elias já sente diferenças. “Com mais capital sendo gerado na cidade, o comércio e a malha viária estão sendo beneficiados”, observa. Por outro lado, há os problemas recorrentes. “Diferentemente do Sul, as empresas chegam com mais truculência para abordar a população, sem possibilidades de diálogo”, sinaliza. “São lugares que apresentam uma série de dificuldades, mas por acreditar no poder da mobilização social conseguimos abrir um canal para negociar”, enfatiza Elias.

Trabalhando de segunda a domigo ao lado das comunidades atingidas, a mobilização se dá pela garantia de que as comunidades terão reassentamento de qualidade. Embora os alagamentos das regiões próximas ainda não tenham ocorrido, alguns povoados já tiveram de ser deslocados em função do canteiro de obras, como as populações de Teotônio e Mutum Paraná. “Essas pessoas trabalharam a vida inteira com pesca, extrativismo e garimpo, não têm formação para trabalhar na indústria. Como vão conseguir emprego nas áreas urbanas?”, questiona.

Com 90% de trabalhadores vindo de fora do estado, aumentam os casos de malária e dengue na região. Elias diz que as obras estão a todo vapor e que o governo espera reduzir em 33 meses o tempo de execução da Usina de Jirau. “O pensamento de que é possível construir sem destruir não existe. Um exemplo bem simples, o bagre, que é base de alimentação e de renda para muitas famílias, vai deixar de existir porque é um peixe de águas correntes, não se reproduz em águas paradas”, explica. O jovem não pretende se afastar da luta social: “Meu sonho é estudar Direito e continuar praticando minha militância, seja no Rio Grande do Sul ou aqui”.

O rio e a modernidade

Moisés da Costa Ribeiro, 37 anos, articulador do MAB, vive na região de Altamira, próxima às futuras obras da Usina de Belo Monte. Para ele, um dos impactos mais importantes, e pouco levado em consideração em todos os debates sobre o futuro da comunidade ribeirinha, é a perda do contato com o rio: “O envolvimento sentimental com o rio é esquecido e, para eles, não há dinheiro ou indenização que substitua o contato, o convívio”. Com o objetivo de ser a terceira maior hidrelétrica do mundo e com uma produção estimada em cerca de 11 mil megawatts (MW), Belo Monte também é uma das principais obras do PAC. As áreas inundadas estarão localizadas nos municípios de Vitória do Xingu, Brasil Novo e Altamira.

Moisés diz que o futuro dessas comunidades é um filme já visto. “Quantos estados já sofreram consequências de ter suas comunidades deslocadas, as estruturas familiares totalmente alteradas?”, enfatiza. “Com o incentivo às construções de grande porte, a perda da identidade cultural é cada vez maior e com maior frequência”, acrescenta. Para ele, que deixou o interior do Pará aos 17 anos e passou a viver com o irmão em Belém para continuar os estudos, a energia a ser produzida por Belo Monte não seria destinada ao estado. “Quem precisa dessa quantidade de energia são as grandes empresas produtoras e consumidoras. As famílias que perderam suas propriedades não vão ser recompensadas com o aumento do potencial. Cabe a nós levar as informações necessárias e, acima de tudo, estimular a participação das comunidades, até porque essas pessoas não se incomodam em pegar todos os dias seus barquinhos para isso.”

Segundo ele, o que começou apenas como uma luta por indenizações evoluiu para o questionamento sobre a construção das barragens e por um outro modelo energético. Para Muniz, no momento em que foram construídas, as hidrelétricas eram imprescindíveis. Mas acabaram ficando apenas a serviço do capital. “Em Itaipu, existem famílias que até hoje vivem sem energia elétrica morando embaixo dos linhões da usina”, ressalta, observando que a mobilização social e a melhoria da legislação ambiental – que acompanharam a democratização do país – provocaram uma mudança no tratamento e na interpretação das informações.

O que dizem as empresas
Todo grande empreendimento gera impactos socioambientais. É sob essa avaliação que a superintendente de Meio Ambiente da Eletronorte, Silviani Froehlich, analisa a relevância das construções de grande porte e o período posterior às obras da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. No entanto, diz, esse processo não acarreta a perda da identidade cultural de populações locais. “A Eletronorte criou junto à Funai o Programa Parakanã, considerado modelo de preservação histórica”, afirma.

De acordo com a empresa, em 1986 eram 247 índios e em 2009 já se contabilizavam 784. Em relação aos reassentamentos, Tucuruí precisou realocar 4.407 famílias. Silviani admite que, nas primeiras fases da obras, algumas foram assentadas em regiões de fácil proliferação de mosquitos em virtude da água parada nas áreas de construção. Entretanto, ela ressalta que desde 2003 a Eletronorte decidiu rediscutir todos os processos que já estavam juridicamente solucionados: “Eles foram simbolicamente reabertos para todos os moradores atingidos e que não se sentiram contemplados”.

No caso do debate sobre a construção de Belo Monte, a gerente Tereza de Rozendo Pinto, do Departamento de Responsabilidade Social e Projetos com a Sociedade, da Eletrobras, afirma que há um canal de discussão com a sociedade. “Ocorreram quatro audiências públicas, em Belém, Brasil Novo, Vitória do Xingu e Altamira, nas quais compareceram cerca de 8 mil pessoas que puderam expor críticas e reivindicações.”

Sobre o impacto das alterações ambientais na vida dos moradores, Tereza afirma que para preservar o bagre será usada uma tecnologia que há mais de 30 anos foi implantada em Itaipu, com as devidas adaptações e que, no projeto de construção, está garantida a vazão mínima do rio para que a atividade pesqueira seja mantida. 

Em Rondônia, o consórcio Enersus informou que reuniu profissionais para participar da primeira reunião do grupo de trabalho indígena da Usina Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia. De acordo com a empresa, interagir com a sociedade é muito eficiente e o desgaste é menor quando os interessados se reúnem para debater o que será posto em prática.