Energia

Divisor de águas

De um lado, a opção pelas hidrelétricas como forma “limpa” de produzir a energia necessária ao desenvolvimento. De outro, movimentos exigindo a busca de alternativas sustentáveis aos impactos das construções de barragens. Esse será um dos grandes embates da próxima década

Ricardo Moraes/Reuters

Vista aérea do Rio Xingu, no local onde se prevê a construção da hidrelétrica de Belo Monte

O  dilema entre as necessidades energéticas do Brasil e os limites da responsabilidade socioambiental fazem da usina hidrelétrica de Belo Monte, literalmente, um divisor de águas. O empreendimento é parâmetro para futuros projetos na região amazônica, onde se encontram, segundo dados do governo, dois terços dos futuros aproveitamentos hidráulicos do país. Por isso desperta resistência entre entidades ambientalistas e ligadas à causa indígena, que veem no projeto que prevê a inundação de 500 quilômetros quadrados um atentado à fauna e às comunidades da região. Algo que, segundo as mesmas entidades, poderia ser evitado se o governo federal optasse por fontes de energia menos impactantes, como a eólica, para a expansão da matriz energética.

De acordo com projeções da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) para o Plano Decenal de Expansão de Energia – de 2010 a 2019 –, o setor elétrico brasileiro, que hoje responde pela produção de 109 mil megawatts (MW), precisa aumentar essa capacidade em quase 6% ao ano para acompanhar as projeções de crescimento do país. Segundo a EPE, estatal encarregada do planejamento do setor elétrico, as usinas hidrelétricas continuarão a ser a principal fonte a atender a essa demanda na próxima década. O plano prevê a implementação de projetos que somarão mais de 35 mil MW. Dois terços dessa estimativa são constituídos por projetos já licitados ou em construção – o que abrange as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira (RO), e a de Belo Monte, no Rio Xingu (PA).

Hidrodependência (Fonte: Agência Nacional de Energia Elétrica)A EPE projeta para 2014, com as obras já contratadas, um excedente de quase 6 mil MW de energia. Ou seja, conta-se com a execução dos novos projetos de usinas hidrelétricas para que o país assimile o crescimento dos próximos anos sem o risco de apagões.

É assunto para os próximos governos. No fechamento desta matéria, os programas dos dois principais postulantes à Presidência da República ainda não haviam sido registrados. O site de José Serra (PSDB) tinha uma área de propostas destinada a colher sugestões de internautas que se cadastrassem. Na página de Dilma Rousseff (PT), a questão, citada superficialmente, menciona a proteção ao meio ambiente “reduzindo o desmatamento e impulsionando a matriz energética mais limpa do mundo… desenvolvendo nosso potencial hidrelétrico”.

O diretor de Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luiz Pinguelli Rosa, ex-presidente da Eletrobrás, concorda que o desenvolvimento do país passa necessariamente pelas construções de novas hidrelétricas. “A princípio, sou a favor da construção de Belo Monte, mas as condições de vida na região são muito precárias. Há a necessidade de se chegar a um acordo, porque a questão das terras indígenas é um fator complicador”, pondera.

Ricardo Moraes/ReutersAltamira
Em Altamira as opiniões sobre Belo Monte se dividem. Alguns acreditam em benefícios, mas a cidade pode acabar como Tucuruí

Polos opostos

Belo Monte obteve a concordância do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no início deste ano. A licença prévia foi condicionada ao cumprimento de 40 exigências mais uma contrapartida de R$ 1,5 bilhão para efeito de compensação dos impactos decorrentes da construção. No setor elétrico e no governo, a usina é considerada vital para garantir a segurança energética e proporcionar uma energia considerada barata para a população, dando suporte ao forte ritmo de crescimento econômico experimentado pelo Brasil. O governo considera que, em remodelações realizadas nos últimos anos, o projeto da usina se tornou mais palatável em relação à questão ambiental. Houve redução significativa do tamanho do lago da usina, considerada pela administração federal uma alternativa limpa para a ampliação do parque gerador brasileiro, em uma conjuntura recente marcada pela expansão da geração termelétrica à base de derivados de petróleo, poluente e emissora de gases de efeito estufa.

A usina no Rio Xingu passou a se tornar realidade com a realização do leilão de sua concessão, no último dia 20 de abril. O Consórcio Norte Energia foi o vencedor por oferecer o lance com o menor custo do megawatt-hora gerado: R$ 78. O consórcio é formado pela geradora federal Chesf, do grupo Eletrobrás (com 49,98% de participação no empreendimento), com outras oito construtoras privadas. Projetada com uma capacidade instalada de 11,2 mil MW, Belo Monte deverá exigir investimentos de R$ 25 bilhões. A expectativa do governo é a de que a primeira máquina geradora comece a operar em 2014.

A quantidade de questionamentos ao projeto, arrolados por ambientalistas e entidades de defesa das populações indígenas, é enorme. “O projeto da usina provocará um enorme impacto, direto e indireto, ao meio ambiente”, prevê Ricardo Baitelo, coordenador da campanha de energia do Greenpeace Brasil. A usina, segundo ele, mudará o fluxo do Rio Xingu, afetará a navegação e limitará o deslocamento das comunidades indígenas que têm na canoa o seu meio de transporte. A mudança no fluxo também afetará a vida do rio ao alterar a velocidade das águas, com impacto nas espécies de peixes. 

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Haverá desmatamento direto, para a construção do lago, e indireto, resultante da expansão da população e da atividade econômica principalmente em Altamira, o maior dos municípios abrangidos pela usina. Com o fluxo de pessoas em busca de trabalho, as cidades da região incharão, prevê Baitelo. Isso provocará crescimento das necessidades de serviços e produtos que também provocarão impacto na paisagem da região.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), também teme um impacto semelhante ao sofrido no município de Salgueiro (PE), com a forte migração provocada pelas obras de transposição do Rio São Francisco. “A migração veio acompanhada de drogas, prostituição e outras formas de degradação social”, diz Saulo Ferreira Feitosa, secretário-adjunto do Cimi.

A usina afetará ainda o cotidiano das comunidades indígenas locais. “São 11 os povos que serão afetados pela formação do reservatório da usina ou pela grande corrente migratória”, diz Feitosa. O mais grave alerta feito pelo Cimi, contudo, é a possibilidade de o alagamento a ser provocado pela usina causar um genocídio. “Há indícios da existência de índios isolados na região. Qualquer obra que se faça coloca em risco a existência desses povos”, afirma o secretário-adjunto. O organismo estima que existam em todo o país cerca de 60 povos ainda não contatados.

O Cimi questiona na Justiça a construção de Belo Monte. “A realização de projetos como a hidrelétrica em terras indígenas deve ocorrer se for caracterizado o relevante interesse da União. Até o momento, contudo, não existe lei que determine o que é esse relevante interesse da União”, argumenta Feitosa. Ele observa que o Brasil é signatário da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina que qualquer obra a ser realizada em terras indígenas deve passar por consulta aos povos que a habitam. Segundo ele, a Funai realizou reuniões no Xingu e o governo concebeu que as consultas foram realizadas, mas teriam sido feitas de forma a simplesmente chancelar o projeto. “O que deveria ser explicitado são os outros projetos que vêm por aí. São mais de 300 hidrelétricas previstas para a Amazônia”, acrescenta. “Esses projetos provocarão um impacto enorme.”

Ricardo Moraes/ReutersXingu
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Fio d’água

Segundo os técnicos do governo, o formato final do projeto de Belo Monte é tratado como “o possível”, ou seja, embutiu características – o formato fio d’água – que reduziram o seu impacto ambiental e também a sua capacidade de produção de energia. Maurício Tolmasquim, presidente da EPE, admitiu essa condição em audiência realizada no Senado em meados de junho, quando afirmou que a quantidade de famílias a serem deslocadas (4.500) é pequena, em comparação a outros projetos, e que as condições de moradia a serem oferecidas serão muito melhores que as palafitas em que viviam. “Vimos isso na usina Jirau, em que foram oferecidas às famílias deslocadas ótimas casas, com água encanada, energia etc.”

O presidente da EPE afirmou também que Belo Monte permitirá a melhoria do sistema elétrico interligado nacional ao possibilitar a complementação da produção de energia de acordo com os diferentes regimes pluviométricos. Segundo os técnicos do setor, enquanto a hidrelétrica, assim como as demais usinas da região Norte, estiver no período de chuvas, produzindo no máximo de sua capacidade, as usinas do Sudeste/Centro-Oeste estarão na seca. Essa complementaridade é o que aperfeiçoaria o sistema interligado nacional. Tolmasquim tem observado que as pressões contra os projetos de hidrelétricas acabaram por atrasar ou inviabilizá-los, o que contribuiu para que o governo federal fosse obrigado a realizar leilões de usinas termelétricas a diesel e a óleo combustível para garantir oferta de energia elétrica no curto prazo.

“O mercado está crescendo e o sistema elétrico precisa de mais usinas”, defende Silvio Areco, da empresa de consultoria Andrade & Canellas. Ele destaca, porém, que a predominância de projetos de usinas fio d’água nos últimos anos é preocupante devido aos custos que a formação de reservatórios propiciam aos empreendedores e ao rigor do processo de licenciamento.

O diretor de Regulação da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres (Abrace), Luciano Pacheco, nega a acusação recorrente entre os ambientalistas de que os grandes consumidores de energia e os autoprodutores serão os beneficiados pelos preços mais baixos da eletricidade a ser produzida por Belo Monte. Pacheco afirma que 70% da energia gerada pela usina será destinada ao mercado regulado – principalmente os consumidores residenciais –, 20% para os autoprodutores e 10% para os consumidores livres, os grandes consumidores industriais.

O valor estabelecido em leilão será praticado para o fornecimento ao mercado regulado. “Não foi estabelecido ainda o valor para o mercado livre e para os autoprodutores”, diz ele. A expectativa é de que a tarifa a ser estabelecida para o mercado livre seja superior justamente para viabilizar a oferta de energia mais barata para o mercado regulado.

Longas e antigas desavenças
Em 1975, o governo iniciou estudos de inventário do potencial hidrelétrico da bacia hidrográfica do Rio Xingu e, em 1980, os planos  do chamado complexo hidrelétrico de Altamira, constituído por duas usinas: Babaquara, com capacidade de 6 mil MW, e Kararaô, com 11 mil MW. Em 1986, as duas usinas foram incluídas no Plano 2010 da Eletrobrás, que previa a construção de 165 usinas em 14 anos.

Os projetos despertaram resistência. O ponto mais alto dessa reação foi o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro de 1989, em Altamira (PA). O cantor inglês Sting participou. Na ocasião, a índia Tuíra, da tribo caiapó, dirigiu-se ao então diretor de Engenharia da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, atual presidente da Eletrobrás, e encostou-lhe no rosto o terçado – facão usado para abrir a mata. Kararaô gerou resistência especialmente por tomar emprestado, no seu batismo, o grito de guerra dos caiapós. O governo decidiu rebatizá-la de Belo Monte. Diante da pressão contrária aos empreendimentos, o Banco Mundial negou-se a financiá-los, assim como qualquer projeto de hidrelétrica na Amazônia.

Belo Monte sairia da gaveta em 1994, remodelado, desacompanhado de Babaquara e com uma área de alagamento menor, um terço do projeto original, excluindo parte da área indígena. Após o apagão de 2001, o projeto da hidrelétrica foi incluído em um pacote emergencial que continha outros 15, com a missão de garantir segurança energética ao país. O projeto não decolou por conta da grande resistência que voltou a provocar e uma batalha judicial que se arrastou por meses. Reabilitada pelo governo Lula, a usina, assim como as de Jirau e Santo Antônio, passou a ser vista como capaz de conferir maior segurança energética ao país, em um cenário em que se projeta a manutenção de índices elevados de crescimento econômico.