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Papagaio do futuro e da esperança

Alceu enche a bola dos Pontos de Cultura, diz que o novo tempo “demorou, mas chegou”, e ainda cobra espaço para a produção cultural brasileira

Bark Studio (www.barkstudio.net)

As cidades estão mais limpas, as casas bem pintadas, as praças ajardinadas, o povo mais feliz

Com 38 anos de carreira, o cantor e compositor pernambucano Alceu Valença continua criativo, rebelde, crítico da indústria cultural, da importação de modelos e da falta de divulgação dos artistas brasileiros. Perto de completar 64 anos, em julho, continua com a vitalidade dos anos 1980, auge de sua carreira, e ainda cativa o público jovem, que revisita suas canções, olha com curiosidade para seus novos trabalhos, suas misturas de sons e ritmos.

Herdeiro musical de Luiz Gonzaga, de Jackson do Pandeiro e de Dorival Caymmi, Alceu deu novo brilho aos ritmos regionais, como baião, coco, toada, maracatu, frevo, caboclinhos, embolada, repentes. Em seu primeiro disco, lançado em 1972 em dobradinha com Geraldo Azevedo, já punha um tempero rock’n’roll nas batidas tradicionais nordestinas que continuaram marcando docemente o compasso de sua história musical, inclusive nos clássicos como Coração Bobo, Espelho Cristalino, Morena Tropicana, La Belle d’Jour, entre outros.

Nas letras das canções Papagaio do Futuro e Espelho Cristalino, ainda nos 70, Alceu já expunha a questão ambiental. O artista, aliás, sempre foi um inquieto “militante” da diversidade cultural brasileira. E da esperança, sentimento presente em muitas de suas letras, falando de amor ou da natureza.

Em suas turnês pelo exterior, o pernambucano influenciou artistas americanos, europeus e brasileiros das gerações mais recentes como Chico Cesar e Zeca Baleiro. Foi um divulgador do movimento manguebeat, de Chico Science e o Nação Zumbi. E considera que as imposições estéticas do imperialismo cultural americano e a falta de divulgação por parte dos veículos de comunicação de massa ainda dificultam o surgimento de novos artistas no país.

Com 28 álbuns lançados, Alceu Valença surgiu para o grande público na apresentação ao vivo no 7º Festival Internacional da Canção – tido como o último dos grandes –, com Papagaio do Futuro. Era 1972, o clima de ebulição dos episódios anteriores não era mais tolerado pela ditadura, a Globo cedia a todas as pressões e as caras começaram a mudar. Despontavam nomes como Belchior, Ednardo, Fagner, Walter Franco, Raul Seixas, Sérgio Sampaio. A fase nacional foi vencida por Fio Maravilha (de Jorge Ben, com Maria Alcina), e Diálogo, samba de Baden Powel e Paulo César Pinheiro.

Alceu não figurou entre os primeiros, mas levantou a plateia ao se apresentar na companhia de Geraldo Azevedo e Jackson do Pandeiro. “Estou montado no futuro indicativo/ Já não corro mais perigo/ Nada tenho a declarar/ Terno de vidro costurado a parafuso/ Papagaio do futuro/ Num para-raio ao luar…/ Eu fumo e tusso/ Fumaça de gasolina/ Olha que eu fumo e tusso/ É fumaça de gasolina.”

Nos anos 1980 emplacou um clássico que fez história, o disco Cavalo de Pau, e nos anos 1990 outro, O Grande Encontro, na companhia de Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Elba Ramalho.

Alceu é um entusiasta dos Pontos de Cultura, programa criado pelo Ministério da Cultura em 2005 que, por meio de convênios, fortalece iniciativas artísticas desenvolvidas pela sociedade civil nas comunidades. Atualmente, existem mais de 650 deles espalhados pelo país: “Esse projeto favorece realmente os mais carentes, mas a barreira ainda está na mídia, na imprensa. Precisamos aprofundar a discussão e a divulgação da cultura brasileira, que têm de ser em escala bem maior”, disse numa entrevista.

Em seu blog, o músico expressou assim a percepção de mudanças que vêm acontecendo no país: “Desde o início da minha carreira, botei o pé na estrada, me doía ver a miséria berrante da maior parte de nossa gente, quase sempre negros, caboclos, quase sempre nordestinos. Mês passado, ao viajar, em busca de locações para a Luneta do Tempo, pelo interior do agreste de Pernambuco (São Bento, Pesqueira, Alagoinha, Cimbres), me comovi vendo que os lugares por onde passei estão caminhando para um nível de vida mais digno. As cidades estão mais limpas, as casas bem pintadas, as praças ajardinadas, o povo mais feliz. Tenho consciência que precisamos avançar muito mais, sobretudo, na educação e na saúde. Cada vez mais acredito no Brasil e em nossa gente”.

E a esperança e a alegria que marcam sua poesia e sua música parecem continuar firmes na sua forma de pensar e ver o Brasil: “Demorou, mas chegou. Um novo tempo. Conseguimos resistir, por décadas, a toda sorte de colonialismo, intempéries sociais, econômicas e políticas. Saímos fortalecidos, mais maduros, sabendo, inclusive, que o processo está no início e que, portanto, precisamos continuar trilhando esse novo caminho. Não precisamos mais seguir a cartilha de ninguém. Agora negociamos com países africanos, árabes, europeus e asiáticos sem tutor e sem chancela de ninguém. Alegria, minha gente, alegria…”

Cinema de cordel

Por Guilherme Bryan

Alceu Valença estreia como diretor de cinema em A Luneta do Tempo, numa viagem musical embalada pela poesia repentista, os mitos do cangaço e a diversidade da arte popular nordestina

alceu

Primeiro filme do cantor e compositor Alceu Valença, A Luneta do Tempo foi realizado durante quase uma década, principalmente em São Bento do Una, terra natal do artista no sertão de Pernambuco. E tem previsão para estrear este ano. “Não é a minha história. Mas sempre criamos obras em cima de bases que possuímos”, explica Alceu. No blog Papagaio do Futuro ele revela: “É um mergulho que faço em minha infância, no meu passado, e esse passado tem a trilha sonora das ruas do Nordeste, dos cantadores anônimos, coquistas, violeiros, emboladores, cegos arautos de feira, da música de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, do samba-canção dos anos 50, da música contemporânea brasileira. Um documento para pensar a cultura do Brasil e do Nordeste”.
O filme começa com Lampião (Irandhir Santos, de Besouro) e seu comparsa Severo Brilhante (Bahia, caseiro de Alceu Valença) perseguidos pelos policiais de Antero Tenente (Aramis Trindade). Severo Brilhante chega a capturar o tenente e a torturá-lo. Tempos depois leva o troco e é morto por Antero. Lampião, junto com Maria Bonita (Hermila Guedes, de O Céu de Suely), tem o mesmo destino. No Purgatório, Maria Bonita tenta convencê-lo de que morreram, mas ele não aceita. Encontra uma luneta com a qual consegue ver o passado e o futuro. E toma conta do pedaço.

À São Bento do Una de antigamente, reproduzida na Vila de Cimbres, em Pesqueira (PE), chega o circo do ítalo-libanês Nagib Mazola (Ceceu Valença, filho de Alceu). “O circo é o motivo para uma tragédia, uma vez que, quando ele chegava às cidades do interior, as meninas ficavam loucas pelos circenses e as traições aconteciam”, conta o diretor. Mazola tem um caso com a mulher de Antero Tenente, dona Dodô, e Antero Filho do pai só leva o nome. A viúva de Severo Brilhante, Nair, parte com o circo e também tem um filho de Mazola, Severo Filho (Ari de Arimatéa), que sonha ser Luiz Gonzaga. Sem saber de seus laços de sangue, Antero Filho e Severo Filho vão se confrontar. Está pronto o picadeiro da tragédia grega, que será toda narrada em versos e acompanhada por um cordelista, Zé do Monte.

A história começou a ser escrita em 1999, ano da morte do pai de Alceu Valença, Décio de Souza Valença, advogado, deputado constituinte de 1946 e proprietário da fazenda Riachão, onde foram rodadas algumas cenas do filme. O texto girava em torno da história de Lampião, tema recorrente nas reuniões familiares, uma vez que o pai estivera em Angico, onde o bando do Rei do Cangaço foi encontrado morto. “Ao chegar lá, papai viu os corpos degolados e, por acaso, levou um chapéu de cangaceiro para casa. Foi quando começou uma discussão que até hoje permanece, dividindo as pessoas entre aquelas que diziam que Lampião era um herói do povo, que roubava dos pobres para dar aos ricos, e as que o consideravam um bandido safado. Essa história rodeou a minha infância”, recorda. Em 1997, Alceu Valença interpretaria o cangaceiro na telenovela Mandacaru, da Rede Manchete, com Daniela Mercury de Maria Bonita.

Mãos à obra
A paixão de Alceu Valença pelo cinema vem desde a infância, quando assistia aos filmes do norte-americano Roy Rogers e à antiga série Super-Homem. Com 16 anos, quando morava em Recife, via muita chanchada e começou a jogar basquete. “Passaram a me chamar de Jean-Paul Belmondo (ator famoso pelos filmes do movimento francês nouvelle vague), porque eu era superparecido com ele, só que muito mais bonito”, brinca. Alceu conta que ficou emocionado quando caminhou, em Paris, na rua onde Belmondo gravou a cena final de Acossado, de Jean-Luc Godard (1960).

Em 1974, Alceu foi protagonista do filme A Noite do Espantalho, do compositor Sérgio Ricardo, e atuou em dois curtas do cineasta pernambucano Jornard Muniz de Brito. “Eu era o único dos atores que ficava o tempo todo olhando no visor. Eu gostava de ver os quadros”, lembra. A partir de 1983, passou a comprar câmeras e filmar tudo o que encontrava pela frente.

Quando começou a rabiscar A Luneta do Tempo, o autor de Tropicana escrevia textos aleatoriamente. Um dia os mostrou ao paraibano Walter Carvalho, consagrado diretor de fotografia (Abril Despedaçado, Carandiru, Entreatos) e diretor de obras como Cazuza, Budapeste e o recém-acabado Raul – O Início, o Fim e o Meio, documentário sobre o mito do rock nacional. Ao ler o trabalho de Alceu, Carvalho decretou: “Isto é  cinema!” Mas acabou não levando adiante o convite para trabalhar com a descoberta. O músico pernambucano decidiu então estudar roteiro e cinema e tocar o projeto.

Enquanto o produtor Tuinho Schwartz o inscrevia na Agência Nacional de Cinema (Ancine), Alceu Valença cuidava da seleção dos atores. Antes de filmar, passou a realizar um “storyboard sonoro” (uma espécie de rascunho do que será efetivamente gravado), que teve quatro versões, com todos os diálogos, músicas e efeitos como tiros e cavalo correndo e relinchando. “Apesar de achar que existem grandes atores no Brasil, eu queria um trabalho muito forte do ator, partindo do método que criei”, conta Alceu, que contou com o auxílio do preparador de elenco Bruno Costa.

Também responsável pela trilha musical, Alceu Valença interpretaria quatro personagens, mas ficou sem nenhum. E, por mais que planejasse cenas, confessa que muitas soluções saíram mesmo de improviso: “Eu trabalhava 12 horas por dia, viajava 2 na ida e na volta, tinha 1 para o almoço e, quando voltava para a cidade onde estávamos hospedados, trabalhava no plano de filmagem e não dormia. Os personagens não deixavam. Eu querendo dormir, e esses danados conversando comigo. Traçava planos, mas na hora H eu chegava e ia inventando”.

Muitas das canções de Alceu Valença também são cinematográficas. “O que eu faço é cinema, mas só depois de A Luneta do Tempo é que comecei a observar essa característica em várias músicas”, diz. Como em Casaca de Couro: “Corte brusco para a avenida/ Os sinais estão fechados/ Uma égua campolina/ Galopava entre os carros/…  Vinha em câmera lenta/ Projetada quadro a quadro”.

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