Perfil

A sanfoneira caçula

Irmã do Rei do Baião, a forrozeira Chiquinha Gonzaga está chegando aos 85 anos e não tem a menor vontade de se aposentar

Chico Porto/JC Imagem

Disposto a arrumar trabalho para a família inteira, Gonzagão criou o grupo Os Sete Gonzagas, formado por ele, o pai e mais cinco irmãos, incluindo a jovem Chiquinha Gonzaga

A sanfoneira Chiquinha Gonzaga levou três surras de sua mãe, dona Santana. As três de cinto e pelo mesmo motivo: a teima em tocar o fole de oito baixos do irmão mais velho. Hoje, “adoentada” depois de ter sido atropelada quando caminhava pelas ruas da praia de Boa Viagem, em Recife, onde mora, ela não sofre mais resistência de ninguém. A briga é com o próprio corpo. Chiquinha quer reunir forças para gravar um documentário sobre sua vida e, quem sabe, o terceiro disco de sua instável carreira. Não se deve subestimar nunca a força de uma sertaneja. Além de enfrentar a mãe e o machismo da sociedade nordestina, Chiquinha sempre carregou o peso de ser irmã do cabra mais respeitado de suas bandas, não só o rei de seu instrumento, mas o inventor do baião: Luiz Gonzaga (1912-1989).

Dos nove filhos de dona Santana e seu Januário, apenas dois estão vivos: Chiquinha e Muniz, sua irmã mais nova e caçula da família, que fez a vontade da mãe e nunca se atreveu a encostar o dedo numa sanfona. “Eu sei que minha responsabilidade é grande, meu filho”, diz Chiquinha. “Não só por ser a única representante dos Gonzaga, mas também por manter vivos o forró e o baião. O que eles tocam por aí não tem nada a ver com forró: é música sem tradição, feita para mulher tirar a roupa.” Chiquinha não dá nome aos bois, mas ela se refere claramente à banda Calypso e a grupos similares, que fazem imenso sucesso misturando ritmos nordestinos com música pop. “Eles vendem o peixe dizendo que é forró, mas não é, não”, diz, encerrando o assunto. Ela só conseguiu tocar sanfona quando Luiz Gonzaga, já famoso e liderando as paradas de sucesso de Rio e São Paulo, resolveu levar toda a família de Exu para o Rio de Janeiro.

Se viajar do sertão pernambucano para qualquer cidade do sul do Brasil ainda hoje é uma aventura, imagine no começo da década de 1950. O percurso da família consumiu 18 dias. Chiquinha faz um esforço de memória para relembrar exatamente o dia em que pisou no Rio de Janeiro. “Meu filho, só sei que foi uma emoção enorme. Luiz estava fazendo sucesso e era muito querido pelos cariocas. Essa foi nossa sorte.” De fato, quando seu Januário e dona Santana chegaram à então capital brasileira, seu filho mais talentoso havia tomado conta da cidade. Já era uma estrela, um dos artistas do primeiro time da Rádio Nacional (uma espécie de TV Globo da época), e não precisava mais ganhar a vida tocando tango e valsas nas zonas de meretrício da cidade.

Generoso, disposto a arrumar trabalho para a família inteira, Gonzagão criou o grupo Os Sete Gonzagas, formado por ele, o pai e mais cinco irmãos, incluindo, mesmo sob os protestos de dona Santana, a jovem Chiquinha Gonzaga. Ela seguiu os passos do pai, mestre da sanfona de oito baixos, e adotou imediatamente o instrumento. Fizera o certo, já que Januário, sentindo o peso da cidade grande, decidiu voltar com parte da família para Exu. “O grupo fez sucesso por dois meses. Meu irmão tinha feito a parte dele, ajudado, mas depois cada um tinha de fazer o seu futuro”, conta Chiquinha. E o de Chiquinha foi ao altar. Casada, futura mãe de três filhos, ela deixou a vida artística para virar dona de casa. Tocar sanfona, apenas para o divertimento dos filhos – um deles, Sérgio, hoje acompanha a mãe em seus shows. 

Só nos anos 70 a sanfoneira voltou a viver de música. O pai de Oswaldinho do Acordeon, afilhado de Chiquinha, havia aberto uma casa de forró no bairro do Brás, em São Paulo, e fez questão de convidar a comadre para animar os bailes. Na época, o próprio Luiz Gonzaga enfrentava um período de baixa popularidade (todos os artistas de rádio acabaram sendo “vitimados” pelo advento da bossa nova e, depois, da jovem guarda) e acabara de ser resgatado pelos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil – Caetano regravou Asa Branca e Gil, 17 Légua e Meia. Com o baião de volta às paradas, a casa de forró do pai de Oswaldinho vivia lotada, e Chiquinha por um bom tempo alimentou os três filhos com seu fole de oito baixos.

Pronde tu vai?

Acostumada aos altos e baixos da carreira, Chiquinha foi levando a vida. Já havia aposentado a sanfona quando recebeu o convite para gravar um depoimento no filme Viva São João, de Andrucha Waddington, lançado em 2001. Durante as filmagens acabou fazendo amizade com um velho fã de Gonzagão, aquele mesmo que anos antes contribuíra para o ídolo voltar ao trono de Rei do Baião. Gilberto Gil insistiu para que Chiquinha gravasse seu primeiro disco. O compositor baiano não só produziu o álbum Pronde Tu Vai, Luiz?, gravado em 2002, como participou de duas faixas. “Gil me ajudou muito, muito mesmo. Ele gostava mesmo de meu irmão, de verdade”, lembra, emocionada. Apadrinhada pelo tropicalista, conseguiu agendar alguns shows pelo país.

Quando a sanfoneira completou 80 anos, em 2005, seu filho Sérgio conseguiu que ela gravasse o segundo disco, Chiquinha Gonzaga 8 e 80, uma brincadeira com o número de baixos de sua sanfona (instrumento raramente utilizado pelos sanfoneiros de hoje) e sua idade. “Quando você acha que ela vai desistir, aposentar de vez, ela se anima e volta para a estrada como se fosse uma menina”, diz Sérgio. Chiquinha não vê a hora de sarar das feridas causadas pelo atropelamento – ela ainda sente dores nas costas e nos braços – para voltar à estrada. Em julho do ano passado, participou da homenagem a Luiz Gonzaga organizada pela Secretaria da Cultura de São Paulo.

Chiquinha, representando o Rei do Baião, recebeu a Ordem do Ipiranga, a mais alta honraria do governo do estado. “Aquele carequinha me prometeu que me chamaria de novo para tocar em São Paulo este ano”, diz Chiquinha, se referindo a José Serra, na época governador. “Ele pensa que não, mas eu vou cobrar!”