cultura

Sertão além-mar

As temporadas de João Cabral de Melo Neto na Espanha deram um sabor ibérico a sua poesia. E um toque marxista ao pensamento de uma criativa geração espanhola em plena repressão franquista

João Correia Filho

Mulher e Pássaro: Escultura de Miró em Barcelona

Morte e Vida Severina não tinha sido escrito quando João Cabral de Melo Neto chegou a Barcelona para trabalhar como vice-cônsul do Brasil na Espanha. Seguia o ano de 1947, em plena ditadura de Francisco Franco, e o pernambucano franzino, nascido em Recife, era apenas um jovem poeta, com 27 anos e três livros lançados. Talvez nem imaginasse que os três primeiros anos que viveria na região da Catalunha bastariam para que sua obra sofresse mudanças irreversíveis, na temática e na forma de escrever. Foi a primeira etapa na Espanha de uma carreira diplomática que o levaria a morar ainda em Madri (1960-1962), Sevilha (1956 e 1962-1966) e, novamente, Barcelona, em 1967, já como cônsul-geral.

“Essa experiência deixa marcas profundas em sua obra, notadas em diferentes níveis da sua criação. Sua relação com a Espanha é tema presente em metade dos poemas do livro Paisagens com Figuras (1954), além de obras completas de inspiração espanhola, como Crime na Calle Relator (1987) ou Sevilha Andando (1990)”, explica Melcion Mateu, pesquisador catalão da obra de Cabral que recentemente dedicou um estudo sobre sua passagem pela cidade de Barcelona.

Segundo Melcion, a tradição ibérica, em particular o seu gosto pela poesia medieval castelhana, acaba por tornar-se a espinha dorsal da poética de Cabral, coincidindo com sua maturidade como escritor. Morte e Vida Severina, uma de suas obras mais conhecidas, escrita em meados dos anos 1950 totalmente envolta no imaginário do retirante que busca a vida fora do sertão, encenada em 1966, é ao mesmo tempo embebida na métrica e na rítmica da poesia espanhola e reconhecida na tradição popular nordestina, dos repentistas e da literatura de cordel.

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Arnau Puig: “Cabral representava para nós uma oportunidade de liberdade, de falar de política e de arte sem que fôssemos perseguidos”

Influência recíproca

Mas a passagem de João Cabral por Barcelona não foi um caminho de mão única. É também dessa estadia que nasce a amizade com jovens intelectuais e artistas da vanguarda catalã, como o crítico de arte Arnau Puig, o pintor Antoni Tàpies e o poeta Joan Brossa. A este, reconhecido como um dos grandes nomes da poesia visual espanhola, Cabral chega a dedicar um poema em seu livro Paisagem com Figuras, e assina o prefácio de seu livro Em va fer Joan Brossa (Fez-me Joan Brossa), escrito em catalão, num tempo em que era proibido pela ditadura lançar livros nesse idioma. A partir desse intercâmbio, Cabral passa a influenciar fortemente o grupo, inserindo suas ideias de uma poesia mais voltada para a realidade social.

Quase seis décadas depois, o crítico de arte e filósofo Arnau Puig, hoje com 84 anos, relembra a amizade com o poeta. “Cabral representava para nós uma oportunidade de liberdade, de falar de política e de arte, sem que fôssemos perseguidos”, diz, circundado em 360 graus por livros que compõem sua vasta biblioteca. “(Na Espanha de Franco) Havia uma situação horrível, uma ditadura repressora, sobretudo porque havia uma perseguição intelectual, uma perseguição da sensibilidade”, afirma Puig, um dos fundadores da revista de cultura Dau al Set, lançada em 1948, e que, mais tarde, seria também o nome de um importante movimento artístico formado pelo grupo de jovens catalães. Em 1950, João Cabral chega inclusive a colaborar com a publicação com alguns versos de seu livro O Engenheiro.

“De fato, além de ser uma ilha para nossos pensamentos, uma das maiores influências de João Cabral que todos do Dau al Set reconhecemos é que ele nos fez marxistas. Cabral era um marxista seguidor de (Luiz) Carlos Prestes, um stalinista tremendo, era o predicador do stalinismo aqui conosco. E, nesse sentido, posso dizer que uma de suas grandes influências foi que ele também nos fez marxistas”, afirma Puig, enquanto mostra livros sobre Stalin que ganhou do poeta no final dos anos 1940.

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Enric Tormo: companheiro e impressor durante a ditadura franquista

Miró por Cabral

Outra testemunha da passagem de João Cabral por por Barcelona e pela Dau al Set é o tipógrafo Enric Tormo, Enric Tormo, de 83 anos, um dos grandes mestres das artes gráficos de seu país. Tormo também lembra os tempos de perseguição franquista e o papel de Cabral no grupo ao qual pertencia. “Era uma tranquilidade falar com ele, pois nessa época, pelo fato de sermos de esquerda, estávamos andando pela rua na ponta dos pés”, descreve.

No período de sua convivência com Cabral, Tormo foi quem imprimiu um estudo do brasileiro sobre a obra do pintor Joan Miró que foi transformado em livro. Os pouco mais de 100 exemplares, confeccionados um a um pelo pintor e pelo tipógrafo, são hoje artigo de colecionador, espalhados nos melhores museus do mundo, como o MoMA, de Nova York, e a Galeria Maeght, de Paris. O texto é fruto de uma amizade entre Cabral e o artista, que fica clara numa foto sobre a mesa da escrivaninha de Tormo, feita por ele, na qual se veem os dois sentados ao sol descontraidamente.

Tormo conta que João Cabral exibiu ainda em Barcelona uma faceta de tipógrafo. Segundo ele, o poeta adquiriu uma pequena máquina de impressão manual modelo Minerva e publicou obras de poetas brasileiros e espanhóis, como é  o caso de Joan Brossa. Ele e Puig lembram que Cabral criou um selo editorial chamado O Livro Inconsútil, cujas publicações tinham como característica o fato de não haver grampos nem costuras unindo as páginas. “João Cabral dizia que assim as páginas ficariam livres, seria um livro livre, mais leve”, afirma Puig.

Tormo lembra uma história pitoresca envolvendo o poeta e o livro escrito por ele sobre a obra de Miró. João Cabral lhe pediu um exemplar para emprestar a um diplomata que estava de passagem por Barcelona. “Ele me pediu emprestado, pois não tinha nenhum com ele. Eu emprestei e, quando me devolveu, estava todo com anotações a lápis, feitas pelo tal diplomata, que teria deixado o texto de Cabral ‘melhorado’. Eu tive de pegar uma borracha e ir apagando tudo, mas deixei uma única frase: ‘e tudo continua confuso e contraditório’. Cabral não se interou do ocorrido, pois não lhe mostrei, mas me pareceu anedótico alguém corrigir um texto dele e depois ele vir a tornar-se um dos mais importantes escritores brasileiros”, conclui.

Em 1967, já consagrado, João Cabral volta a viver em Barcelona, dessa vez como cônsul-geral, permanecendo na cidade até 1969, quando é transferido para a embaixada em Assunção, no Paraguai. Não moraria mais na Espanha, embora suas passagens pelo país continuassem a render muitos frutos. Basta um olhar mais atento para perceber que um de nossos poetas mais nordestinos teve também um olhar além-mar, com palavras que uniram Pernambuco e Espanha e deixaram marcas dos dois lados do Atlântico.

Um poeta em movimento

teatrotuca

Assim como muitos outros escritores, João Cabral distanciou-se de sua terra natal para tomá-la como tema central de sua obra. João Guimarães Rosa, Vinicius de Moraes e Eça de Queiroz são alguns dos exemplos de homens que viajaram o mundo e se dedicaram tanto à vida diplomática quanto às letras. Nascido em Recife, em 9 de janeiro de 1920, iniciou sua carreira em 1945, sendo transferido para Barcelona e, três anos depois, para Londres, de onde retorna ao Brasil para responder a um inquérito sob a acusação de conduta subversiva.

É readmitido em 1954 e retoma as atividades que o levaram a residir na França, em Portugal e na Suíça. Em 1956, publica Duas Águas, que traz o poema Morte e Vida Severina, com o qual passa a ser mais conhecido do grande público, principalmente após a montagem teatral apresentada no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, o Tuca, no ano de 1966, musicado por Chico Buarque a pedido do então diretor do teatro, o escritor Roberto Freire. O espetáculo é ovacionado por mais de 10 minutos e, com o sucesso no Brasil, segue para o consagrado Festival de Teatro de Nancy, na França, onde ganhou o primeiro prêmio. João Cabral recebe o título de Melhor Autor Vivo.

Em 1969, o poeta toma posse da Academia Brasileira de Letras, já consagrado como um dos grandes nomes da poesia brasileira. Em 1986, é transferido para o Porto, onde encerra sua carreira diplomática. Em 1990, lança Sevilha Andando, seu último livro e uma verdadeira declaração de amor à cidade espanhola. Morava no Rio de Janeiro quando morreu, em 9 de outubro de 1999, aos 79 anos.