cidadania

Por que as mulheres marcham

As mulheres do século 21 já têm muitas conquistas a celebrar, frutos de seus movimentos emancipatórios. Mas a desconstrução dos valores causadores do mundo desigual ainda está em curso

SOF/Divulgação

Mulheres de todo o mundo lutam por igualdade de direitos e oportunidades

As feministas que protestavam pelo direito de voto em 1897 no Reino Unido, as sufragettes, ficariam felizes em saber que não apenas o direito já é recorrente em quase todo o mundo como várias presidentas já foram eleitas. A mais recente, Laura Chinchilla, venceu na Costa Rica. Candidata da situação, Laura tem perfil político de centro-esquerda, sensível a políticas sociais, com Estado forte e atuante. Porém, ligada a movimentos religiosos conservadores, é refratária a temas como descriminalização do aborto ou união de pessoas do mesmo sexo.

Mas as manchetes mais comuns, algo como “Costa Rica elege pela primeira vez uma mulher para a Presidência”, não destacaram sequer o nome da vencedora. Costuma-se brincar no folclore jornalístico que notícia não é o cachorro morder o homem, mas o contrário. Não bastassem todos os casos de violência e de desigualdade pendendo contra a condição feminina – na política, no trabalho, na esfera social e familiar –, o fato de o gênero ainda ser a notícia, a “mulher” mordeu o cachorro, é só mais um sintoma de que a luta por igualdade tem muito a trilhar, ante indicadores que ainda perturbam o planeta.

No primeiro semestre do ano passado, 5.000 mulheres foram violadas no Congo. No ano anterior, cinco foram baleadas e enterradas vivas no Paquistão por defender o casamento com homens de sua escolha. Konstantina Kuneva, imigrante búlgara, faxineira e militante do sindicato dos trabalhadores em limpeza, foi atacada e queimada com ácido enquanto voltava do trabalho em dezembro de 2008, em Atenas, na Grécia.

Atrocidades como essas não são raras e movem milhares de organizações. Uma das ações que marcaram o final do século 20 foi a marcha de 200 quilômetros de quase mil mulheres de Quebec (Canadá), em 1995, que sob o simbólico apelo por pão e rosas conquistaram o aumento do salário mínimo, mais direitos para as imigrantes e apoio à economia solidária.

Inspirada nas canadenses, surgiu em 2000 a Marcha Mundial de Mulheres, que reúne cerca de 4.500 organizações que remam contra as marés de violência, desigualdade e discriminação. A primeira mobilização contou com ações em 159 regiões e culminou na entrega de um documento com 17 itens à Organização das Nações Unidas.

A segunda, em 2005, elaborou a Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade e uma colcha de retalhos com mensagens e reivindicações que percorreram o mundo. A terceira ação ocorre de 8 a 18 deste março, com marchas simultâneas em diversos países.

Caminhar para mudar

No Brasil, 3.000 mulheres farão uma caminhada de quase 100 quilômetros entre as cidades de Campinas e São Paulo, sob o lema “Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres”. Segundo a coordenadora do Secretariado Internacional da Marcha, Miriam Nobre, os eixos da Ação 2010 consideram um ambiente em que, apesar de a diferença salarial entre homens e mulheres ter diminuído e a força de trabalho feminina estar mais escolarizada, ainda existem muitas formas de discriminação e desigualdade.

“Para o desemprego masculino, a sociedade se mobiliza, para o feminino, não. As pessoas acreditam que as mulheres não precisam de um bom salário porque têm o salário do marido e o delas é complementar.”

Para Marcia Vasconcelos, do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero e Raça no Mundo do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, há um longo caminho a percorrer: “Mesmo no contexto de melhora (da participação no mercado de trabalho), as mulheres estão entre as mais atingidas pela desocupação e pelo trabalho precário. Enfrentar a desigualdade exige políticas públicas articuladas e intersetoriais para a distribuição dos recursos de forma igualitária”.

O movimento cobra, por isso, a ratificação pelo Brasil da Convenção 156 da OIT, que prevê a elaboração de políticas que garantam a igualdade efetiva de oportunidade e de tratamento de trabalhadores e trabalhadoras. No final de 2009, uma comissão com integrantes do governo, empresários e centrais sindicais encaminhou ao Congresso orientação pela ratificação do documento.

A medida entrou na “fila” de propostas do mundo do trabalho e tem poucas chances de apreciação em 2010, caso não haja pressão sobre o Legislativo.  Para Rosane da Silva, da Secretaria da Mulher Trabalhadora da CUT, essa é uma conquista muito aguardada pelo movimento sindical. “O Brasil é o único país da América Latina que ainda não ratificou. Com a convenção, teremos uma legislação que possibilitará que nós tenhamos maior autonomia, que sejamos valorizadas pelo mercado. Ela vai tirar um peso das nossas costas.”

Outra bandeira do movimento é pela responsabilidade compartilhada com os homens nos afazeres domésticos e pela participação do Estado no sentido de implementar serviços públicos como creches, lavanderias, restaurantes coletivos e de cuidados para idosos e doentes – atividades relegadas às mulheres. Homens com ocupação gastam nove horas por semana em trabalhos domésticos. Mulheres na mesma situação consomem 20 horas.

Dignidade

Violência sexista, prostituição, exploração midiática do corpo feminino, criminalização do aborto e desrespeito à opção sexual também movem a Marcha. No Brasil, apesar da conquista, em 2006, da Lei Maria da Penha, que impõe punições mais rigorosas contra agressões, a lei não se aplica a casos ocorridos no trabalho e no espaço público. Para Miriam Nobre, medidas punitivas são necessárias, mas não bastarão. Uma mudança efetiva passa por muitos fatores, dos primeiros níveis de educação escolar ao fortalecimento da emancipação financeira e pessoal das mulheres.

Mesmo no berço da Marcha, em Quebec, onde o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a legalização do aborto e a ampliação das políticas sociais já foram conquistados, os salários das mulheres ainda são inferiores aos dos homens. A edição canadense da Marcha reivindica do governo ações de educação e publicidade sobre relações igualitárias e não sexistas.

Eve-Marie Lacasse, responsável pela coordenação local do movimento, alerta que há alguns anos um vento de direita sopra sobre Quebec e todo o Canadá: “O aumento do antifeminismo nos obriga a tomar consciência de que a luta continua dura”. As mexicanas também estão em campanha contra o que chamam de “embates da ultradireita” para mudar a Constituição local, criminalizando o aborto até em casos de gravidez decorrente de estupro.

Mas o principal foco de atenção tem sido o feminicídio identificado na Ciudad Juaréz, no norte do país, que aterroriza a população. “Apesar das denúncias e dos protestos, o número de casos tem aumentado”, lamenta Graciela Ramos, do movimento Mulheres pelo México em Chihuahua. Entre 1993 e 2003, a cada dez dias uma mulher foi assassinada.

Atualmente, há uma ocorrência a cada quatro dias. Para a representante do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher do Brasil e Cone Sul (Unifem-ONU), Rebecca Reichmann Tavares, as práticas machistas se repetem no mundo todo – nos países islâmicos e de religiões fundamentalistas se agravam. “Ainda não existe uma consciência pública dos nossos direitos. Os movimentos feministas lutam pela construção de uma consciência para a igualdade.”

Uma data, vários motivos

Em 1910, durante a II Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em Copenhague, a socialista alemã Clara Zetkin sugeriu a instituição de um dia internacional das mulheres, a exemplo do que já faziam as americanas que, desde 1908, comemoravam em Chicago o Woman’s Day. O dia era dedicado à causa das operárias, denunciava a exploração e a opressão das mulheres e defendia o voto feminino, a igualdade dos sexos, a autonomia das mulheres.

Em 1911, a data já estava institucionalizada pelo Partido Socialista. Nos anos seguintes, as comemorações ganharam corpo pela Europa, mas o dia ainda não era unificado. Na Conferência Internacional das Mulheres Comunistas de 1921, uma búlgara propôs o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher, em homenagem à iniciativa das trabalhadoras têxteis russas que, quatro anos antes, saíram às ruas, em Petrogrado, em uma greve geral que uniu 90 mil pessoas contra a fome, a guerra e o czarismo, marcando, assim, o início da Revolução de 1917.

A partir de 1922, o 8 de março foi instituído mundialmente. Mas a luta das mulheres por igualdade já havia sido deflagrada tempos antes nos Estados Unidos. Em março de 1911, 18 dias depois do Woman’s Day, em uma fábrica de tecidos localizada em Nova York, um incêndio envolveu 500 mulheres jovens, judias e italianas imigrantes, que trabalhavam em condições precárias.

Os relatos dão conta de que elas estavam presas porque esse era um expediente da empresa para impedir que deixassem o ambiente de trabalho. Quando os bombeiros acessaram o local, 147 delas já haviam morrido. Após a tragédia, instalou-se a Comissão Investigadora de Fábricas de Nova York e tiveram início as legislações de proteção à saúde e à vida das trabalhadoras.

Por Evelyn Pedrozo