centenário

Noel, 100 anos em 26

Lirismo e picardia das canções de Noel redefiniram rumos da música brasileira

Custódio Coimbra/Agência O Globo

“Noel: A presença do poeta da Vila” foi o tema da Unidos de Vila Isabel no Carnaval deste ano

Morto pela tuberculose aos 26 anos, Noel Rosa passou rápido pela vida, mas deixou uma extensa obra que redefiniu os rumos do samba no Rio de Janeiro e, por que não dizer, da música popular brasileira. Primeiro compositor branco de classe média a fazer parcerias com compositores negros que viviam nos morros ou bairros mais pobres da cidade, Noel foi pioneiro ao realizar a agora tão em voga “conexão entre o morro e o asfalto”. O músico nascido em 1910 no bairro de Vila Isabel contribuiu, na riqueza de seu repertório e na irreverência de sua poesia, para criar a imagem de uma certa malandragem carioca ainda hoje cultivada em muitos bares e esquinas da cidade.

Mesmo não sendo lembrado à  altura de sua obra, Noel Rosa não se enquadra no time dos sambistas esquecidos pelo povo. Em comemoração ao seu centenário de nascimento, Noel foi enredo da Unidos de Vila Isabel no Carnaval deste ano. A escola do bairro do poeta chegou em quarto lugar, mas levantou a avenida com um samba composto por outro mestre, Martinho da Vila, que também teve a ideia do enredo: “Foi muito bom ver como a comunidade se identifica com a figura do Noel. Foi o desfile mais importante da minha vida”, disse Martinho.

Biógrafo de Noel Rosa e morador de Vila Isabel, o jornalista João Máximo lembra que houve uma época em que Noel andou esquecido: “Quando cheguei à Vila Isabel, em 1942, falava-se muito em Noel Rosa. Mas não se conhecia muito a obra dele, era apenas um nome ao qual o bairro estava definitivamente ligado. Contavam-se muitas histórias, algumas forjadas apenas na imaginação do povo. Existia mais o mito do que o compositor, que a gente praticamente não conhecia”.

A redescoberta da obra de Noel Rosa aconteceu anos depois de sua morte, conta Máximo: “Em dezembro de 1950 foi lançado pela Aracy de Almeida um álbum com três discos só com músicas do Noel que foi altamente revelador para toda uma geração, não apenas da Vila Isabel, mas de todo o Rio de Janeiro. A partir daí, ele foi sendo permanentemente descoberto ou redescoberto”, diz.

Na análise de Ricardo Cravo Albin, autor do Dicionário da Música Popular Brasileira, Noel era e continua sendo moderno: “O Noel Rosa foi, entre outras coisas, um pioneiro na articulação poética de sua obra literária a favor e dentro do samba. Antes do Noel, a poesia era bastante empolada, com versos dodecassilábicos. Ele, acho que até intuitivamente, absorveu a Semana de Arte Moderna em sua obra fazendo uma música mais despojada, fazendo versos simplificados e comentando o cotidiano, o que eram cânones da Semana de Arte Moderna. Isso permitiu uma obra revolucionária em termos de imagens poéticas”.

Segundo Máximo, o fato de Noel Rosa ter surgido na década de 1930, auge da era de ouro do rádio, reforçou o potencial transformador de sua música: “Noel promoveu uma inovação ou renovação da lírica da música popular, principalmente em relação à canção romântica. Antes de Noel, a canção de amor no Brasil era muito rebuscada. Tentava ser sofisticada, mas era uma letra parnasiana e cheia de metáforas e simbologias”.

Máximo explica como se deu o divisor de águas: “Havia um outro tipo de letra em música popular, seu compositor mais expressivo era Sinhô, mas elas eram muito mais carnavalescas, anedóticas, críticas, engraçadas, tratando a mulher sem aquele endeusamento das velhas modinhas. Mas isso acontecia quase exclusivamente no Carnaval. O Noel chega com uma poética completamente diferente, mostrando que durante todo o ano era possível fazer música romântica, para mulher, com esse sentido mais malandro, mais moleque e engraçado. Tudo isso está na música que ele fazia sempre, e não apenas no Carnaval. Além disso, ele era um versejador muito feliz, com ideias geniais”.

Morro e asfalto

Outro aspecto revolucionário da trajetória artística de Noel foi a aproximação entre o morro e o asfalto. Mesmo reconhecendo o pioneirismo de Francisco Alves, cantor de grande sucesso que foi o primeiro a gravar os sambistas negros, Máximo ressalta que Noel foi o primeiro a realmente compor canções em parceria com sambistas do morro. “Noel é o primeiro compositor branco, de classe média e com passagem pela faculdade, ainda que rápida (cursou seis meses de Medicina), que se tornou parceiro de mais de dez desses compositores. Não existia esse intercâmbio social e racial. Ele foi parceiro de Cartola, Ismael Silva, Bide, Marçal, Heitor dos Prazeres, grandes compositores que viviam isolados em seus nichos.”

O jornalista observa que Noel foi uma alternativa estética ao samba do Estácio, mais marcado, feito para os desfiles desde que a polícia começou a tolerar os blocos carnavalescos na década de 20. “Também com esses contatos, ele muda completamente e rompe com aquela tradição meio nordestina, caipira, do Bando dos Tangarás, onde começou.”

Mesmo nutrindo indisfarçável complexo devido a um defeito facial provocado pelo fórceps no seu nascimento, Noel Rosa teve algumas namoradas, a maioria colegas de copo e de samba nos bares de Vila Isabel. Seu gosto pela vida boêmia e pelo cigarro, aliado a uma saúde frágil e a um corpo franzino, favoreceu o desenvolvimento da tuberculose que o matou. “O Noel era um malandro de classe média intelectualizado. Ele abandonou a Medicina para se dedicar à música e à boemia e, digamos, à dissipação que o fez falecer antes dos 27 anos. Esse foi um preço muito alto pago por ele. Mas, de qualquer maneira, por conta dessa vida boêmia ele construiu todo um processo de inspiração que ficou imortal”, avalia Ricardo Cravo Albin.

João Máximo também cita o apreço de Noel por uma parte do submundo carioca da época: “Tem um samba chamado Mulato Bamba, em que ele trata o malandro com muita simpatia. A polícia da época era intolerante com os homens e mulheres da madrugada que andavam pela Lapa, e o Noel Rosa, ao contrário, via nessa turma pequenos heróis do cotidiano carioca”.

O biógrafo ressalta, no entanto, a famosa implicância com o malandro “do mal”, os bandidos da época: “O malandro, na época do Noel, era um personagem muito curioso. Ele vivia de ‘expedientes’, como se dizia naquela época, que eram geralmente o jogo, a mulher que ele explorava. Os mais celerados, digamos assim, vendiam segurança para os moradores dos bairros. Não tinham nada a ver com os bandidos cariocas da época – Miguelzinho, Camisa Preta, Joãozinho, Edgar –, que eram famosos no Rio de Janeiro e tiveram problemas sérios com a polícia. Não eram esses que fascinavam o Noel. Quem o fascinava era o cara sagaz, que sabia contornar situações difíceis. Ele dizia em um de seus sambas que ‘quem faz acordo não tem inimigo’”.

Essa “briga de malandros” esteve na origem da famosa polêmica com o compositor Wilson Batista, que rendeu sambas lindos de ambas as partes, como lembra Cravo Albin, citando alguns dos muitos versos antológicos do poeta da Vila: “Deixa de arrastar o tamanco/pois tamanco nunca foi sandália/tira do pescoço o lenço branco/e joga fora essa navalha que só te atrapalha”. Esse era Noel.