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Órfãos da floresta

A repressão ao desmatamento deve mexer com a economia da Amazônia, inclusive com o sustento de parte de seus habitantes. Depois dos compromissos assumidos em Copenhague, o país tem o desafio de articular rapidamente um novo modelo de desenvolvimento para a região

Paulo Whitaker/REUTERS

Ribeirinho rema entre peixes mortos num afluente seco do Amazonas: desmatamento mexe com regime de chuvas

O Brasil deu um show na Conferência do Clima realizada em dezembro, em Copenhague, na Dinamarca. Além da bronca que o presidente Lula impôs aos países desenvolvidos, pela falta de compromisso de suas posições em relação à diminuição da emissão de gases do efeito estufa, a delegação brasileira firmou metas ousadas e, com isso, deu um exemplo internacional a ser seguido. No final de dezembro, essas metas viraram lei: a Política Nacional sobre Mudança de Clima fixou o compromisso do Brasil em reduzir, até 2020, as emissões projetadas de gases do efeito estufa entre 36,1% e 38,9%.

Para alcançar esse objetivo, a ação mais importante seria a redução em 80% do desmatamento da Amazônia, no mesmo período. Assim, a partir deste ano as medidas contra essa atividade devem se intensificar mais ainda em relação ao que foi feito no ano passado, quando o índice de desmatamento da Amazônia (7.000 km2) apresentou uma grande diminuição em relação à média dos anos anteriores (17 mil km2).

Os efeitos das medidas contra o desmatamento, no entanto, têm repercussões intensas na atividade econômica da região – hoje baseadas numa espécie de extrativismo que busca riquezas imediatas com a exploração da mata amazônica. “É um ciclo de riqueza que demora 15 anos”, diz Adalberto Veríssimo, fundador e pesquisador sênior da Imazon, instituto de pesquisa do desenvolvimento sustentável da Amazônia. A esse ciclo ele dá o nome de “boom colapso”.

Em primeiro lugar, ocorre o desmatamento para aproveitar a madeira, gerando um boom, ou seja, uma riqueza imediata com a proliferação de serrarias e a instalação de empresas capitalizadas. “Dez anos depois, a mata está um paliteiro”, diz ele, “e se transforma em pasto para a criação de gado.” Mas essa atividade também tem fim próximo: depois de cinco anos, o pasto está degradado, provocando o colapso econômico da região e a busca por novas áreas de exploração. Devido a esse ciclo, a somatória de áreas degradadas na Amazônia é equivalente ao território do Estado de São Paulo.

Modelo superado

Esse processo de expansão da fronteira agrícola, conhecida como “arco do desmatamento”, que ocorre principalmente no Pará, acaba se transformando em meio de sobrevivência de um enorme contingente de trabalhadores – são pequenos produtores, muitos dos quais imigrantes de outras regiões do país, que buscam sustento ocupando terras irregulares para exercer uma atividade considerada ilegal, mas estimulada por “um modelo econômico de desenvolvimento completamente superado”, como define Branca Americano, diretora do Departamento de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente.

Seja como for, deter esse processo de forma radical pode causar desemprego e pobreza – como, aliás, já está causando. Segundo Agnaldo do Carmo Alcântara, presidente da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário, sediada em Belém, “já se verifica um aumento do desemprego e da marginalidade na região devido à repressão ao desmatamento”. A entidade representa 16 categorias profissionais, num total de mais de 200 mil filiados, muitos dos quais trabalhando diretamente com atividades ligadas à extração de madeira. Para Alcântara, é preciso haver “uma discussão em profundidade sobre a redução do desmatamento para encontrarmos alternativas a ele”.

Uma delas é o Plano de Manejo Sustentado, que prevê a certificação da madeira legal como resultado de uma prática de exploração equilibrada, em que as árvores são classificadas e numeradas e só se retiram aquelas que já atingiram a maturidade, normalmente depois de 30 anos de vida. “O importante é olhar para o homem da floresta, que há muitos anos vive em harmonia com ela”, diz Murilo Souza Araújo, coordenador jurídico da Unifloresta, outra entidade do Pará que reúne exploradores da madeira amazônica. Ele considera injusta a má imagem que o pequeno produtor da Amazônia tem, quando a atenção deveria se voltar para outros setores, como o de mineração, por exemplo. “As enormes siderúrgicas do município de Marabá consomem grandes quantidades de energia para produzir ferro. E essa energia vem de hidrelétricas que causam grandes danos ao meio ambiente.”

Resistir a tentações

A verdade é que todas as formas de exploração da floresta amazônica produzem gases do efeito estufa – e consequentemente ameaçam as metas estipuladas pelo governo. “As árvores são acumuladores de carbono. Sempre que são retiradas, não importa o uso que se faça delas, liberam esse gás”, explica Raul Telles do Vale, coordenador adjunto do Instituto Socioambiental (ISA), outra ONG que atua na Amazônia. Vale acredita que reverter esse processo depende de uma mudança no modelo econômico local.

A agropecuária, um dos vilões da questão, tem incentivos fiscais, e isso quer dizer que “o contribuinte está pagando pelo desmatamento”, diz ele. “Precisamos de leis que estimulem a conservação e a produção de açaí, babaçu, castanha-do-pará, látex e outros produtos ambientais”, completa. As populações tradicionais, formadas por caboclos, indígenas e ribeirinhos, têm conhecimento da melhor utilização das riquezas da floresta, mas vivem precariamente, muitos à beira da miséria. Extrair as riquezas da floresta é uma tentação porque produz renda imediata.

“Se tivermos uma política de governo garantindo preços aos produtos ambientais, desenvolvendo tecnologias para aumentar a produtividade e estimulando a ocupação produtiva das áreas já degradadas, podemos mudar esse paradigma, transformando a região numa fornecedora de serviços e produtos socioambientais”, acredita o coordenador do ISA. Para ele, não há projeto ou iniciativa que possa obter sucesso nessa mudança sem a interferência direta do governo com leis, intervenções e políticas de desenvolvimento localizadas.

O instituto atua na região de diversas maneiras – uma delas na preservação dos povos indígenas. Um exemplo é o trabalho feito nas cabeceiras do rio Xingu em que a ONG vem apoiando a produção de artesanato, mel, frutas e outros produtos ambientais de 14 povos indígenas, agora destinados a abandonar a vida nômade e permanecer em área demarcada. “Garantir a permanência deles é formar uma barreira contra o avanço do desmatamento”, afirma Vale.

Alternativas locais

“As pessoas que perderam o emprego devido à repressão ao desmatamento não têm qualificação profissional e, muitas vezes, nem sequer documentos. Não houve um plano de geração de trabalho alternativo para essa gente. Estão enchendo as fileiras do MST nas beiras das estradas e fazendo filas nas prefeituras”, diz Rui Salles Lanhoso Martins, coordenador de Projetos Socioambientais Empresariais do Instituto Peabiru. A ONG, também sediada em Belém, dedica-se a ensinar essas populações a tomar decisões, captar recursos, desenvolver projetos e negócios sustentáveis. “Estimulamos o protagonismo e o empreendedorismo comercial e social”, explica Martins.

A questão fundamental, segundo ele, é a legalização das terras. “Aqui você encontra todos os tipos de problema, que vêm desde o Brasil colônia: terras indígenas, terras de marinha, unidades de conservação de diversas categorias, o que gera uma quantidade enorme de conflitos, muitas vezes em áreas onde a presença do Estado é quase nula e a lei que impera é a da força”, descreve.

Martins também cita a importância de estimular a atividade econômica baseada em produtos ambientais como alternativa para quem vive do desmatamento. “Falta uma sensibilidade específica para as questões locais. A Amazônia é tratada como uma região semelhante a todo o país. Mas não é.”

Esse parece ser um ponto de insatisfação generalizado entre aqueles que pensam e os que vivem a realidade da floresta – o que cria expectativas distorcidas na opinião pública e na mídia, nacional e internacional. “A solução não é transformar a Amazônia num santuário ecológico intocável nem pôr a mata abaixo para sugar suas riquezas. Essas não são as duas únicas alternativas. Precisamos buscar a modernidade do desenvolvimento econômico para oferecer inclusão econômica e social a essa população. O governo tem feito isso, está no caminho certo. Mas precisamos acelerar esse processo, não apenas para diminuir o desmatamento, mas para zerar de vez. Essa é a nossa meta”, diz Adalberto Veríssimo, do Imazon.

Hoje, a região toda tem 24 milhões de habitantes que produzem apenas 8% da riqueza nacional, embora ocupe mais da metade do território do país. A produtividade das atividades econômicas, como a criação de gado, é de baixa qualidade e quantidade, apesar de ocupar áreas produtivas extensas. E o modelo de desenvolvimento que vigora é o mesmo que impulsionou o ciclo da borracha, no começo do século 20, baseado na ocupação irregular, no extrativismo da riqueza da mata e no total abandono e pobreza de quem vive dele. Embora a relação com a Amazônia tenha mudado significativamente nos últimos anos, foi a partir da década de 1970 que esse modelo econômico ganhou impulso, promovendo um grande salto na ocupação desordenada: há 30 anos, menos de 1% da floresta estava explorada; hoje esse índice está na casa dos 18%.

Ações fortes do governo e da sociedade local têm ocorrido intensamente nos últimos cinco anos, com resultados positivos. Entre elas, fiscalização constante das atividades irregulares e ilegais, combate a incêndios, demarcação de terras indígenas, desenvolvimento de tecnologias, maior atenção com a educação e a especialização profissional e valorização da ocupação territorial. Mas são ações fragmentadas, que ainda não se integram num sistema único. “Mas isso vai mudar. O ano de 2010 será o momento de arregaçarmos a manga para juntar todas essas ações e obter resultados integrados”, promete Branca Americana, do Ministério do Meio Ambiente. “Ninguém quer ver o homem amazônico abandonado.”