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Depois de Raposa

Problemas que os índios enfrentam para garantir seus direitos ainda são muitos. E os riscos de conflitos também

José Cruz/ABr

Do lado da justiça: Em Brasília, índios pedem a demarcação de suas terras

O  Monte Roraima, limite setentrional do Brasil, é a morada final do herói Makunaima. Coletados por viajantes do início do século 20 entre os Taurepang, um dos cinco povos que hoje habitam a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), os mitos da região inspiraram Mário de Andrade a criar o personagem que se tornou símbolo da própria brasilidade. Mesmo sendo “coautores da ideologia nacional”, como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, os 20 mil índios da Raposa tiveram trabalho para ter suas terras reconhecidas. Antes, durante décadas de conflitos, foram tachados de ameaça ao ambiente, ao desenvolvimento e à própria nação brasileira. 

Apesar do prazo de cinco anos que a Carta Magna determinou para o processo de demarcação de suas terras, até hoje ele não está completamente finalizado – falta demarcar áreas especialmente no Centro-Sul e no Nordeste. Estão na Amazônia 99% dos mais de 110 milhões de hectares de terras indígenas (quase 13% do território nacional). Porém, algumas das maiores populações indígenas, entre as mais de 220 etnias que somam quase 1 milhão de pessoas, estão fora da Amazônia. O caso mais complicado são os Guarani-Kaiowa, de Mato Grosso do Sul. São mais de 40 mil pessoas vivendo em 40 mil hectares – compare-se com o 1,7 milhão de hectares de Raposa, para uma população que é a metade dessa. O resultado não podia ser outro: os índices sociais, que já não são bons para os índios, entre os Kaiowa são os piores. Levantamentos feitos pelo Conselho Indigenista Missionário indicam que ocorrem ali 70% dos assassinatos registrados entre indígenas em todo o país – 42, de um total de 60, em 2008. Também há alto índice de suicídios (34) e problemas como alta taxa de mortalidade infantil, desnutrição e alcoolismo, além do encarceramento, com, literalmente, centenas de índios presos.

“Nós alertávamos que a situação já era a pior do país dez anos atrás, quando fui presidente da Funai”, lembra o jurista Carlos Frederico Marés de Souza Filho, que deixou o cargo depois da repressão à manifestação indígena que lembrou os 500 anos da chegada dos portugueses. “O problema é que se fez em Mato Grosso do Sul exatamente o que se queria fazer em Roraima, a demarcação em ilhas”, diz, para explicar o processo de colonização do estado, promovido principalmente durante o governo Vargas, entre as décadas de 40 e 50 do século passado. Pouco a pouco, os índios foram empurrados para pequenas reservas, enquanto o entorno foi todo desmatado e ocupado por gado, soja e agora cana.

Atualmente, a Funai trava uma cruzada contra a resistência de fazendeiros e políticos para viabilizar a ida a campo de seis grupos de trabalho que farão a identificação de mais de 30 áreas reivindicadas por comunidades guarani-kaiowa. As lideranças estiveram reunidas em outubro na Aty Guasu (Grande Encontro, em guarani), quando deram ultimato à Funai: ou os grupos de identificação reiniciam logo seu trabalho, ou as comunidades que aguardam as demarcações vão ocupar as fazendas. “Por uma causa justa a gente morre”, declararam os caciques, citando o líder guarani Marçal de Souza, morto em 1983. No fim de outubro, os professores guarani Genivaldo Vera e Rolindo Vera desapareceram após confronto na fazenda Triunfo, que integra a área indígena reivindicada como Y’poi, ou Po’i Kue, em Paranhos. As mortes ainda não foram esclarecidas.   

Ameaça

Se ainda há pendências fundiárias a enfrentar, cresce também a preocupação com o futuro das terras já demarcadas. Na própria Raposa as comunidades já estão em intensa discussão. “Nosso objetivo é evitar que ainda passemos necessidade, por exemplo, na questão alimentar”, explica o macuxi Jonas Marcolino. Outrora opositor da demarcação, hoje ele, que é secretário do Índio do estado de Roraima, preocupa-se com as multinacionais: “O fato de a legislação prever que o ‘interesse nacional’ pode permitir a ocupação de nossas terras deixa uma brecha para que, no futuro, seja autorizada a exploração das terras, à revelia dos interesses das comunidades”.

Para o antropólogo Ricardo Verdum, da ONG Instituto de Estudos Socioeconômicos, o temor procede. Ele questiona a forma como é tratada a regulamentação da mineração em terras indígenas. “Falam sobre que tipo de compensação os índios querem em troca dos projetos, em vez de enfatizar a necessidade de consulta livre, prévia e informada às comunidades”, diz Verdum.

Tem se acirrado a contradição entre esse direito à consulta, conforme previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, já ratificada pelo Congresso em 2002, e a realidade atual de retomada do desenvolvimentismo. No mesmo documento em que confirmou a demarcação da Raposa, o STF também impôs, entre “19 condições” para as políticas aplicadas nas terras indígenas, que “a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai”.

O atual foco de conflito, com possibilidade de enfrentamentos nos próximos anos, se dá em torno do projeto de construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA), área onde se encontram 19 terras indígenas e dez unidades de conservação contíguas, num total de quase 28 milhões de hectares. A situação está no seguinte pé: o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, acusa “forças demoníacas” de tentar prejudicar o projeto, que prevê a geração de 11 mil megawatts (Itaipu gera 14 mil MW). A sociedade civil da região se mobiliza, expressamente contrária à usina.

Outro campo para embates são as políticas públicas. Está parado há quase um ano no Congresso um projeto de lei com medidas que buscam melhorar a atuação da Fundação Nacional de Saúde, responsável pelo atendimento da população indígena. Loteado politicamente pelo PMDB, uma vez que agrega responsabilidades como saneamento em pequenos municípios, o órgão sofre repetidas acusações de corrupção e incompetência.  

As condições de saúde dos povos indígenas até melhoraram – a mortalidade infantil caiu, de 75 por mil nascidos vivos em 2000 para 46 em 2007 –, mas é também verdade que persistem a desigualdade em relação ao restante da população (a média brasileira é próxima de 20 por mil) e os problemas localizados. No Vale do Javari, por exemplo, fronteira com o Peru, a comunidade é ameaçada há anos por uma epidemia de hepatite.

Na educação, a vinculação das escolas indígenas aos municípios também era outro fator de graves dores de cabeça, em muitos lugares, e por isso um decreto presidencial de maio de 2009 criou os chamados territórios etnoeducacionais. Assim, as políticas de educação poderão ser definidas de acordo com as comunidades, culturas e línguas indígenas – ainda existem 180 delas no país, e as escolas estão longe de se adaptar para aproveitar melhor esse imenso patrimônio cultural.

“A questão da sustentabilidade das terras indígenas é a preocupação do movimento hoje. Nosso desafio é manter a diversidade cultural dos nossos povos, mesmo com obras do PAC, com invasões de terra”, diz Marcos Apurinã, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “Para isso, precisamos de capacitação dos jovens indígenas, para brigar de igual para igual pelos nossos direitos. E aí a educação é fundamental.”