memória

A revisão da anistia

Usada como argumento para não punição dos que praticaram e disseminaram a tortura e a barbárie, a Lei de Anistia, de 1979, é vista como afronta à Constituição, segundo a qual crimes contra a humanidade não prescrevem

Gerardo Lazzari

Fon, na cela que ocupou no antigo Dops, hoje memorial da Resistência

São Paulo, alameda Casa Branca, número 806, 4 de novembro de 1969. O assassinato de uma figura que atravessou o século 20 em luta de resistência, Carlos Marighella, prenuncia a agonia da luta armada contra a ditadura. Ter sido deputado constituinte em 1946 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e depois romper, em 1967, com a perspectiva pacífica de atuação proposta pelo partido diante da repressão militar para criar, ao lado de dissidentes, a Ação Libertadora Nacional (ALN) são fatores centrais de sua trajetória.  

O militante ganhou título de Cidadão Paulistano in memoriam no dia em que sua morte completou 40 anos, iniciativa do vereador Ítalo Cardoso. Na manhã do mesmo 4 de novembro, no endereço da emboscada armada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, foram colocadas flores em sua homenagem, em um ato que reuniu cerca de 300 pessoas. Flores que remetem à sensibilidade vista em outro traço do homenageado. As agruras da vida clandestina, a perseguição e as sevícias não tiraram de Marighella a ternura, expressa em poemas. “Eu canto o amor por exaltar a vida/ a liberdade, a humanidade e o belo/ Mas que o amor seja como a natureza/ simples, real e nunca fantasia”, diz em sua Balada do Amor.

De um lado, a evocação de fatos do passado que aos poucos vão saindo das sombras da história oficial. De outro, pessoas que prestigiaram a ocasião por conhecer a fundo o significado daquela luta. E mantêm candentes a causa da reinterpretação da Lei de Anistia. No Brasil, a lei foi aprovada ainda no regime de exceção, sob o comando dos militares. Embora o texto legal não afirme que os torturadores teriam seus crimes anistiados, a ambiguidade da redação possibilitou a interpretação da existência de reciprocidade entre crimes de tortura e execuções contra opositores e crimes políticos cometidos pelos que combatiam a ditadura. No entanto, cabe ao Estado zelar pela integridade física das pessoas mantidas sob sua guarda, independentemente do delito que tenham cometido. A Constituição vigente estabelece que a tortura é crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível.

Atualmente, há vários debates em torno do tema, em que se destacam a ação de familiares, a produção de seminários, audiências públicas e até uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, encaminhada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ao Supremo Tribunal Federal. Desse modo, vai saindo de cena a ideia de que a anistia significa esquecimento para, lentamente, dar lugar à reivindicação de justiça, tal como aconteceu em países como Argentina e Chile, em que os torturadores tiveram de comparecer aos tribunais – e muitos foram condenados e presos. Há o caso recente da ação movida em São Paulo pela família Teles para que a Justiça declare Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) paulista e hoje coronel reformado do Exército, como responsável por torturas sofridas por seis pessoas da família.  

O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu, em 9 de outubro de 2008, que o militar cometeu crime de tortura, um grande avanço, porém limitado em seu desdobramento. Eugênia Fávero e Marlon Weichert, procuradores da República, também encaminharam ação à Justiça contra Ustra e o tenente coronel Audir Maciel (também ex-chefe do DOI-Codi, já falecido, mas com base na lei é possível transferir a responsabilização a descendentes) para que devolvam aos cofres públicos o dinheiro pago pela União como indenização aos familiares de presos políticos mortos no órgão repressivo durante os anos em que ambos o comandaram. A Advocacia-Geral da União (AGU) decidiu que assumirá a defesa de Ustra e Maciel. No caso do processo também movido contra Brilhante Ustra em decorrência da tortura e morte de Luiz Eduardo Merlino, em 1971, a família pretende recorrer ao STF, pois o Tribunal de Justiça de São Paulo, em 23 de setembro de 2008, suspendeu o processo, aceitando recurso dos advogados de defesa. 

gerardo lazzariMarighella
Marighella virou Cidadão Paulistano em novembro. Na solenidade, seu filho Carlos, Clara Charf, Hélio Bicudo e Ítalo Cardoso

Escombros

A reportagem foi ouvir de alguns personagens que sofreram os horrores dos porões da ditadura o que pensam da reinterpretação – ou a interpretação correta – da Lei de Anistia. Uma delas é Rose Nogueira. Nascida em Jacareí (SP) em 1946, militava na Ação Libertadora Nacional (ALN) quando foi presa aos 23 anos e ainda amamentava seu bebê de 2 meses. “O significado daquela experiência é que é preciso aprender com a vida todo dia”, diz Rose. “A vida passou a ter um significado muito grande para mim. Porque a cadeia ensina isso, eu já estive naquela situação de extremo sofrimento.” Ela é membro do Grupo Tortura Nunca Mais e foi presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe).

Rose faz referência ao caso da tortura acontecida na Penitenciária São Pedro de Alcântara, em Santa Catarina, em novembro deste ano, para explicar: “Se os torturadores no passado tivessem sido punidos, um fato como esse não teria ocorrido hoje. A muitos setores da polícia a democracia não chegou, então se dá o mesmo treinamento da época da ditadura, de que o outro é sempre inimigo e que se vive em guerra. No passado, eles torturaram, sequestraram, assassinaram. E continuaram na ativa, em muitos casos dentro da polícia, e o ensinamento que eles passaram foi esse. Um jeito de parar com isso é responsabilizar os torturadores”, comenta.   

Criméia Alice Schmidt de Almeida (irmã de Maria Amélia, da família Teles), 61 anos, foi do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e sobreviveu à guerrilha do Araguaia. Hoje enfermeira aposentada, tem efetiva participação no movimento feminista e na busca do esclarecimento dos crimes cometidos pela ditadura e das circunstâncias em que se deram as mortes e desaparecimentos dos opositores políticos. “Nunca fiz uma leitura da lei como de anistia a torturadores. Essa é uma questão política de interpretação que visa manter a impunidade, com um discurso de que o Exército de hoje não é mais o mesmo. Discurso que o próprio Exército nega em suas ordens do dia, dizendo-se o mesmo desde Caxias. Só existe uma forma de acabar com a impunidade: punir os responsáveis. Isso não foi feito com relação aos militares que usurparam o poder em 1964 nem tem sido feito com os policiais que torturam e matam ainda hoje nas delegacias”, enfatiza Criméia.

Antonio Roberto Espinosa, 63 anos, é professor de Relações Internacionais na Escola Superior Diplomática e na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Também jornalista, manteve por 16 anos o jornal Primeira Hora, em Osasco, e é autor de Abraços Que Sufocam (Viramundo, 2000). Foi dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e da Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares). Ficou preso por quatro anos. “A interpretação de que a anistia foi recíproca é falsa. A ditadura só vai acabar no Brasil no momento que os torturadores forem responsabilizados por seus crimes, no momento em que houver clareza. Anistia não quer dizer esquecimento. A memória desse período tem de ser recuperada. Se não for possível, por questões de correlação de forças, punir os torturadores, que pelo menos a tortura fique registrada com toda a clareza e que exista a responsabilização.”

Para Espinosa, os militantes da luta armada não foram vitoriosos militar e politicamente, mas moralmente. “A ditadura perdeu todos os limites, porque apelou para a tortura. E a nossa vitória moral foi o precedente político para que a ditadura chegasse ao fim.” Para ele, enquanto as responsabilidades não ficarem claras, a luta não terminou. “Porque a tarefa de reconstrução democrática não está pronta. Não sei se ela ficará pronta um dia, mas nosso papel é ter clareza sobre aquele momento da nossa vida, naquele momento histórico. E os panos que encobriam aquele momento não foram todos retirados.”

Esse passado sobre o qual se forjou um forte silêncio insiste cada vez mais em vir à tona e exigir esclarecimento, em respeito aos direitos humanos, à democracia, à justiça e à memória.

gerardo lazzariCriméia
Criméia nunca entendeu a lei como de anistia a torturadores

Fé na garotada
O jornalista Antonio Carlos Fon trabalhava no Jornal da Tarde, em São Paulo, em 1969, quando seu apartamento foi invadido pela polícia. Buscavam seu irmão, Aton Fon Filho. Antonio Carlos foi encarcerado, sofreu torturas na Operação Bandeirantes e depois no Dops, de onde foi levado para o Presídio Tiradentes. Em 1978, fez uma investigação de cerca de cinco meses, para uma revista semanal, que resultou em duas reportagens publicadas em fevereiro de 1979. No mesmo ano, publicou o livro Tortura: a História da Repressão Política no Brasil, pela Editora Global. “Não é bom para a sociedade brasileira, para as Forças Armadas, para suas vítimas e até para os torturadores o silêncio covarde”, afirma. 

Fon emocionou-se muito durante o evento em homenagem a Marighella. No dia seguinte foi acompanhado pela reportagem em visita ao Memorial da Resistência, no antigo prédio do Dops de São Paulo.  “Em 4 de novembro de 1969 eu seria morto aqui na porta desse prédio. Eu estava com as pernas paralisadas em função da tortura e o Takao Amano tinha sido baleado na perna. Na noite anterior soubemos que o Fleury nos metralharia, alegando que tentávamos fugir. O delegado Rui Franceschi (já falecido), que estava detido por ter se envolvido em um acidente durante uma festa, naquele dia me carregou no colo para não me matarem – e certamente o Paranhos Fleury não poderia atingi-lo. Eu e o Takao tivemos a vida salva. Estar aqui, e entrar pela porta da frente, onde eu teria sido morto, é muito forte” (suspira).

“Agora, fiquei contente de ouvir uma professora, durante a visita de um grupo de estudantes aqui no Memorial. Ela não falou somente do passado. Falar sobre os horrores que envolvem a história desse prédio é importante, para que não se esqueça, mas tão importante quanto é o futuro. E essa educadora estava falando para a meninada: ‘Olha, quanto maior a desigualdade social, maior é a criminalidade, a violência’. Isso me encheu de esperança na garotada.” 

VirgílioOperário da resistência 
Faz 40 anos que morreu sob tortura nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo, Virgílio Gomes da Silva, o militante da ALN que comandou a ação do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick. Nascido em Santa Cruz (RN), ele veio jovem para a capital paulista em busca de uma vida melhor. Acabou se tornando militante do Sindicato dos Químicos de São Paulo e, mais tarde, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), até a dissidência liderada por Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, que resultou na formação da ALN. Virgílio foi operário da Nitro Química, em São Miguel Paulista, na zona leste. Em outubro de 1957, os operários da fábrica iniciaram greve por reajuste salarial e melhores condições de trabalho.

Na liderança de uma dessas mobilizações, Virgílio conheceu Ilda Martins, com quem se casou em 1960. Com ela teve quatro filhos: Vlademir, Virgílio, Gregório e Isabel. Moravam em Ribeirão Preto (SP) no momento da queda de Virgílio Gomes, codinome Jonas, em 1969. Quando a polícia invadiu o local, começou o pesadelo: Gregório tinha ficado sob os cuidados de uma tia, mas Ilda e as crianças foram sequestradas. Ela ficou presa nove meses e passou pelos horrores da tortura. Logo no início a separaram dos filhos, conduzidos para o Juizado de Menores. Vlademir tinha 8 anos, Virgílio, 7, e Isabel, 4 meses. Todos têm o sobrenome do pai: Gomes da Silva. O livro Virgílio Gomes da Silva: de Retirante a Guerrilheiro, de Edileuza Pimenta e Edson Teixeira, lançado no ano passado pela Plena Editorial, e a revista Virgílio Gomes da Silva: Direito à Memória e à Verdade, publicada pelo Sindicato dos Químicos de São Paulo, são boas oportunidades para quem tem interesse em se aprofundar nos episódios marcantes relacionados ao tema.

Um deles está ligado a um aspecto feliz dessa trajetória turbulenta: Ilda e seus filhos conseguiram exílio em Cuba, onde viveram por 18 anos. Lá receberam todo tipo de ajuda. Há um brilho nos olhos muito azuis de dona Ilda, hoje com 78 anos, quando comenta: “Meus quatro filhos saíram da ilha com diploma universitário”. Vlademir (48 anos) é geólogo, Virgílio Filho (47) é engenheiro mecânico e industrial, Gregório (42), engenheiro civil e Isabel (40 anos), geóloga e dona de uma escola de idiomas.

Hoje a família ainda luta pela recuperação da memória de Virgílio Gomes, o que inclui um processo contra o filme O Que É Isso, Companheiro? (de Bruno Barreto, 1997), baseado no livro de Fernando Gabeira; e a descoberta, em 2004, de um laudo que comprova ter o Estado sido o responsável pelo seu assassinato. Luta também para que sejam reconhecidas as barbáries contra ele cometidas, que resultaram em sua morte, mais uma questão inserida na rediscussão da Lei de Anistia. Com o apoio do Grupo Tortura Nunca Mais, do Sindicato dos Químicos de São Paulo e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Ilda Martins e seus filhos protocolaram, em setembro de 2009, duas representações no Ministério Público Federal. Exigem que o Estado encontre os restos mortais de Virgílio Gomes (sabe-se que estão em algum canto no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo), e também que torturadores que ainda hoje ocupam cargos públicos sejam imediatamente afastados.

De acordo com Virgílio Filho, o objetivo é desmascarar os agentes que promoveram a tortura ou faziam sua ocultação, como Paulo Maluf e Romeu Tuma. “A esperança de que sejam punidos me motiva. Sem revanchismo. O que está em evidência é o fator moral, de deixar uma lição para as novas gerações.” Para Ilda Martins, é preciso que os culpados sejam reconhecidos. “Eles devem ser afastados da vida política. Isso não quer dizer que sejam apenas o Maluf e o Tuma, mas todos os que estiveram envolvidos. Por tudo o que fizeram, não merecem estar em funções públicas.” Para ela, caso não seja possível encontrar os restos mortais do marido, com pelo menos um “restinho da ossada fariam o sepultamento”. “Se ainda isso não for possível, queremos que seja erguido um memorial, no cemitério da Vila Formosa, em homenagem a todos os que foram torturados e mortos nessa condição. É o mínimo que poderia ser feito”, defende Ilda.

Isabel, a filha caçula, observa o percurso político do pai como um desempenho heróico. “Assim como minha mãe também é para mim uma heroína, pois sempre penso no significado imenso da luta que ela travou para nos criar.”