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A ferida não cicatriza

O maior conflito da História, deflagrado há 70 anos, foi também o mais vergonhoso. O extermínio de 6 milhões de judeus ultrapassou fronts, adentrou casas, escolas, hospitais e alcançou um nível de barbárie inimaginável

Regina de Grammont

“Fugi em 1941 com dois de meus irmãos, quando tinha 14 anos. Não teríamos outra chance de sobreviver.”

O  saldo do holocausto na Segunda Guerra Mundial ainda é ferida aberta para o povo judeu: 6 milhões de civis, entre eles 1,5 milhão de crianças, foram exterminados durante o conflito (1939-1945). Nunca antes nem depois ocorreu na História um evento de perseguição racial de tal magnitude, exercido abertamente por um governo. Desde 1942 o mundo tinha comprovado conhecimento das chacinas e assassinatos em massa. Nada foi feito. Elie Wiesel, romeno sobrevivente do nazismo, escritor e Prêmio Nobel da Paz, recebeu em 1979, do então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, fotos aéreas de campos de extermínio feitas por aviões americanos entre abril e dezembro de 1944. Durante esses voos, nem uma única ferrovia foi bombardeada, talvez uma prova de que não exista nada no mundo absolutamente bom ou ruim. Nem a “força aliada”. 

A questão salta aos olhos no mais recente e provavelmente o mais polêmico filme sobre o assunto, a fábula Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino. O cineasta americano cria um grupo de judeus da resistência encarregado de espalhar o terror entre os nazistas. O comandante Aldo Raine (Brad Pitt) exige de seus comandados cem escalpos de nazistas – “homenagem” aos troféus de guerra de indígenas norte-americanos.

Tarantino não é judeu, mas expressou desejos coletivos nunca realizados e até lançou uma teoria, logo no início do filme, sobre o ódio a esse povo, sentimento sem motivações concretas. A fantasia rola solta e o público, nervosamente, ri. Bastardos Inglórios é mais um sinal de que o assunto está longe de ser enterrado – talvez uma das armas contra a repetição da história.

Afinal, embora nem isso explique o holocausto, Adolf Hitler foi eleito democraticamente. À época de sua nomeação como chanceler, em 1933, a Alemanha ainda pagava o alto preço da derrota na Primeira Guerra, e ele surge como salvador da pátria. Um pretenso herói que nunca escondeu ideais racistas, expressos em seu livro Mein Kampf (Minha Luta, 1924). Em 1934, com a morte do então presidente, Paul von Hildenburg, Hitler conquistou poder absoluto de chefe do partido nazista (Führer), chefe de Estado e chefe de governo. Comunistas, socialdemocratas e sindicalistas foram os primeiros perseguidos e presos. Em seguida, foi a vez dos “associais”, como ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová, protestantes e doentes mentais. Os judeus, então considerados párias da sociedade alemã, foram privados de direitos fundamentais e segregados.

Em 9 de novembro de 1938, Hitler promoveu seu primeiro show de horror: a Kristallnacht, ou Noite dos Cristais, ação de vandalismo da polícia nazista, a Gestapo, e outras milícias. Diferentes fontes registram a destruição de cerca de mil sinagogas, 7.500 estabelecimentos judaicos, cerca de 100 judeus assassinados e 30 mil presos enviados para campos de concentração. Os vidros e vitrais estilhaçados deram nome ao evento. A partir daí, os judeus passaram a ser indiscriminadamente presos, segregados, fuzilados e enterrados em valas comuns por um único motivo: seguir a fé judaica. A ferida não cicatriza. E os últimos representantes da geração que testemunhou aquela tragédia perdem terreno, agora, para a natural passagem dos anos.

“Com a Noite dos Cristais, Hitler testou qual seria a reação do mundo a uma ação brutal direta e organizada contra os judeus alemães. Frente ao silêncio, percebeu que poderia prosseguir”, afirma Ben Abraham, judeu polonês desembarcado no Brasil em 1951. Ele chegou ao fim da guerra com 28 quilos e ficou sete meses internado. Havia passado os primeiros anos no gueto de Lodz e depois em diversos outros campos, incluindo Auschwitz. Teve “sorte”: de sua cidade natal, salvaram-se 1.500 judeus, de uma população de 230 mil.

Um dos vice-presidentes mundiais da Associação dos Sobreviventes do Nazismo e presidente da Associação Brasileira Beneficente dos Israelitas Sobreviventes da Perseguição Nazista, Abraham é parte de uma minoria de sobreviventes empenhada em lembrar o Holocausto, em livros e palestras. “Noventa por cento dos que passaram por campos de concentração tentaram esquecer. Quando se perde a condição humana, em que uma batata podre boiando em um esgoto é levada imediatamente à boca, é tarefa cruel manter a memória acesa”, diz. E as novas gerações, aparentemente, não resistem a tentar compreender uma história que parece surreal: “Antes de cada início, os diretores me alertam para o comportamento difícil dos alunos. Mas, enquanto falo, o silêncio é absoluto”.

Regina de GrammontBen Abraham
Miriam foi a única criança judia a sobreviver na cidade de Luck, Polônia. Veio para o Brasil em 1951 e aqui conheceu Ben Abraham

Inimigos de Estado

Em Bastardos Inglórios há para os mais atentos respostas a duas septuagenárias perguntas. A primeira: por que os judeus não fugiram da Alemanha antes da guerra? Aqui, é preciso lembrar que as mudanças foram ocorrendo lentamente. Em abril de 1933 foram decretadas as Leis Arianas, dando início à segregação social e política dos judeus – com prisões sem processos, boicote econômico, congelamento de contas bancárias, proibição de ocupar cargos públicos. Mas a vida ainda parecia possível. Em 1935, as Leis de Nuremberg, ou Lei para a Proteção do Sangue e da Honra Alemães, traziam seus decretos antissemitas. Naquele momento, os países já tinham definido cotas de emigração que se reduziam à medida que a situação se tornava mais crítica na Alemanha. 

Também foi progressiva a forma com que os nazistas criaram métodos de confinamento para seus “inimigos de Estado”. Os guetos eram áreas reservadas dentro das cidades; os campos de concentração eram como grandes presídios; e os campos de extermínio, dotados de câmaras de gás e crematórios coletivos, eram para onde, a partir de 1942, iam os condenados. Houve mais de 20 mil campos de concentração pela Europa e seis de extermínio: Auschwitz-Birkenau, onde cerca de 1,6 milhão de pessoas foram assassinadas; Belzec, 736 mil; Chelmno, 890 mil; Maydanek, entre 700 mil e 900 mil; Sobibor, 780 mil; Treblinka, 1,2 milhão. 

A segunda pergunta é: por que não houve resistência frente às agressões, cada vez mais brutais? A resposta é: houve. O caso mais famoso aconteceu no Gueto de Varsóvia, na Polônia, numa área de 4 quilômetros quadrados com 400 mil judeus confinados. Em abril de 1943, após a deportação de 300 mil para Treblinka, um grupo de 750 combatentes se rebelou. A batalha durou menos de um mês e é vista no filme O Pianista, de Roman Polanski. Em Treblinka e em Sobibor, os prisioneiros atacaram os guardas e foram fuzilados. No ano seguinte, 250 morreram em uma revolta em Auschwitz, outros 200 foram fuzilados depois. Houve outros levantes – não era o tipo de informação que interessava aos alemães registrar. E havia os grupos de partisani, um capítulo à parte.

Regina de GrammontAndré
André conseguiu chegar ao Brasil aos 9 anos com uma leva de crianças judias da Bélgica. Ao lado uma foto junto à família que o acolheu

Única chance

A definição clássica de partisan é “membro de uma tropa irregular formada para se opor à ocupação estrangeira de determinada área”. Na Segunda Guerra, formaram-se vários grupos que atuavam com técnicas de guerrilha, acampados em florestas, composto por refugiados que pudessem lutar e, quando possível, dar condições de vida para idosos, mulheres e crianças que conseguiam escapar de cidades invadidas pelo Exército nazista. Moisés Szutan, lituano que vive no Brasil desde 1947, foi partisan do primeiro grupo de resistência criado por prisioneiros de um gueto, o de Vilna. “Fugi em 1941 com dois de meus irmãos, quando tinha 14 anos. Não teríamos outra chance de sobreviver.” Seus pais e dois irmãos menores foram assassinados no gueto, assim como a quase totalidade dos 20 mil habitantes. Apenas algumas centenas sobreviveram.

O grupo de Szutan era coordenado e mantido pelos russos, povo que perdeu na guerra 20 milhões de vidas. Recebia armas e remédios lançados de paraquedas. A comida era levada de fazendas e casas da região, em assaltos coordenados. A missão do grupo era “atacar pelas bordas”: dinamitava pontes, destruía linhas férreas, armava emboscadas. Em uma ação, Szutan e sete homens se confrontaram com os alemães. Três morreram. Uma ponte foi destruída. Ele traz na perna a marca de um ferimento a bala. “No começo foi muito difícil. Depois conseguimos nos organizar. Era nossa única possibilidade de sobrevivência. Os invernos eram longos, a comida tinha de ser enterrada para não estragar”, conta. Apenas nas florestas da Lituânia estima-se que atuaram cerca de 17 mil partisani.

Miriam Brik Nekrycz, mulher de Ben Abraham, teve uma experiência com florestas, na Polônia. Ela foi a única criança judia de Luck a sobreviver aos massacres. Com a invasão alemã à sua cidade, iniciou uma maratona por vilarejos vizinhos. Quando a situação ficou insustentável, inclusive por conta da perseguição e delação de poloneses não judeus, ela, sua mãe, a tia, primos e irmãos refugiaram-se na floresta. Conseguiram sobreviver por um período à base de esmolas. Um dia uma polonesa cristã, cujo marido havia sido convocado pelo Exército russo, chamou-a para prestar serviços domésticos em troca de casa e comida. Miriam levava diariamente restos de refeições para sua família. Até um dia em que, ao se aproximar, ouviu tiros. Quando o barulho cessou, encontrou a família morta. Por ter tias no Brasil, veio em 1951. Há alguns anos fez uma viagem martirizante pela Europa. “Não há ninguém em Luck a quem consultar sobre minha família: mais de 25 mil judeus foram fuzilados e enterrados em uma vala comum.”

Esse era um expediente convencional, até que fosse arquitetada a Solução Final, o eufemismo macabro para o plano definido em 1942 pelo governo nazista para eliminar por completo a população judaica. Os campos de extermínio começaram a receber hordas de prisioneiros a partir daquele ano. Os de concentração existiam desde 1933. Há o registro da chegada dos americanos a Dachau, o primeiro deles. Encontraram cerca de 32 mil prisioneiros amontoados em 20 barracas, cada uma com capacidade para 250 pessoas. Também encontraram quase 40 vagões de trem, cada um com cem ou mais corpos. Tudo está documentado em imagens fotográficas e depoimentos de sobreviventes ou dos poucos carrascos presos e julgados após a guerra.

Diz o Talmud, um dos livros sagrados dos judeus, que “quem salva uma vida é como se salvasse toda a humanidade”. A frase se aplica a diversos heróis que atuaram silenciosamente na guerra. A brasileira Aracy de Carvalho Guimarães Rosa ganhou o apelido de Anjo de Hamburgo por salvar centenas de judeus, ignorando leis antissemitas e concedendo vistos que abriam caminho para refúgio no Brasil. Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordeaux, salvou mais de 30 mil pessoas com expediente similar. Mais famoso que ambos foi o feito do empresário alemão Oskar Schindler, retratado em A Lista de Schindler por Steven Spielberg.

Em outros locais, populações se mobilizaram. A de Le Chambon-sur-Lignon, na França, deu abrigo a centenas de crianças. Em outras cidades europeias o mesmo foi feito: e essa é a história do belga André Daniel Reisler. Aos 9 anos, com documentos falsos, ele passou a viver com uma família que colaborava com a resistência em Charneux, na Bélgica. “Frequentei a escola e vivi como cristão. Ia à missa todo domingo, mas o padre conhecia minhas origens.” Ele vivia com o medo diário de entregar a identidade judaica com alguma atitude ou comentário suspeito. Em dezembro de 1944, Reisler voltou a viver com a mãe, que trabalhou por anos com falsa identidade na casa de uma família rica. O pai, depois de preso na Suíça, conseguiu juntar-se a eles mais tarde. Voltou à Bélgica de bicicleta. Reisler vive no Brasil desde 1951.

Quando a guerra acabou, 27 milhões de soldados e 25 milhões de civis estavam mortos. Para Ben Abraham, só estaremos livres de uma nova tragédia dessas proporções quando tivermos discernimento para não permitir a ascensão de líderes como Hitler: “Não acredito que algo assim possa acontecer nas próximas décadas. Mas quem pode prever daqui a 100 anos? Nossa melhor arma é a consciência política, saber escolher bem aqueles que colocamos no poder”.