entrevista – parte 1

Muito além de Kyoto

O mundo não tem escolha: precisa se impor metas muito mais ambiciosas contra o aquecimento, com o cuidado solidário de não agravar desigualdades entre ricos e pobres

Jailton Garcia

Nobre não consegue separar a discussão climática e ambiental da social e da necessidade de redução das desigualdades que elas embutem

O Protocolo de Kyoto, redigido em 1997, estipulou que, a partir de 2005, os países ricos deveriam começar a reduzir suas emissões de gases causadores do efeito estufa de modo a atingir em 2012 uma emissão 5% menor dos que em 1990. Mesmo com a comunidade científica considerando tímida essa meta para deter o processo de aquecimento global, o mundo desenvolvido acabou nunca sendo muito cobrado nem o tema comovia a mídia de massas. O soco no estômago da humanidade foi o relatório do  Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da ONU, divulgado em 2007.

O IPCC reúne, desde 1988, delegações de 130 países para estudar a mudança climática. Desde então, divulga análises do impacto da ação humana na alteração do clima. A de 2007 foi a quarta e mais explosiva. Pela primeira vez demonstrou convicção de que a emissão de gases como dióxido de carbono (CO2), óxido nitroso (N2O) e metano (CHNO4) não só esquentam demais o planeta como, a seguir nessa toada, a temperaturar da Terra pode subir até 4º C antes da virada do século. Para evitar uma catástrofe biológica semelhante à de milhões de anos, quando os dinossauros começaram a desaparecer, os países ricos terão de reduzir drasticamente suas emissões e ainda encontrar um jeito de ajudar as nações mais pobres a crescer, inclusive para se tornarem menos vulneráveis a doenças, desnutrição, desproteção social e outros danos do aquecimento já em curso e irreversíveis, como chuvas, tempestades e secas além da conta.

Esse trabalho conferiu ao IPCC, junto com o ex-vice-presidente dos EUA, Al Gore, um Nobel da Paz. Compartilha desse prêmio o brasileiro Carlos Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, integrante do painel da ONU sobre o clima e um dos autores do relatório. Para ele, o trabalho mostra que as metas de Kyoto são mesmo insuficientes para fazer cócegas no efeito estufa. E que o mundo vai ter de desdobrar por pós-2012 (“para nem usar a expressão pós-Kyoto”, diz) mais rigoroso com os grandes emissores.

Nobre não consegue separar a discussão climática e ambiental da social e da necessidade de redução das desigualdades que elas embutem. Para ele, o Brasil deve investir em tecnologia, modernizar sua agricultura e se tornar de fato celeito do mundo sem destruir biomas como o Cerrado, a Amazônia e o que resta de Mata Atlântica. E defende que os países em desenvolvimento que protegem suas florestas e seus biomas sejam remunerados pelos países ricos, por sua condição de grandes poluidores.

Revista do Brasil – A humanidade evoluiu tanto nos últimos 300 anos que esquentou o planeta. O que Charles Darwin diria dessa evolução?

Carlos Nobre – O que estamos fazendo com o planeta desde a Revolução Industrial, e principalmente nos últimos 50 anos, Darwin teria dificuldades de explicar. Ele revelou ao conhecimento universal como é intricada e complexa a geração de espécies, como são criadas e desaparecem. Tudo o que Darwin estudou existia dentro de um ambiente em que as limitações ambientais eram estímulos à evolução das espécies. Hoje uma espécie, nós, está sendo capaz de causar um efeito só possível, no passado, por grandes cataclismos, telúricos, vulcanismos, meteoritos, coisas de escala imensa e completamente fora do controle humano. Darwin não poderia prever a existência de uma espécie como nós, que teria condição de destruir a vida.

Desde os anos 1980 se intensifica a constatação de que o aquecimento global é provocado pelos processos de desenvolvimento, pela ação do homem. Mesmo assim, não temos conseguido frear como deveríamos esse fenômeno?

A descoberta de que estávamos modificando os equilíbrios naturais que mantêm a temperatura do planeta estável, por injetar gases que o aquecem, é antiga, do século 19. Mas a percepção de que isso poderia ocasionar mudanças climáticas muito profundas é recente. Se não alterarmos essa curva de aquecimento e de emissão dos gases, podemos perder 40% ou mais da biodiversidade do planeta até o final do século. É uma catástrofe biológica do tamanho daquela da época da extinção dos dinossauros. Somos uma força transformadora como foi o enorme meteorito que caiu 65 milhões de anos atrás, mudou o clima do planeta e iniciou o desaparecimento de inúmeras espécies. A mudança climática, passada de um certo ponto, torna-se irreversível. Um exemplo é o gelo flutuando sobre o Oceano Ártico.

A camada de gelo está se mesmo se afinando a ponto de tornar o Ártico navegável até 2020?

A cada verão o gelo fica mais fino, e cobrir uma área menor é um sinal precursor muito claro de que o que estamos causando é uma transformação que não tem paralelo na história humana, nem na do Homo sapiens, nem na da civilização. O gelo no Ártico é o primeiro precursor que está mostrando: é muito rápida, abrangente, séria e grave essa desestabilização. A ciência previu que talvez até o final do século isso pudesse acontecer, se continuássemos a aquecer o planeta. Já as previsões de hoje são “não dá mais para voltar”. O gelo do Ártico vai desaparecer no verão, mesmo que a gente pare de emitir os gases amanhã. Essa rapidez mostra que não entendemos tudo, podemos ter muitas surpresas – e, infelizmente, as surpresas estão se mostrando desagradáveis.

As grandes potências, algumas das principais emissoras de gases, estão preocupadas em amenizar as causas do derretimento do gelo polar, ou em como aproveitar o novo atalho navegável entre o Atlântico e o Pacífico?

As populações desses países estão preocupadas, sim. Essas rápidas mudanças vão afetar a cultura e o modo de vida das populações inuítes, todo o círculo ártico do Canadá, do Alasca, da Sibéria, do norte da Noruega, Suécia, Finlândia, todas as populações indígenas tradicionais. A vida que se desenvolveu nesses ambientes muito frios está adaptada àquelas condições. A gente normalmente usa o símbolo do urso polar. Ele pode sobreviver em zoológicos, se reproduzir em cativeiro, mas vai desaparecer do seu ambiente natural. Ele precisa daquelas banquisas para caçar as focas. Desaparecendo essas camadas de gelo, acabou.

Nos países pobres, a capacidade da sociedade de absorver o choque e dar a volta por cima não é comparável com a do mundo rico. É esse o outro grande dilema moral sobre o qual as mudanças climáticas nos fazem refletir. O continente africano é responsável por 4% das emissões  de gases estufa; os Estados Unidos, por mais de 25%.

As populações dos países desenvolvidos, principalmente dos mais afetados, estão muito preocupadas. Há propostas de cientistas de um tratado internacional para o Ártico, que reproduza o espírito que conduz o Tratado da Antártida, terra de ciência, com exploração só científica. Há um movimento internacional agora para fazer do Ártico a mesma coisa, para que não haja possibilidade de começar uma exploração econômica em cima de uma tragédia ambiental sem precedentes.

O aquecimento global não discrimina hemisférios. Mas há consequências diferentes para o Norte e para o Sul, onde a proporção água/continente é bem diferente?

O Hemisfério Sul não está menos vulnerável. No Norte, tem muito mais terra, tem mais de 90% da população mundial. No Hemisfério Sul há muito menos gente, mas os impactos biológicos e ecológicos nos oceanos do Sul ou nos continentes são muitos. Nas regiões semiáridas, resultam na diminuição da água disponível para a agricultura, para os ecossistemas. Isso é comum em boa parte da África, na Austrália.

No Sul há menos gente, mas mais pobreza. O Lago Chade, por exemplo, na África Central, um dos maiores do mundo, está secando.

Isso é um capricho das mudanças climáticas. As emissões são mais altas no Hemisfério Norte, sobretudo e historicamente nos países desenvolvidos, que emitiram 65% de todos os gases e têm 20% da população mundial. As demais regiões, onde estão 80% da população mundial, emitiram só 35%. A África, principalmente a parte seca, o Lago Chade, é a região que, na minha opinião, é a mais vulnerável. É ali que, em pleno século 21, os impactos, pelo menos no que concerne às necessidades humanas, serão mais duros. Tem muito a ver com menos água.

E também com a própria estrutura daquelas sociedades, muito menos desenvolvidas em termos de acesso a saúde, educação, alimentação, proteção social…

O mesmo impacto climático numa região semiárida e em um país rico tem consequências diferentes, será 20 vezes maior na África Subsaariana que no sudoeste dos Estados Unidos. Nos países pobres, a capacidade da sociedade de absorver o choque e dar a volta por cima não é comparável com a do mundo rico. É esse o outro grande dilema moral sobre o qual que as mudanças climáticas nos fazem refletir. O continente africano inteirinho é responsável por 4% das emissões históricas de gases estufa; os Estados Unidos, por mais de 25%. Então tem uma questão muito importante de justiça na discussão das mudanças climáticas. Se não houver ajuda substancial, as mudanças climáticas serão mais uma barreira ao desenvolvimento desses países. Isso é grave porque não foram eles que causaram o problema. Onde a pobreza do mundo está é onde haverá o maior impacto e efeito em função da vulnerabilidade e das mudanças climáticas.

Esse cataclismo social também está na agenda das reuniões sobre o clima nos últimos anos?

O assunto da vulnerabilidade dos pobres entrou na pauta de discussão de forma relevante. A Convenção Climática, desde seu início, nunca deixou de considerar que os mais pobres precisam de assistência para se adaptar. Essa questão se tornou muito importante. Mas, mesmo dois anos depois do relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), essa preocupação ainda não se transformou num plano de ações, não se materializou, ainda está no nível das discussões. E aí não tem muita dúvida, são necessárias duas respostas. Por um lado, diminuir o risco, não deixar o planeta superaquecer, é só uma maneira de proteção para as futuras gerações, principalmente dos países que precisam se desenvolver. E a segunda maneira é com desenvolvimento. As sociedades mais desenvolvidas, junto com o desenvolvimento, criam mecanismos de se proteger dos extremos climáticos, de minimizar riscos. O desenvolvimento dos países pobres é uma ferramenta muito importante.

Essa sequência de instabilidades no Brasil – dois anos seguidos de estragos causados por chuvas e enchentes no Norte e Nordeste, ventos fortes, tempestades no Sul – tem relação com o efeito estufa? E os tsunamis na Ásia?

Alguma coisa tem e outras não. Tsunamis são maremotos, fenômenos de ajuste das placas tectônicas. Quando elas se chocam geram vulcões e terremotos. Se isso acontece embaixo do oceano, entre as placas que estão submersas, há um maremoto. Maremoto gera tsunami. O que aconteceu em Samoa foi tsunami, na Indonésia, terremoto. Isso não tem nada a ver com aquecimento global. As tempestades severas têm. Pelo panorama mundial, podemos demonstrar cientificamente que a intensidade muito forte das tempestades é característica de um planeta mais quente. No Brasil, estamos estudando e começando a ter evidência científica de que isso já está acontecendo no Sul. Hoje, os fenômenos intensos, ventanias, chuvas de granizo, tempestades fortes, estão ocorrendo mais vezes nos últimos dez anos do que 50, 60, 100 anos atrás. É lógico que é preciso mais estudo e por um período muito longo para poder de fato dizer que isso é algo que veio para ficar, e não uma oscilação temporária. E não é só chuva mais intensa, não. O sul do Brasil vem enfrentando secas nos últimos nove anos.

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