entrevista – parte 3

Indivíduo sustentável vive com o que precisa, nada mais

Não podemos seguir o modelo das sociedades ricas. O que levou à crise ambiental. E um novo modelo depende do indivíduo. A expectativa dele é que transforma a sociedade

Jailton Garcia

Para Nobre, é impossível o mundo continuar com o consumo em cima dos recursos naturais que temos tido nos últimos 50, 60 anos

Nobre afirma que não é contra as hidrelétricas, e admite que as usinas modernas não têm grandes reservatórios, ocupam menos espaço e afetam menos o ambiente. Mas critica o fato de o Brasil estar absurdamente concentrado num modelo hidrelétrico sem nunca ter investido em novas fontes de energia limpas e renováveis, como a dos ventos, do sol e da biomassa. Explica que a adoção do aquecimento solar dos chuveiros nos empreendimentos de habitação popular financiados com recursos públicos poderia representar, ainda, uma economia enorme economia das famílias com a conta de luz. E finaliza alertando que é impossível o mundo continuar com o consumo em cima dos recursos naturais que temos tido nos últimos 60 anos. “A percepção do indivíduo do que é felicidade, do que ele busca, é muito fundamental. Ele tem de sair da sociedade de consumo”, diz. “A valorização excessiva do bem material, característica da sociedade de consumo e da qual o sistema todo de mercado se beneficia, exacerba o desejo das pessoas de ter e de acumular… pra quê? O importante é viver bem.”

Revista do Brasil – O senhor considera desnecessárias as construções das usinas hidrelétricas nos Rios Madeira e Xingu, por exemplo?

Carlos Nobre – Aí é outra questão. Obviamente há uma demanda por energia, e para tirar 100 milhões de brasileiros da pobreza é preciso mais energia. Como atender? Eu não sou contra hidrelétrica, para começar. As hidrelétricas que são feitas hoje, as chamadas fio d’água, não têm grandes reservatórios, ocupam um espaço muito menor, afetam muito menos o ambiente e um número muito menor de pessoas. Então, ideologicamente não sou contra hidrelétricas. Agora, não podemos mascarar o fato de que o Brasil tem o maior potencial de energias renováveis – do vento, solar, biomassa, água – e está muito na água. Está desequilibrado, porque hoje parece que esses outros modelos são mais caros, mas no futuro serão baratos. E estamos perdendo o bonde da história. A Índia acabou de anunciar que vai inaugurar uma gigantesca usina solar. A China anunciou há pouco uma produção de energia solar do tamanho de Jirau. E o Brasil patinou, quando tem todas as fontes de energia em abundância.

Faço uma analogia com o problema das rodovias. O Brasil tem uma matriz de transporte extremamente defeituosa, de rodovias, quando em todos os países continentais do mundo é de ferrovias. Tínhamos muito mais ferrovias no passado e perdemos. O acoplamento indústria automobilística-rodovia ajudou a alavancar o desenvolvimento industrial, foi muito importante a partir da década de 1950, mas isso não significava que o Brasil deveria perder as ferrovias. E nós estamos em 2009! Com eletricidade é parecido. O país tem muita água, isso foi bem aproveitado, 85% da eletricidade vem da água, mas não foi para outras coisas. Se o Brasil adotasse eficiência energética – por exemplo, substituir as lâmpadas, adotar geladeiras eficientes etc. –, só aí ganharia uma Itaipu e meia. E investindo nas outras formas ficaria com uma matriz menos desequilibrada e menos dependente de ter de aproveitar tanto a água. Não é não aproveitar, é depender menos. Assim seria muito mais fácil negociar deslocamentos de populações locais, para não chegar à situação de “tem de fazer para evitar um apagão em 2000 e não sei quanto”. O aquecimento da água por energia solar aumenta em 3%, 4% o custo de uma construção popular de 50 metros quadrados. Um equipamento desses dura 15 anos e a economia será pelo menos cinco vezes maior que seu custo. Se eu participasse de um movimento social por moradia, lutaria por uma lei que tornasse obrigatória a construção da casa popular com aquecedor solar. Agora a Caixa Econômica Federal começou o primeiro programa nesse sentido. Estamos em 2009 e essa tecnologia é conhecida há cem anos. Se tivéssemos uma lei no Brasil que obrigasse todas as residências a substituir a energia elétrica só do chuveiro, adotando o aquecedor termossolar, seria mais uma Itaipu e meia. Só chuveiro.

Em quanto tempo?

Uma placa solar dura 15 anos. Sim, uma hidrelétrica dura 120 anos, você tem de computar isso no custo. Um aquecedor termossolar se paga em três anos. Durante outros 12, o usuário estará usando seu dinheiro com outras coisas. E isso é bom para a economia. Levando-se em conta todas as casas do país, a indústria de aquecedor geraria mais de 600 mil empregos. Construir uma usina como Itaipu, 4 mil empregos – na hora, depois ficam uns 400 empregos. Então, uma indústria brasileira para abastecer as residências de aquecedor solar seria muito mais dinâmica para a economia. Economiza energia, gera mais emprego, diminui a necessidade de energia elétrica ou a disponibiliza para outros usos. A Alemanha em 2020 terá 20% de sua energia de origem solar, e o Brasil, que é um país tropical, cheio de sol, vai chegar lá a 0,3%. Então, trata-se de um conceito: para essa coisa que o Brasil tem de sobra – que é energia renovável – falta política.

O Brasil já perdeu esse trem da história?

Não. Mas não podemos ficar deitados eternamente em berço esplêndido. Quem sabe com a Olimpíada, e esse orgulho todo que o país está sentindo, as pessoas acordem, “oba, vamos ser um país moderno”. Algumas decisões são estratégicas. Houve um momento em que todo mundo começou a comprar carro a álcool, no final dos anos 1970. Aí a Petrobras era contra o álcool, e o álcool começou a sumir das bombas. Felizmente, por uma medida de política pública, foi mantida a exigência de uma presença mínima de álcool na gasolina, e isso fez o Proálcool sobreviver. Imaginem se tivéssemos matado o Proálcool lá atrás, se o Brasil estaria hoje dando as cartas diante de uma grande crise energética no mundo. Não daria mais para recomeçar, teria perdido outro bonde, e já perdemos um monte deles – como o da indústria informática.

A reserva de mercado dos anos 1980?

Que foi pessimamente conduzida e, então, abandonada. Era para permitir que se desenvolvesse aqui uma superindústria de microeletrônica, como a dos Tigres Asiáticos, Coreia, Taiwan. Então, quando a coisa é benfeita, como foi manter estrategicamente o álcool, pode até ser cara no início, mas tem de ser de longa duração. Veja só: hoje o álcool é 40% mais barato que a gasolina, e lá em meados dos anos 1970 era mais caro. Melhoraram a produção e a tecnologia, investimos. Ah, hoje a energia eólica é mais cara, a solar é mais cara? É. Esqueça isso e vamos pensar no nosso potencial e desenhar o país em função desse potencial.

Ninguém está projetando uma diminuição da qualidade de vida. Ao contrário. E ninguém deve abrir mão de se organizar para cobrar que seu sindicato lute, que o governo trabalhe, que suas condições de trabalho melhorem, isso faz parte da sociedade, da democracia. Mas a transformação principal de que precisamos é comportamental.

Qual a sua visão em relação à expectativa com o pré-sal? Seria um contrassenso tanto investimento numa fonte de energia que deve deixar de ser utilizada ou ter seu uso reduzido no médio prazo?

Seria irrealista imaginar que valiosos recursos energéticos fósseis, principalmente o petróleo, não serão utilizados nas próximas décadas, até porque toda a economia do mundo é totalmente “viciada” nessa fonte de energia. A humanidade reluta em abandonar esse “vício”, ainda que isso seja tão fundamental para a sustentabilidade a longo prazo. Assim, o realismo pragmático nos diz que os recursos energéticos do pré-sal serão utilizados, de uma maneira ou de outra. Alguns cuidados são mandatórios: que não signifiquem uma distração da tarefa maior de desenvolver rapidamente o gigantesco potencial do país em fontes renováveis, limpas, de energia; que a grande quantidade de gás carbônico misturado ao petróleo não seja despejada na atmosfera, isto é, deve ser recuperado no processo de extração do petróleo e reinjetado no próprio reservatório do pré-sal; e que essa riqueza mineral seja quase exclusivamente utilizada para permitir vencer grandes lacunas típicas do nosso subdesenvolvimento, e cito a educação de qualidade e em massa em todo país e a capacidade de inovação científica e tecnológica, pois ambas são nossa porta para o futuro.

E o cidadão, além de cobrar governos, empresas, sindicatos, pode individualmente fazer alguma coisa contra o aquecimento? Ou qualquer esforço individual não fará a menor diferença?

Faz toda a diferença. É impossível o mundo continuar com o consumo em cima dos recursos naturais que temos tido nos últimos 50, 60 anos. A percepção do indivíduo do que é felicidade, do que ele busca, é muito fundamental. Ele tem de sair da sociedade de consumo. Mas aí alguém vai gritar: “Vai acabar com a produção!” Não vai. Os empregos se transformam. As necessidades da sociedade pós-consumo são muito grandes, mas são menos materiais. Na sociedade pós-consumista os empregos vão estar na área de atendimento à saúde, intelectual, softwares, serviços. O cuidado à pessoa, à criança, a educação, as artes, a cultura. Essas são as grandes indústrias do futuro. A reciclagem vai ser a grande indústria material do futuro. O indivíduo tem de querer deixar de ser presa fácil da sociedade de consumo. Quando meu pai conseguiu comprar o primeiro carro – ele operário, minha mãe operária, na época da grande aceleração da indústria material –, a família inteira comemorou. Mas aquele veículo era mais um símbolo – a gente estava saindo da família pobre e entrando na classe média – do que uma necessidade. Então, essa valorização excessiva do bem material é a característica da sociedade de consumo e da qual o sistema todo de mercado se beneficia, exacerbando o desejo das pessoas de ter, ter, ter e de acumular… pra quê? O importante é viver bem.

É possível ser feliz, ser saudável e ter uma vida digna consumindo menos energia, menos bens materiais?

É. Ninguém está projetando uma diminuição da qualidade de vida. Ao contrário. E ninguém deve abrir mão de se organizar para cobrar que seu sindicato lute, que o governo trabalhe, que suas condições de trabalho melhorem, isso faz parte da sociedade, da democracia. Mas a transformação principal de que precisamos é comportamental. O Brasil não pode cair na tentação de seguir o modelo fóssil, ultrapassado, que nos levou à crise ambiental, que vem das sociedades ricas, capitalistas, de máxima utilização de recursos não renováveis. Esse novo modelo depende do indivíduo. A expectativa dele, a vontade dele, é que transforma a sociedade.

O senhor está dizendo que indivíduo sustentável é aquele que vive com aquilo de que precisa, nada mais?

É isso. Bem colocado.

Leia também:

>> Muito além de Kyoto – parte 1

>> Solidariedade exigida dos ricos não é gratuita – parte 2

>> Bernardo Kucinski: catástrofe ecológica não assusta países ricos

< volta