Ponto de Vista

A terra e o sangue

As reformas agrárias sempre foram atos de astúcia dos governantes e fazem parte da história das grandes democracias. Mas alguns se esquecem disso

A CPI que os barões do agronegócio – e sua bancada no Congresso – querem mover contra o MST é perigosa provocação com objetivos eleitorais. Se a senadora Kátia Abreu e o deputado Ronaldo Caiado, seus vociferantes porta-vozes, dedicassem ao estudo da História parte do tempo que passam contando seus bois e verificando os limites de suas fazendas, seriam mais comedidos. As reformas agrárias sempre foram atos de astúcia dos governantes. Os homens se alimentam da terra, que produz e reproduz a vida, como é óbvio, mas alguns se esquecem disso. A primeira reforma agrária bem documentada, a de Sólon, na Grécia, ocorreu 594 anos antes de Cristo.

Naquele tempo os lavradores eram obrigados a dar aos donos da terra cinco sextos da produção, ficando apenas com um sexto para a ali mentação das famílias. A situação chegara a um ponto insustentável e, logo que eleito arconte (naquele tempo, principal governante) de Atenas, Sólon mandou libertar os servos, determinando a destruição dos marcos que limitavam as áreas trabalhadas pelas famílias, anulou os débitos dos trabalhadores e abriu caminho para que o Estado ateniense florescesse nos dois séculos seguintes.

Em Roma, a primeira tentativa de reforma agrária, a do nobre Espúrio Cássio, 486 a.C., foi abortada com o sangue de seu criador. A reforma agrária geral, encetada por Tibério e Caio Graco 350 anos depois, trouxe efeitos práticos, mas custou a vida dos dois irmãos, assassinados pelos nobres. A retomada da situação anterior, com sua injustiça estrutural, fomentou a grande Rebelião de Espártaco. Mas, se muitas das reformas agrárias romanas foram frustradas, Pompeu conseguiu realizar uma, de grande astúcia política. A fim de combater os piratas do Mediterrâneo, distribuiu terras nas costas férteis da África romana aos que deixassem a atividade. Foi a forma inteligente de liberar o mar para os barcos de Roma.

É mentira corrente que sem o agronegócio não seria possível alimentar o povo brasileiro. O agronegócio produz para exportar. Para o consumo interno, produz a sufocada agricultura familiar

Os latifundiários brasileiros alardeiam o direito de propriedade, a fim de impedir a reforma agrária. Em pronunciamento, no princípio de outubro, o desembargador Amílton Bueno de Carvalho foi incisivo: “Nós, juristas, podemos fazer a reforma agrária, sem nenhuma nova lei. Apenas exigindo o cumprimento da função social da terra, prevista na Constituição”. No caso brasileiro, 90% das grandes glebas foram griladas no último século. Se o governo promover a perícia nas escrituras lavradas, principalmente nas áreas de ocupação mais recente, descobrirá que quase todas as escrituras são falsas.

O MST, ao contrário do que diz a grande imprensa, tem evitado o pior. Reúne a esperança dos que habitam a miséria e contém a revolta latente dos desempregados e dos expulsos pelo latifúndio. Parte da classe média urbana ainda não percebeu que, sem a ocupação de terras improdutivas, a fome levaria a rebeliões sangrentas, como tantas ao longo da História. Em 1358, os camponeses de extensa região da França se revoltaram contra os nobres senhores. A revolta foi derrotada e sufocada com sangue, mas a nobreza, dizimada diante da ira dos pobres. Famílias inteiras dos barões e condes foram degoladas, poupando-se apenas as crianças. No Brasil, o que tem ocorrido é o massacre dos trabalhadores. Nos últimos anos, mais de 1.600 militantes foram assassinados por pistoleiros de latifundiários e forças policiais.

No caso recente da invasão da fazenda da Cutrale, as terras pertencem à União, que nelas estabeleceu uma colônia agrícola em 1909. O MST ocupa terras ociosas e ilegais. O Censo de 2006 revela 15 mil proprietários para 98 milhões de hectares. Um por cento dos donos controla 46% das terras cultiváveis.

Uma mentira corrente é que, sem as grandes plantações do agronegócio, não seria possível alimentar o povo. Ora, o agronegócio produz para exportar. Para o consumo interno, principalmente no interior do país, produz a agricultura familiar, que vem sendo sufocada pelos tentáculos do latifúndio, hoje negócio dos grandes banqueiros e corporações multinacionais.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980