Crônica

Mais paixão, menos canhão!

Quando éramos estudantes, em 1965, gritávamos nas ruas: “Mais pão, menos canhão!” Foi a primeira palavra de ordem das manifestações contra a ditadura militar instalada em 1964.

mendonça

Pois agora tenho vontade de gritar: “Mais paixão, menos canhão!” Desta vez a frase é contra certos ditadores que pregam, supostamente para prolongar ou salvar a vida, que se leve uma vida sem gosto, sem prazer, sem pulsações fortes, descorada, enfim.
Agora veio uma equipe de médicos dos EUA (tinha de ser de lá!) dizer que paixão pelo futebol faz mal ao coração. Era só o que faltava! Dizem esses médicos que se apaixonar pelo próprio time aumenta o risco de infarto. E ainda acrescentam: o risco é maior quando o time perde.

O que eles estão apontando é na verdade uma mistura de medo e de amargura, sentimentos que podem dar a tônica na vida de um país (o deles) que tem quase 50 milhões de pessoas fora de qualquer sistema de saúde, coisa que agora o Barack está tentando remediar, encontrando uma resistência danada. E 50 milhões: o equivalente a um quarto de Brasil, ou a 600 Maracanãs lotados. Tem outra coisa: que na vida só se pode ganhar. É ganhar ou ganhar, ganhar e ganhar sempre. Mais ou menos o sentimento que levou aos investimentos cada vez mais malucos, num mercado financeiro cada vez mais maluco e desregrado, até a bolha… estourar. Na nossa mão, e vamos pagando a conta.

O coração tem de estar em forma quando a gente precisar de verdade dele, ou seja, quando ele for atacado. Ele precisa estar acostumado com situações-limite. E a situação-limite por excelência é a da paixão. Amar apaixonadamente, em todos os sentidos do verbo e do advérbio, é o que há de melhor contra o colesterol, e também contra o besteirol de dizer que uma vida sem paixões é a melhor pedida. Viver apaixonado é o melhor remédio contra os canhões que se armam a partir das frustrações e dos ódios.

O esporte ensina uma coisa: que a vida verte e reverte. Que hoje a gente perde, amanhã ganha, depois empata, e vice-versa e versa-vice. O futebol e suas paixões nos ensinam desde criança a ganhar e a perder. Porque tão importante quanto saber perder é saber ganhar. Saber ganhar e saber perder é o contrário do fanatismo. Há algo mais bonito do que uma torcida embandeirada cantando? E há algo mais feio do que uma pancadaria a solta num estádio ou fora dele?

Os da pancadaria não aprenderam com o esporte. A torcida embandeirada está aprendendo a viver, e a viver com solidariedade e paixão. Mas isso também se estende ao outro lado: nada mais bonito do que ver um time jogar a bola pela lateral para um adversário ser atendido no gramado, e depois o outro time devolver a bola. E a gente aplaudir.

Claro, durante o jogo, a gente grita pelo time, xinga o adversário, a mãe do juiz, que deve estar em casa rezando pela vida e pelo bom trabalho do seu filhinho, esse filho da… opa, desculpem. Isso não é problema: faz parte das grandes paixões. Nos grandes amores a gente não cai também nos xingamentos, não puxa de vez em quando um palavrão em vez de um argumento? Nem por isso o amor acaba – desde que uma relação não seja só isso de xingamento e discussão, é claro, porque aí ela já acabou.

Andar não faz bem ao coração? Faz. E uma paixão faz a gente até andar na Lua! Ou nos quintos dos infernos! Então como é que vai fazer mal? O que faz mal é comida sem gosto e vida sem cor, isso sim. Porque aí a frustração rói a alma. E uma alma roída – pela frustração, pelo medo, pela angústia, pelo ódio, pelo fanatismo, pela hipocrisia, pelo cinismo –, isso, sim, é um perigo para o coração, para o próprio e o dos outros também. Por isso, vivam o futebol, o esporte e a paixão!

Flávio Aguiar foi professor de Literatura Brasileira da USP (1973-2006), editor de cultura do Jornal Movimento, diretor de TV e editor-chefe da Carta Maior e assina o blog Cartas do Velho Mundo, na Rede Brasil Atual