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Nada de abismos

Moradores da Rocinha buscam modelo de turismo sustentável, que valorize a cultura e os serviços locais, integre os visitantes à realidade da favela e não faça da pobreza um espetáculo

Rodrigo Queiroz

A beleza… A Rocinha oferece uma das mais belas vistas do Rio

O turismo em favelas movimenta centenas de agências, mobiliza milhares de pessoas em todo o Brasil e já é alvo de críticas. A mais recorrente ressalta o fato de que os passeios são comumente controlados por agentes externos às comunidades visitadas e geram poucos dividendos diretos aos moradores. Ou que a maioria das agências não promove uma interação entre turistas e moradores e acaba por alimentar uma espécie de espetacularização da miséria. Maior favela da América Latina e pioneira no assunto, a Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro, ensaia um salto para melhorar a exploração dessa atividade pela própria comunidade. A tarefa é gigantesca.

Vivem ali cerca de 200 mil habitantes, que recebem na alta estação a visita de até 300 turistas estrangeiros por dia. Essa demanda – passeios monitorados na comunidade – é explorada por cerca de dez agências de viagem e por algumas centenas de parceiros espalhados mundo afora. Essa movimentação inspirou a criação do Fórum de Turismo da Rocinha. “A ideia nasceu em um curso de formação oferecido pelo Sebrae-RJ, do qual participaram diversas lideranças comunitárias”, conta William de Oliveira, morador há 37 anos, presidente do Movimento Popular de Favelas e agora vice-presidente do Fórum de Turismo da Rocinha.

O presidente, o empresário Ailton Araújo Ferreira, conhecido como Macarrão, vê o início de uma nova era: “O turismo aqui já existe há 20 anos, mas há dois estamos trabalhando nesse projeto, angariando apoios, e hoje chegamos a esse nível. É mais um passo importante para adequarmos à comunidade o melhor modelo de turismo”, diz. “Agora, vamos fazer um mapeamento dos pontos de interesse na favela e um levantamento de todos os recursos obtidos com a exploração do turismo. Entra muito dinheiro com essa atividade, e queremos saber para onde ele vai”, destaca William. O levantamento inclui as agências, que cobram de R$ 60 a R$ 100 de cada turista por um passeio, e os recursos públicos que deveriam ajudar o desenvolvimento da comunidade, já que desde 2006 a favela faz parte do Guia Oficial de Turismo do Rio de Janeiro.

Rodrigo Queirozcaos
…E o caos, vista do asfalto, a favela é símbolo da anarquia urbana

Fim do safári?

O modelo predominante de turismo na Rocinha ainda é aquele chamado pejorativamente de “safári”, em que turistas são conduzidos em jipes ou camionetes, visitam os mirantes, compram artesanatos e suvenires, apreciam uma roda de samba e tiram muitas fotos, nem sempre interagindo positivamente com os moradores. Um passeio clássico leva turistas ao magnífico mirante na parte mais alta, conhecida como Laboriaux, com direito a vista da Pedra da Gávea, do Corcovado e do mar de São Conrado, entre outras maravilhas. Em seguida, os visitantes fazem compras no largo dos Boiadeiros e terminam o passeio geralmente na quadra da Escola de Samba Acadêmicos da Rocinha.

“Quero riscar essa expressão ‘safári’ do meu vocabulário”, ressalta William. “Muitas vezes o turista chega em tudo quanto é lugar na Rocinha e sai tirando foto. Tem muita gente que não gosta. E nem estou falando do tráfico, e sim dos moradores comuns. Ouço muitos comentários de que o turista quer filmar o miserável, e tem pessoa que não quer aparecer ali como o miserável, entende?”

O Fórum de Turismo abre a possibilidade de criar na Rocinha roteiros com outra qualidade. “Queremos estabelecer projetos que possam conscientizar os turistas e lhes dar uma aula de cidadania. Muito turista com dinheiro para ajudar ou com trabalho social em seu país pode se interessar pelos projetos sociais e artísticos que são desenvolvidos aqui”, acredita William.

Entre os moradores que de alguma forma se beneficiam do turismo realizado na Rocinha, a expectativa é de melhora. Carlos José da Silva, o Carlinho da Laje, é um deles. Carlinho ganha dinheiro ao deixar turistas passarem algumas horas na laje de sua casa, que tem uma vista de cair o queixo, além de ser equipada com toaletes, churrasqueira e frigobar: “Deixo visitarem minha laje há seis anos. Os turistas que vêm aqui são trazidos pelas agências, que entram em contato comigo. Mas o turismo aqui é mal explorado, acredito que as coisas podem melhorar”.

O Fórum pretende ainda criar alguma atividade que entre definitivamente no calendário turístico e cultural carioca. A ideia é realizar, este ano, a primeira edição do Dia do Tour na Rocinha. “Queremos fazer um dia inteiro de visitação à comunidade destinado a turistas estrangeiros, brasileiros e até mesmo a moradores do Rio de Janeiro. Vamos mostrar o artesanato, o samba, a capoeira e outras manifestações culturais, além de pontos históricos e iniciativas sociais”, conta William de Oliveira. Para o Fórum, parte dos recursos obtidos deve ser empregada na capacitação profissional dos jovens moradores, no ensino do inglês e na formação de guias. Outra ideia é criar uma rede de hospedagem. “Imagina a Rocinha com pousadas boas e seguras, que possam receber com dignidade o turista. É um sonho”, afirma o líder comunitário.

A experiência do Fórum de Turismo da Rocinha deve ser levada para outras comunidades. As vizinhas Canoas e Vidigal, também muito visitadas por turistas, participaram do curso oferecido pelo Sebrae e devem em breve criar os próprios fóruns. O Movimento Popular de Favelas iniciou ainda discussões sobre projetos de exploração do turismo nas comunidades do Dendê, da Babilônia e do Andaraí, na zona norte do Rio. “Sem a vista para o mar e para a Mata Atlântica, algumas comunidades têm de estabelecer formas de valorizar outros atrativos, como o cultural e o social”, diz William.

Rodrigo QueirozWilliam de Oliveira
William de Oliveira: a Rocinha recebe até 300 turistas estrangeiros por dia

Poliglota

O guia Carlos Antônio Souza é uma figura conhecida do turismo na Rocinha. Aos 44 anos, vividos ali, e com duas décadas de experiência como guia, Souza procura transmitir aos turistas um conhecimento verdadeiro sobre a favela, uma abordagem diferenciada. “A maioria dos guias de turismo que trabalham aqui é de fora, e muitos passeios deixam de buscar um verdadeiro intercâmbio. Fazem as duas pontas e perdem o meio”, critica. Souza busca “o meio da favela”, dá um panorama histórico dos últimos 30 anos e trata de temas como infraestrutura habitacional, água, fornecimento de luz: “Conto a história da igreja que temos aqui, sem conotação religiosa, falo também de educação e  saúde, do tratamento da tuberculose, de gravidez na adolescência, de aids”.

Autônomo, Souza presta serviço para seis agências que atuam na Rocinha. O contato com os turistas é facilitado por sua fluência em inglês e espanhol e o bom desempenho em outros idiomas: “Tenho facilidade, não sei explicar. Sou autodidata. Agora estou estudando russo”, conta, sem disfarçar o orgulho pelo dom que o fez conhecido na comunidade. Sua média é de uma visita guiada por dia. “O mais prazeroso é ver o turista entrar com uma ideia do que é a favela e sair com outra, completamente diferente. É bom fazê-lo refletir sobre preconceito e tolerância”, afirma. Ele apoia a criação do Fórum de Turismo: “Temos de preparar a comunidade para receber com seus próprios meios os turistas”.

Os visitantes, muitos estrangeiros, parecem gostar da visita com enfoque social à maior favela da América Latina. Em uma ensolarada manhã de inverno, cerca de 25 estudantes franceses acompanhavam o guia Carlos Antônio Souza. “É marcante ver tanta pobreza e o contraste entre ricos e pobres”, observou Cristelle Cariddi, 31 anos, aturdida com a vista que se tem do morro para as mansões do bairro da Gávea. Xavier Clausel, 24 anos, surpreendeu-se com os ônibus urbanos e as centenas de outros veículos cortando a favela a todo momento. “A Rocinha é muito mais aberta ao mundo exterior do que eu podia imaginar. Eu achava que a favela seria uma coisa muito mais fechada em si mesma.” Um dos mais jovens do grupo, Lyes Guenreïd, 16 anos, notou uma “situação melhor” do que as que já viu na televisão: “A Rocinha até que é bem desenvolvida para uma favela. Eu não esperava, mas todos têm energia elétrica, existe água corrente, tudo isso. Já é alguma coisa. Se continuar a se desenvolver, se transformará num bairro normal”.

Os jovens parisienses não se furtaram a comparar o Rio com a capital francesa: “Também temos pobreza, mas não é tão grande nem tão misturado”, relatou Xavier. Para Cristelle, o que mais caracteriza o Rio é sua histórica convivência entre ricos e pobres no mesmo espaço: “Na França, você vê o pobre de um lado e o rico do outro, um fosso os separa. Em Paris há os bairros pobres do subúrbio, e os suburbanos não vão se misturar com as pessoas dos bairros ricos. Quando essa mistura acontece acaba provocando choques”. Apesar da pouca idade, Lyes, descendente de argelinos, demonstra uma fina observação: “O Rio de Janeiro é bem diferente de Paris, mas lá também há partes da cidade, ou bairros, que têm o caráter de gueto, assim como as favelas”, comparou. “Aqui é muito mais parecido com a Argélia, com seus grandes bairros, os bolsões de miséria e a metrópole.”

Distância do tráfico

drogas

A relação com o tráfico de drogas, naturalmente, é questão problemática quando o assunto é turismo em favelas. A reportagem da Revista do Brasil avistou pelo menos quatro pessoas empunhando armas de grosso calibre, além de dois pontos de venda de drogas. Os traficantes, no entanto, não parecem interferir no turismo. Diluem-se na paisagem repleta de gente, motos, carros e ônibus que sobem e descem o morro. O objetivo dos moradores engajados é não estimular o contato dos turistas com os traficantes nem promover fotos ou qualquer outro tipo de “exibição” remunerada dos soldados do tráfico. “A Rocinha é grande o suficiente para que o turista passe várias horas aqui sem nem mesmo perceber o tráfico”, diz William de Oliveira, vice-presidente do Fórum de Turismo de Rocinha.

Por onde começar

Fórum de Turismo da Rocinha
www.turismorocinha.blogspot.com / (21) 9509-2253

Jeep Tour
www.jeeptour.com.br / (21) 2108-5800

Favela Tour
www.favelatour.com.br / (21) 3322-2727

Rio Party Hostel
www.riopartyhostel.com.br/ (21) 2246-9120

Forest Tour
www.foresttour.com.br / (21) 2236-7818