Crônica

Michael não morreu aqui

Como sentir falta de alguém que nunca me telefonou?

mendonça

Fiquei durante horas, na frente da televisão, vendo o funeral do Michael. Comovida pelas homenagens. Agradecendo mentalmente a presença dos convidados, como um parente que sente sua dor atenuada diante de estranhos, que também amam quem ele perdeu.

A letargia foi cortada por uma lembrança. Recordei-me de um coveiro que, ao ser perguntado sobre a tristeza de seu trabalho, respondeu que “não se chora todos os mortos, só os seus”. Foi um clique, questionei a razão do meu luto, ainda mais que Michael nem havia morrido, e posso provar.

Como sentir falta de alguém que nunca me telefonou? Suponhamos que ele fosse um morto da minha família, ele realmente não mais me telefonaria, nem apareceria numa quinta para comer uma lasanha de supermercado, no bingo da festa junina. Não iria mais ao aniversário da minha tia Cidinha.

Uma pena, mas também, não sei se alivia, não precisaria pagar-lhe a grana emprestada. Que virada na vida depois dos cem mil que ele teria me passado em cheque. O cheque que eu venderia, porque a assinatura do cantor vale mais do que a quantia escrita no papel. Quanto seria mesmo? Daria para abrir um comércio para o meu pai, ele está desempregado.

Teria muita saudade do Michael. Não falo pelo dinheiro, porque a gente trabalha, e quem trabalha paga sempre alguma prestação. Digo pelo contato direto, pela presença física.

O Michael no churrasco, o Michael no batizado, o Michael lavando o prato em que comeu, o Michael cortando unha do pé com o alicate da minha irmã, o Michael no enterro do meu avô, o Michael tomando cerveja na rodoviária antes de pegarmos o ônibus para o litoral.

As irmãs de Michael me mandariam passagem, assim teriam minha companhia no velório, mas eu não poderia ir. Que desaforo, as irmãs demoraram a mostrar o morto no estádio para dar tempo de o costureiro terminar o vestido preto.

Daria até tempo de chegar, mas não iria, não quero ir mais ao enterro do Michael. Sentiram minha falta, deu para perceber, daqui de casa vi que a mais velha olhava na plateia procurando minha cara, e nada. Eu, no lugar dela, pedia o cheque de volta, o de cem mil.

Fosse Michael um morto que me dissesse respeito, ele iria para o jazigo de minha avó Maria de Jesus. Num cantinho, porque no ano passado morreu meu tio Antônio. Não dá para todo mundo morrer numa excursão, não cabe.

Michael estaria entre Maria e Antônio, missa em Minas Gerais numa capela justa e limpa, biscoito de polvilho e café para os conhecidos numa primeira visita pós-enterro. Decente, com silêncio de gente boa e que, de fato, conhecia o Michael.

Agora que devolvo o Michael aos seus donos, ele estará vivo daquele jeito que o conheci, como é mesmo? Vestido de defunto, saindo de uma cova, dançando com outros cadáveres. Continua vivinho da silva no rádio, com a coreografia na televisão, no cartaz do quarto. Um coveiro sabe tanto quanto uma cozinheira, eles sabem quando o corte foi na maçã ou no pulso, e sabem chorar com a notícia e com a cebola.

Andréa del Fuego, escritora, é autora da trilogia de contos “Minto Enquanto Posso”, “Nego Tudo” e “Engano Seu” e do romance juvenil Sociedade da Caveira de Cristal. Blog: www.delfuego.zip.net

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