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Os bancos e o noticiário. A linguagem da sedução

Como os bancos conquistaram o jornalismo brasileiro e conseguiram implantar privatizações e forjar a sólida aliança conservadora mídia-capital financeiro

Arte: Vicente Mendonça/RBA
Arte: Vicente Mendonça/RBA

Um levantamento inédito de 14 anos de reportagens de economia (entre 1989 e 2002) revelou que os grandes bancos brasileiros puseram em ação nesse período uma estratégia sofisticada para dominar o noticiário e emplacar reformas econômicas de seu interesse. Alijaram por completo da mídia as ideias desenvolvimentistas da burguesia industrial e mais ainda as propostas oriundas dos movimentos sociais e sindicais. Para uma tese de doutorado que oriento, na Escola de Comunicações e Artes da USP, a pesquisadora colheu reportagens por amostragem – os primeiros dias de cada mês, quando são divulgados os principais indicadores econômicos – publicadas na Folha de S.Paulo e em O Estado de S. Paulo.

Em consequência das estratégias dos bancos, as fontes do mercado financeiro acabaram por predominar no noticiário econômico sobre todas as demais fontes das reportagens. Essas estratégias incluíram a criação de departamentos de pesquisas e o treinamento de economistas obsequiosos, sempre dispostos a atender jornalistas. Quase todos os bancos ofereceram aos seus economistas treinamento para falar com a imprensa.

Em mais de 80% dos departamentos de pesquisa dos bancos, o material produzido para clientes era também enviado gratuitamente a jornalistas. Mesmo que eles não pedissem. As editorias de economia eram abastecidas com material de aparência séria, legitimado pelo saber econômico, cheio de números e estatísticas, mas sua finalidade principal era disseminar interesses do capital financeiro.


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Bastava um jornalista pedir uma informação e já era incluído no mailing do banco para receber seus comunicados e relatórios regularmente. Assim surgiu, não por acaso, fruto de toda uma cuidadosa estratégia, o que os sociólogos chamam de “discurso (ou pensamento) único” na mídia brasileira: a defesa quase unânime das mesmas posições sobre políticas macroeconômicas e políticas públicas.

Ao contrário dos partidos políticos de centro-esquerda, dos movimentos sociais e das centrais sindicais, a banca internacional não vacilou no assunto. Sabe que comunicação tem lugar estratégico na disputa por poder e pela definição de políticas públicas. Mesmo assim, é surpreendente o sucesso do setor financeiro nessa ocupação de espaços na mídia. Um caso sem precedentes em regimes democráticos.

Como se explica isso?

Primeiro, teve a percepção do papel estratégico da comunicação numa fase de mudanças estruturais da economia e disputa pelas novas regras do jogo. Segundo, o sistema financeiro, como revelou a pesquisa, difere dos demais setores da burguesia pela sua competência organizacional na esfera da comunicação. Terceiro, sabia com clareza o que queria mudar; tinha agenda predefinida, a do Consenso de Washington. Quarto, custo não era problema, dispunha do dinheiro que precisasse para aplicar na comunicação. E, finalmente, contou com a boa vontade e afinidade ideológica de donos de jornais e editores em cargos de confiança.

Na amostragem da pesquisa, os temas queridos do capital financeiro – como bolsas de valores e investimentos – predominaram nas manchetes do noticiário com larga vantagem. Mas o mais importante é o menos aparente: o domínio de fontes do capital financeiro nas notícias sobre temas gerais de política econômica. A partir de 1992, os agentes do capital financeiro passam a veicular sistematicamente as propostas do Consenso de Washington, de redução do papel do Estado na economia, flexibilização das leis trabalhistas e principalmente a privatização das estatais de energia, comunicação, fertilizantes e dos bancos públicos.

Tudo em nome do interesse nacional, claro. As propostas eram noticiadas quase sempre a partir de uma única fonte e como se só elas pudessem levar o país ao patamar de desenvolvimento do Primeiro Mundo. Tudo muito sedutor e indiscutível. Sempre evitando a controvérsia, ao contrário do que manda o bom jornalismo, que recomenda o debate e o contraditório. O leitor comum nem percebe que só está vendo um lado. É como uma censura dupla, na qual o contraditório não aparece e nem se percebe que ele não aparece.


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Um dos mais surpreendentes achados da pesquisa foi que o Estado brasileiro tornou-se naquele período o principal indutor e difusor das propostas neoliberais. O governo predominou como fonte de reportagens em todo o período abordado. Vinha também do governo o maior número de fontes em “off”, não identificadas. Não só os principais dirigentes do Banco Central no período vinham diretamente do mercado financeiro como o processo gerador de políticas públicas e do discurso de governo era por eles inspirado e dirigido. “O governo assumiu os interesses e a agenda do mercado financeiro, tornando-se praticamente o porta-voz dos bancos”, diz a pesquisadora.

Durante a implantação do Plano Real, um momento especialmente delicado do governo FHC, nenhuma reportagem identificava suas fontes de informação. Nem mesmo vagamente, como “assessores próximos ao ministro” ou expressão semelhante. O esquema de implantação consistia em escalar funcionários para vazar pedaços do que estava sendo tramado, sem se identificar, para testar a reação da sociedade, sem ter de revelar o todo, deixando espaço para desmentir ou recuar se a reação fosse negativa. O noticiário econômico atuou como braço auxiliar da implantação do real, e não como observador crítico e independente, a serviço do interesse público e da boa informação.


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A pesquisa confirma a articulação dos mentores do Plano Real com um grupo de jornalistas influentes, com os quais se reuniam regularmente, já relatada no livro A Real História do Real, de Maria Clara R.M. do Prado, jornalista que participava das reuniões. O episódio demonstra com eloquência o papel estratégico da comunicação na disputa pela definição e implantação de políticas públicas e macroeconômicas.

Na amostragem de notícias de economia desses 14 anos, nunca os temas econômicos de interesse social mereceram manchete: saneamento básico, habitação, transporte público e saúde não foram considerados dignos de manchete pelos editores de jornais, provavelmente porque também não foram prioridades dos governos daquele período, mais preocupados em implantar a agenda de reformas do capital financeiro. Sindicalistas aparecem poucas vezes como fontes, e quase somente em reportagens sobre negociação salarial e greves. Em matérias sobre políticas macroeconômicas e outras de interesse geral da sociedade nunca são consultados.

Todo esse sistema financeiro entrou em crise nas suas bases principais de operação: Wall Street e a City de Londres. Mas no Brasil criaram-se vínculos tão fortes entre a imprensa e o grande capital que apesar do evidente e dramático fracasso do modelo neoliberal manteve-se imbatível a hegemonia ideológica dos bancos na mídia. Daí a oposição desta às atuais políticas redistributivas, de reforço da autonomia nacional e de integração latino-americana.


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