trabalho

A casta inferior

Não se trata, ainda, da admissão pela sociedade e pelo Estado de uma classe subjugada, como na Índia. Mas é o que pode acontecer se o Brasil não proteger seus trabalhadores dos porões da terceirização

Gerardo Lazzari

João dos Reis foi demitido do Unibanco e contratado por terceirizadas para fazer o mesmo serviço

Todas as manhãs ele sai de casa, no ABC paulista, e toma o ônibus fretado pela Ford para, às 6h48, estar a postos na fábrica de São Bernardo do Campo. Ao seu lado, no ônibus, estão dezenas de metalúrgicos como ele. A diferença é que é funcionário da DHL, empresa que tem 500 empregados “prestando serviços” de logística para aquela unidade da Ford.

Prática que ganhou impulso a partir dos anos 1990, a terceirização está disseminada em todos os setores da economia e sem legislação que a regule. Sondagem feita este ano pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI) revela que 54% das fábricas brasileiras utilizam esse expediente, que absorve 14% da mão-de-obra do setor.O objetivo é a redução dos custos e, por consequência, o aumento dos lucros. José dos Santos – nome fictício do assalariado da DHL que há mais de dois anos trabalha diariamente na Ford – sabe como.

Quando a montadora executava diretamente os serviços agora terceirizados, a média salarial dos funcionários do setor era de R$ 3.000. José ganha R$ 1.200. “Sinto-me um trabalhador de segunda linha”, diz ele, que faz hoje serviços antes efetuados por três funcionários da Ford.

A situação é semelhante à de milhares de trabalhadores terceirizados, que convivem com baixos salários, alta rotatividade, perigo maior de acidentes por falta de treinamento e segurança, maior pressão por volume de trabalho, além da falta de idoneidade de firmas que burlam direitos trabalhistas, sob vista grossa das empresas contratantes.

Como não existe lei que regule a terceirização, isso acontece em escala crescente. Segundo a economista Marilane Teixeira, assessora da Confederação Nacional dos Químicos da Central Única dos Trabalhadores (CNQ-CUT), a única regra existente é a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que autoriza a prática de prestação de serviços nas chamadas atividades-meio – como limpeza, alimentação e segurança – e proíbe a terceirização nas chamadas atividades-fim, ou seja, aquilo que é inerente à produção da empresa, seja ela indústria ou de serviço.

Mas a secretária de Organização da CUT, Denise Motta Dau, lembra que a definição do que é atividade-fim de uma empresa fica a cargo de cada juiz, no momento de dar sentença a uma ação judicial. “A Súmula 331 serve apenas como base no fim da linha, quando um trabalhador demitido move um processo. Não é uma lei, o que a torna frágil em diversos aspectos, como igualdade de direitos e de condições de saúde e segurança no trabalho entre trabalhadores diretos e terceirizados”, avalia Denise, que coordena na central um grupo de trabalho sobre o tema.

Segundo Marilane, em todo o ramo químico – que engloba as indústrias químicas, farmacêuticas, papel e celulose, de petróleo, petroquímica, cosméticos e vidros –, de quase 1 milhão de trabalhadores estima-se que um terço seja de terceirizados. “E a prática é maior nas grandes empresas. Há, por exemplo, mais de 40 terceirizadas que atuam dentro da fábrica da Basf”, conta a assessora da CNQ-CUT.

A inexistência de lei faz da terceirização porta de entrada para a precarização no trabalho. “Além da diferenciação de salários, jornada e benefícios, trabalhadores terceirizados têm sido as principais vítimas de acidentes em alguns setores produtivos”, afirma Denise.

Parafuso solto

Dados da Federação Única dos Petroleiros (FUP) mostram que quase 90% dos acidentes de trabalho na Petrobras aconteceram com trabalhadores terceirizados, que figuram ainda em 135 dos 166 casos de morte em serviço ocorridos do ano 2000 até agora. “Há setores da Petrobras de alta periculosidade, verdadeiras bombas-relógio, onde atuam majoritariamente trabalhadores de empresas terceirizadas, com baixa qualificação e sem condições adequadas de segurança”, afirma Ubiraney Ribeiro Porto, diretor da FUP e do Sindicato dos Petroleiros da Bahia.

Segundo ele, até os anos 1980, a contratação de terceirizadas no ramo petrolífero era pequena e somente para serviços especializados e áreas restritas. “Ela é parte das mudanças desenfreadas trazidas pelo neoliberalismo nos processos de gestão”, destaca Porto. Hoje, a Petrobras tem 60 mil trabalhadores próprios e 160 mil terceirizados, a maioria em funções que, para a FUP, são atividades-fim, como operação de sonda, manutenção e mecânica.

Manoel Ramos da Silva é isolador térmico e, desde 1981, trabalha na Refinaria de Duque de Caxias (RJ). Atualmente é funcionário da NTE e recorda que, até o início dos anos 1990, o número de trabalhadores indiretos era bem menor. “Aí, a terceirização veio com tudo na Petrobras”, conta. “E junto com ela os trabalhadores de ‘segunda’, que têm salários e benefícios inferiores aos dos petroleiros.” Sem falar no “pinga-pinga” entre prestadoras. “Quando termina seu contrato com uma empresa e a Petrobras contrata outra, os trabalhadores só mudam de camisa. Saem de uma e vão para a ‘nova’, nas mesmas condições precárias”, diz Manoel.

Segundo o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Energéticos do Estado de São Paulo (Sinergia), Jesus Francisco Garcia, com a privatização das empresas do setor elétrico na década de 1990, houve uma inversão de valores: “A energia deixou de ser tratada como serviço essencial e as concessionárias assumiram o setor com foco no lucro”.

O número de empregos diretos caiu para menos da metade. “Na CPFL, concessionária que atua no interior de São Paulo, eram 7.800 trabalhadores. Em 1997 houve a privatização e hoje há 3.160 funcionários”, informa Jesus. O que aumentou foi o número de acidentes. “O trabalho e a qualidade de serviços ficam totalmente comprometidos, isso sem falar no risco do trabalhador de perder a vida.”

Rodrigo queirozManoel Ramos
Manoel Ramos: “Com a terceirização vieram os trabalhadores de segunda”

Queda de qualidade

O eletricista de linha-viva (redes de alta tensão) Carlos Roberto da Silva, com 30 anos de profissão, é testemunha dessa deterioração. Ele trabalhou na construção de linhas de transmissão e redes de distribuição em 19 estados, sempre terceirizado, e diz que, com a privatização, o cotidiano dos trabalhadores piorou e o treinamento deixa a desejar. “Nós somos os esquecidos”, constata. Enquanto o salário médio da Companhia de Energia de Minas Gerais (Cemig), que não foi privatizada, é de R$ 2.500, nas empresas terceirizadas não passa de R$ 1.300. O eletricista, hoje numa empresa que atende concessionárias paulistas, diz que na manutenção da linha-viva, onde antes trabalhavam seis por equipe, hoje são três. “As condições são desumanas, por isso os acidentes aumentam”, complementa Carlos Roberto.

O presidente do Sinergia ressalta ainda que boa parte das empresas prestadoras de serviços desrespeita a legislação trabalhista e sonega impostos. “Vivem mudando de CNPJ, de nome e de localização para burlar as leis e não cumprir compromissos trabalhistas”, afirma. “O trabalhador é o parafuso solto nessa engrenagem.”

A terceirização piora a qualidade de produtos e serviços. A própria sondagem da CNI mostra que 58% das indústrias que terceirizam estão descontentes. Na ponta final do processo estão os consumidores, cujas reclamações também crescem. E os bancos aparecem sempre nos primeiros lugares da lista. Também nesse ramo a terceirização ganhou força na década passada, junto com os processos de privatização e as fusões. Áreas essenciais – de atendimento a clientes a compensação de cheques – foram terceirizadas, o que compromete não apenas a qualidade como o sigilo bancário dos clientes.

Segundo Ana Tércia Sanches, secretária de Estudos Socioeconômicos do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, a terceirização aconteceu nas áreas meio e fim, como compensação de cheques e títulos, primordiais para o sistema financeiro. “E, com a automação, serviços de retaguarda de caixas eletrônicos já nasceram terceirizados”, observa. “Em quase todas as prestadoras de serviço há prepostos dos bancos para acompanhar o trabalho, o que demonstra que se trata de serviço bancário, portanto atividade-fim.”

O setor financeiro tem 465 mil empregados diretos em todo o país e outros 360 mil executando trabalho bancário via prestadoras de serviço. “São os porões do sistema. Contratam em larga escala pessoal temporário para serviços de retaguarda dos bancos, pagando diárias de R$ 13, sem nenhuma proteção de um vínculo efetivo”, relata. A diretora diz que, além de salários de R$ 500 (o piso da categoria para a função de escriturário é de R$ 1.013,64 por seis horas), os terceirizados convivem com ambientes insalubres e ritmo intenso de trabalho. “É comum fazerem até 12 horas num dia”, aponta Ana Tércia.

Esse ritmo é sentido há mais de 15 anos pelo ex-bancário João dos Reis (pseudônimo). Até 1991, era funcionário do Unibanco e trabalhava na compensação de cheques. Demitido, entrou numa empresa contratada para esse fim. Prestando o mesmo serviço para o Unibanco, já passou por três firmas diferentes. “Eu tinha a jornada e todos os direitos garantidos pela convenção coletiva dos bancários. Hoje estou me sujeitando a salário menor, com jornada e pressões muito maiores”, conta. “Temos um banco de horas, mas não conseguimos tirar folgas nem receber as horas adicionais. A sobrecarga torna os erros operacionais comuns.”

Pelas beiradas

As entidades sindicais têm buscado alternativas para reverter os estragos. Uma delas é tentar organizar os terceirizados mesmo não os representando oficialmente. Com apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, o trabalhador José dos Santos e seus colegas da DHL estão viabilizando sua própria comissão de fábrica. O estatuto está em negociação.

No sistema financeiro, os sindicatos atuam junto às prestadoras de serviços para organizar os trabalhadores e negociar melhorias. “Temos feito pressão também sobre os bancos para que a terceirização de atividades-fim seja revertida. No Banco do Brasil, conseguimos que a instituição assumisse a responsabilidade solidária em relação aos trabalhadores terceirizados”, afirma Ana Tércia.

O Sinergia tem acionado o Ministério Público do Trabalho. “Este ano conseguimos vitórias contra a Elektro (que atende o litoral e parte do interior de SP) e a CPFL, com a determinação da Justiça da retomada pelas concessionárias de serviços considerados atividades-fim”, conta Jesus.

A FUP negocia com a Petrobras para que exija das empresas que contrata melhorias para seus funcionários. “Temos uma pauta mínima de 15 itens que queremos que a Petrobras insira em seus contratos com as prestadoras de serviços”, informa Ubiraney Porto. No ramo químico, além de negociar diretamente com as empresas e conseguir a reversão da terceirização em algumas delas, os sindicatos atuam para representar os terceirizados. “Na Orsa, empresa de papel e celulose de Jari (PA), o sindicato trouxe para a sua base os operários do plantio e corte de madeira, muitos sob regime análogo à escravidão. Foi feito um plebiscito e os trabalhadores definiram essa representação”, lembra Iduigues Ferreira Martins, secretário de comunicação da CNQ e presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Papel e Celulose.

A Súmula 331 do TST tem sido a base no julgamento de ações trabalhistas de terceirizados, mas deixa a critério de cada juiz o entendimento sobre a atividade-fim e prevê que as empresas contratantes tenham apenas a responsabilidade subsidiária, ou seja: se um trabalhador move um processo contra a prestadora de serviço, a empresa contratante somente assumirá o ônus da reclamação trabalhista no final da linha caso o reclamante não consiga receber a indenização determinada em juízo.

O grupo de trabalho de terceirização da CUT defende que haja legislação específica. A central elaborou projeto de lei, apresentado em 2007 pelo deputado Vicente Paulo da Silva (PT-SP), cujos principais pontos são: a proibição da terceirização nas atividades-fim, a responsabilidade solidária das empresas contratantes pelas obrigações trabalhistas e a igualdade de direitos e de condições de trabalho.

O projeto está na Comissão de Indústria e Comércio da Câmara, à espera de um bom momento para ser apresentado. “Temos de ter todo o cuidado, para que não seja rejeitado já nessa Comissão”, comenta Denise Motta Dau, lembrando que está para ser votado em plenário um “perigoso” projeto de lei de autoria do governo Fernando Henrique: “Esse projeto permite a terceirização indiscriminada em todas as atividades e não prevê a responsabilidade solidária”.

As centrais sindicais querem audiência pública para debater o projeto de lei de Vicentinho e inserir seus princípios na pauta do Congresso. “É um processo de resistência”, resume Ana Tércia.