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Jornalismo na linha do córner

Fim da obrigatoriedade de diploma, fim da Lei de Imprensa, fim do monopólio de sobre a informação e a mediação política... Na origem de tudo está a revolução da internet

Antonio Cruz/Abr

Fenaj: defesa da exigência de diploma para exercício da profissão de jornalistas não convenceu o STF

Os abalos sucedem-se. Primeiro, foi a criação do blog Fatos e Dados, da Petrobras, expondo na íntegra perguntas de jornalistas e suas respectivas respostas, antes mesmo de serem publicadas (clique aqui para acessar).

É uma forma de evitar a manipulação desonesta ou maliciosa de respostas. Depois, veio a decisão do Supremo Tribunal Federal que derrubou por 8 votos a 1 a obrigatoriedade de diploma específico para exercício da profissão de jornalista.

Antes, o Supremo já havia revogado a Lei de Imprensa de 1967, que demarcava o jornalismo na esfera jurídica e livrava jornalistas dos crimes de injúria, calúnia e difamação, desde que dessem ao ofendido o direito de resposta.

Em meio a tudo isso despontam as novas armas populares de comunicação direta e interpessoal da internet de custo quase zero, dispensando jornalões e jornalistas: o torpedo, que levou milhares de madrilenhos às ruas em março de 2004, alterando do dia para a noite o resultado das eleições; os sites de relacionamento que ajudaram a eleger Obama; o Twitter, os “bilhetes” eletrônicos de até 140 caracteres que resultaram, em Teerã, na marcha contra a reeleição do presidente Ahmedinejad, dando início a uma nova etapa na revolução iraniana.

O blog da Petrobras é uma inovação em âmbito mundial que revoluciona as relações entre entidades privadas e de governo e jornalistas. Depois dele vai ficar difícil jornalistas e donos de jornais escolherem de um conjunto de respostas apenas as que gostaram, ou cortarem uma declaração pelo meio publicando apenas a metade que lhes agradou. Certamente, a inovação será adotada gradativamente por empresas e governos que se sintam injustiçados pelas manipulações da grande mídia.

Os donos dos jornalões não gostaram. Das entidades jornalísticas, só a Associação Brasileira de Imprensa julgou a iniciativa legítima. O Estadão sentiu o golpe e acusou a empresa, em editorial irado, de “tentar intimidar a imprensa” e de “tolher no nascedouro de forma antiética, desleal e aleivosa o bom jornalismo investigativo”. Disse ainda que dessa forma a Petrobras quebra o sigilo das relações com as fontes.

É o direito de espernear de um tipo de jornalismo que com o advento da internet está perdendo a primazia da informação em escala mundial. Cláudio Weber Abramo, diretor da ONG Transparência Brasil, definiu o blog como um avanço, lembrando que nunca existiu compromisso de confidencialidade entre fontes e jornalistas. O que existiu e continua existindo é o direito do jornalista de não revelar sua fonte de informação, caso esta assim o deseje. “Não existe o dever subjetivo da fonte de resguardar o jornalista”, diz.

A inovação introduzida no jornalismo pelo blog da estatal tem consequências profundas e em outros níveis. A mais importante delas é enfrentar a contradição que sempre existiu entre o caráter público do jornalismo e a apropriação privada da notícia, vendida pelas empresas de mídia para ganhar dinheiro. Por isso, os donos dos jornais argumentam que ao revelar o que lhe foi perguntado com as respectivas respostas a Petrobras antecipa aos concorrentes a pauta que esse jornal está perseguindo, ferindo seus direitos “empresariais”. É como se o jornal tivesse um direito de patente sobre o que perguntou. Para rebater essa crítica, a Petrobras corrigiu seu procedimento, passando a publicar as perguntas e respostas no mesmo dia que o veículo que as formulou.

A empresa argumentou que sua relação com veículos de comunicação que a interpelam é essencialmente pública. De fato, a Petrobras elevou à categoria de bem social uma prática que a indústria da informação havia rebaixado à condição de mercadoria. Alterou, com isso, toda a natureza das entrevistas dirigidas por escrito, uma mudança que certamente não vai ficar apenas nessa modalidade de jornalismo. Seu site já prevê espaços também para debates e notícias.

Esse blog é a primeira iniciativa eficaz e democrática surgida nas últimas décadas capaz de estancar e talvez até de reverter o processo de queda de qualidade da narrativa jornalística. Pode ser também o começo do fim da ética da malandragem que impera em muitas redações. Dos questionários usados apenas para que o editor manipule as respostas, “encaixando-as” em seu texto de acordo com a conveniência. Da denúncia que não ouve o acusado. Do truque de mandar perguntas meia hora antes do fechamento para poder alegar que “tentou ouvir a empresa, mas não obteve resposta”. Da pseudo-reportagem feita sem que jornalista precise bater sola.

A invenção recria num patamar superior todo o processo de produção jornalística que o advento da internet havia rebaixado num primeiro momento, ao permitir entrevistas cômodas demais pelo e-mail ou consultas fáceis demais a sites de busca e bancos de dados. Restaura-se “o papel intransferível do jornalismo”, como diz a jornalista e professora Cremilda Medina, “de apurar informações, muitas vezes ocultadas, colher interpretações e só então compor a reportagem digna de autoria”.

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Sem exigência

O fim da obrigatoriedade de diploma para jornalista, embora tenha provocado consternação entre estudantes e recém-formados e deixado a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) atônita, é a oportunidade para restaurar-se o verdadeiro papel dos sindicatos, que é lutar por condições mais dignas de trabalho de seus filiados, e não decidir quem pode e quem não pode ser filiado.

É o fim também da indústria de diplomas de jornalismo, responsável pela criação de mais de 400 cursos de Jornalismo e Comunicação valendo-se da promessa enganosa de uma reserva de mercado. De custo fácil e apelo emocional forte, esses cursos acabaram saturando o mercado, aviltando salários e condições de trabalho, criando uma população rotativa enorme de estudantes estagiários, que mesmo antes de se formar dispõem-se a trabalhar em troca de remunerações vis e sem direitos trabalhistas.

A derrubada da obrigatoriedade restaura o direito de expressão por todos por meio da narrativa jornalística, numa era em que esse direito já está sendo velozmente estendido, barateado e democratizado graças à internet. Embora tardiamente, o estatuto do jornalismo no Brasil está agora em sintonia com o de outros países de democracia formal. Inclusive aqueles, como os Estados Unidos, em que há também grande número de cursos de Jornalismo, mas não é exigido diploma para exercê-lo profissionalmente.

A Fenaj e sindicatos não viam na exigência do diploma um sistema contraproducente, que se voltou contra os próprios interesses dos jornalistas. A ABI também não gostou, classificando a decisão de “duro golpe à qualidade da informação jornalística”. Mas depois de 40 anos de obrigatoriedade do diploma a qualidade do nosso jornalismo só piorou.

Esse desvio corporativista está se alastrando perigosamente no país, alimentado pelo novo quadro de falta de empregos suficientes para as novas gerações. Os estudantes de Pedagogia da USP, por exemplo, incluíram na pauta de reivindicações da greve deste ano o pedido de abolição do projeto de cursos a distância para formação de professores. Não querem perder seus futuros empregos em sala de aula mesmo à custa de negar acesso a esse tipo de formação a populações mais pobres ou distantes dos grandes centros.

Já o blog da Petrobras é uma invenção tão importante para o futuro do jornalismo quanto a descoberta das gigantescas reservas de petróleo do pré-sal é importante para o futuro do Brasil. O que deveríamos nos perguntar é por que essa novidade do blog, que publica perguntas junto às respostas, foi inventada no Brasil, e não na Europa ou mesmo nos Estados Unidos, onde o debate sobre o uso da internet no jornalismo está mais avançado.

A resposta é simples: porque no Brasil a manipulação de entrevistas pela imprensa rompeu todos os limites da ética e da decência. Com a exceção daquelas publicadas na íntegra, em geral em página inteira nas edições de domingo ou cadernos especiais – mesmo assim sofrendo muitas vezes manipulação no título –, os jornalistas não se esforçam por captar a integridade ou a parte essencial do pensamento dos entrevistados. Cortam, para encaixar no espaço dado, sem esse cuidado básico. Isso quando não procuram o entrevistado apenas para extrair frases que legitimem, pela boca de uma autoridade, um discurso previamente definido em reunião de pauta. “De tanto distorcer, acabaram com a boca torta”, como diz no seu blog o professor de Jornalismo da UnB João José Forni. Receberam o troco da empresa-símbolo da nossa nacionalidade. 

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