entrevista

O influenza e as influências

Vicente Amato Neto considera que o Brasil reage bem às incertezas da gripe suína. Para ele, há muitos “especialistas” dando palpites, mas em geral as pessoas sabem quando duvidar

Jailton Garcia

Vicente Amato: “O nome dado ao vírus se fixa mais por motivos econômicos do que científicos”

Aos 81 anos, Vicente Amato Neto ainda encontra tempo e disposição para as aulas no Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e para as consultas em sua clínica particular. Um dos mais respeitados médicos infectologistas do país, tem vasto currículo, enriquecido com mais de 270 textos publicados em jornais e revistas, 91 artigos completos e oito livros sobre a disciplina que ministrou de 1945 a 1998, quando foi aposentado compulsoriamente. De lá para cá, dedica-se voluntariamente ao ensino e pesquisa na FMUSP. No último dia 15 de maio ele recebeu a reportagem da Revista do Brasil para falar sobre aspectos sanitários, econômicos e políticos da epidemia do momento.

Que vírus é esse que contagiou os noticiários?

Trata-se de um vírus novo, o A H1N1, um subtipo do influenza. É preciso enfatizar que a doença causada por ele não é a gripe, embora o termo já tenha se popularizado. A influenza é uma doença bem definida, começa subitamente, causando dor de cabeça, tosse, febre alta, dores pelo corpo e articulares e dura entre quatro e cinco dias na fase aguda. Passado esse período, restam um pouco de tosse, expectoração e um leve mal-estar, que logo desaparecem se não houver nenhuma complicação. Essa nova doença é diferente, assim como são distintos os tipos de influenza. Até porque, se não fosse assim, uma pessoa vacinada contra um tipo do vírus ficaria imunizada contra todos os tipos. Mas não adianta. Tudo virou gripe. É gripe aviária, gripe asiática, gripe de Hong Kong, e assim por diante.

Estudos divulgados recentemente sugerem que o vírus da gripe suína se espalha com maior facilidade que o da comum. Por que isso acontece?

Toda epidemia traz características distintas quanto à idade das pessoas afetadas, quanto a mortalidade e demais características. Porém, ainda acho muito cedo para tirar qualquer conclusão. Estamos falando de um vírus novo, pouco conhecido. O número de casos confirmados ainda é estatisticamente pequeno para que possamos saber se o agente causador se propaga mais ou menos rapidamente, se é benigno, se atinge mais os jovens ou os mais velhos e se causa mais ou menos mortes. A única resposta que podemos dar com segurança é que tudo, por enquanto, não passa de especulação.

O termo A H1N1 foi tomando o lugar de gripe suína.

O nome dado pelos cientistas ao vírus vai se fixando mais por motivos econômicos e políticos do que científicos. Há quem não admita chamar a doença de gripe suína para não ferir diretamente interesses de grandes suinocultores e da indústria de carne processada. Há pressões para não ser chamada de gripe mexicana nem norte-americana por motivos políticos, ideológicos e econômicos, embora os primeiros casos tenham aparecido nessas regiões. Todos sabem que, em 1918, a Espanha acabou seriamente prejudicada por ter seu nome associado a uma doença que surgiu nos Estados Unidos e matou 40 milhões de pessoas em todo o mundo. A gripe espanhola ficou assim conhecida porque o primeiro caso registrado foi naquele país.

Faz sentido a preocupação das pessoas com a ingestão de carne suína e derivados?

Não há nenhum risco de transmissão porque o vírus está sendo transmitido de humanos para humanos. Além disso, ele não resiste à alta temperatura do cozimento.

Qual a gravidade da doença?

Por um momento, a Organização Mundial da Saúde considerou que, de cada cem casos, sete levariam à morte. Agora já se admite que é 1,4%. Se isso se confirmar, ela será como a influenza sazonal, cujas complicações, como a pneumonia bacteriana, matam mais os idosos em todo o mundo.

Tem se falado que entre os sintomas estão diarreia e vômito, que não aparecem na gripe comum.

Insisto que temos de aguardar um bom número de casos para ver se isso se confirma e se é realmente digno de atenção. Tomara que não tenhamos tantos casos, é claro. Na nossa gripe sazonal, diarreia e vômito não são manifestações importantes. Mas tem gente achando cabível dizer que esses sintomas estão entre os comuns nesta nova doença. Eu prefiro esperar para formar minha opinião. Pelo que tenho lido, ela se parece muito mais com a nossa gripe sazonal.

Como o senhor vê as ações do Ministério da Saúde?

Em geral, o governo está tomando as medidas necessárias. Eu, como especialista em doenças infecciosas e parasitárias, vivi muitos momentos como esse. Acompanhei as chamadas gripes de Hong Kong, asiática e aviária, entre outras. Da espanhola só tomei conhecimento por documentos científicos e históricos. E, de tudo que me lembro, até então nunca tinha havido no país uma preocupação tão grande como a que está acontecendo agora, com medidas tão intensas, oportunas e adequadas, bem como a busca pela assistência mais apropriada aos doentes. Só que, infelizmente, essas medidas não impedirão totalmente a entrada do vírus no país – o que não está associado ao fracasso das medidas, e sim à natureza da transmissão da doença. Penso que essas ações reduzirão a expressão do problema em termos de complicações e mortalidade.

O uso de máscaras pode conter o contágio?

A falta de esclarecimentos sobre o uso dessas máscaras é uma ressalva que faço quanto ao trabalho do Ministério da Saúde. Tenho procurado salientar que o governo deve informar melhor a população, o quanto antes, sobre a utilidade e indicação. Essas máscaras cirúrgicas que estamos vendo por aí não são boas. Além disso, muitas pessoas não estão usando de maneira adequada. Algumas usam só na boca, quando o correto e proteger também o nariz; outras tiram para falar. É claro que existem máscaras de boa qualidade, que evidentemente são mais caras. Em minha opinião, apenas os profissionais de saúde que estão em contato direto com os doentes é que devem usá-las. Já estou pensando até em comprar as minhas. É preciso definir isso com clareza. Até porque, com tanta gente mascarada por aí, aumenta a sensação de pânico e todos passam a viver pensando nessa doença constantemente. Eu aguardo instruções do governo para deixar isso muito claro.

E quanto ao tratamento?

Muito se tem falado sobre dois medicamentos que seriam eficazes contra a doença, o oseltamivir (Tamiflu) e o zanamivir (Relenza). O primeiro foi recolhido das farmácias pelo fabricante para distribuição exclusiva ao Ministério da Saúde e o segundo ainda não é vendido no país. No entanto, não se fala sobre quem deve usar e quando. Pelo que conheço da literatura científica, tais medicamentos fazem efeito somente quando o tratamento começa bem precocemente, assim que a doença se instala. Preocupa ver que tanta gente está usando remédio muito tempo depois disso. O governo deve ser firme nesse aspecto, instruindo sobre a eficácia do medicamento e quem é que deve ser tratado com esses dois remédios.

Teremos no país o genérico do Tamiflu?

Existe no Brasil muito remédio estocado, que só falta preparar para uso. Agora, como a produção é de empresas multinacionais, não sei se haverá tempo de introduzir genérico. Seria bom. Mas aí volta a questão das patentes. A mesma coisa que os remédios para Aids. Será que é possível desrespeitar patentes? Será que haverá altruísmo em torno de todas essas coisas?

Como age esse medicamento? É um antigripal?

Não. O que a gente chama de antigripal é um remédio que atua nos sintomas: dor no corpo, febre, mal-estar, tosse. O Tamiflu e o Relenza agem no próprio vírus. Mas, insisto, devem ser usados bem no começo. Além disso, não têm efeito preventivo. O problema da valorização desses medicamentos pelas autoridades é que já tem gente comprando nos Estados Unidos e trazendo para cá. Daqui a pouco vai ter gente contrabandeando, falsificando e até vendendo em bancas de camelôs.

O sistema de saúde está preparado para diagnosticar os casos?

A obtenção de um teste baseado em biologia molecular para detectar a doença com segurança foi um grande progresso. Afinal, se não fosse ele, como identificar o problema entre tantos com sintomas tão parecidos? Com a chegada dessa prova, que vem da Organização Mundial da Saúde e do Centro de Controle de Doenças do governo americano, em dois ou três dias é possível diagnosticar com certeza. O que eu lamento, e não sei se estou errado, é que vieram os elementos necessários para a execução de 250 testes – o que é muito pouco.

O teste já existia ou foi desenvolvido em tempo recorde?

Não para o A H1N1, mas sim para outros vírus. Existem espalhados pelo mundo os chamados centros de referência para influenza. Aqui em São Paulo, por exemplo, é o Instituto Adolfo Lutz. São esses institutos que acompanham a mutação dos vírus, de modo que as vacinas também possam ser modificadas. Li recentemente que esse A H1N1 já tinha sido detectado em alguns lugares, fora do Brasil, há pouco tempo. Só que a informação não teve o devido valor. Cheguei a ouvir especialistas criticando a falha da vigilância sanitária de vários países que poderiam prever o problema e não deram a devida importância ao que estava acontecendo.

E o atendimento em hospitais?

O que me preocupa em relação à assistência aos doentes é a falta de um sistema de isolamento adequado no país. Há hospitais que nunca pensam em construí-lo. Outros improvisam e, quando chega um doente, colocam num quarto fechado, proibindo as visitas. Existem pouquíssimos hospitais com quartos de pressão negativa, ideais, que impedem a saída de micro-organismos.

É difícil controlar?

Quando a doença é influenciada por muitos fatores e é difícil de controlar, nada melhor que uma vacina. Veja com a dengue, como é complicado. Você precisa pedir a colaboração da população. Se tiver uma vacina contra a dengue, todos vão respirar aliviados. No caso desse novo tipo de influenza é a mesma coisa. Não é fácil manter a casa isolada, evitar aglomerações.

Quem está mais propenso à doença?

Pessoas com doenças pulmonares crônicas, idosos e diabéticos são mais suscetíveis ao vírus e às complicações da influenza. É por isso que são as mais focalizadas para ser vacinadas nas campanhas. A boa condição física e uma boa alimentação são chave para evitá-la e vencê-la.

Desequilíbrios ambientais contribuem para a gripe suína?

Sim, porque as variações climáticas favorecem as doenças respiratórias agudas.

Estamos perto da vacina? O Brasil em especial?

As autoridades consideram que o Brasil é um país que tem todas as condições para isso. Eu fico preocupado porque o Instituto Butantan tem um projeto de produzir a vacina contra a influenza sazonal há cinco anos e ainda não a produz. Quando veio a gripe aviária, também houve promessas de produção e nada aconteceu. E tem ainda muitas outras coisas que alimentam minhas desconfianças: quem vai produzir? De quem será a vacina? Quem vai fornecer o vírus para a sua produção? A vacina será vendida ou distribuída gratuitamente? E as patentes? Eu fico muito triste. Com um mal como esse, e ainda há pessoas defendendo interesses individuais. Para mim, uma das coisas que mais dizem respeito à ética é quando o comportamento de certas pessoas não é sensível para o bem-estar da comunidade e, no caso de uma pandemia, de toda a humanidade.

Em meio a tantas dúvidas, em que se deve acreditar? Quem são boas fontes?

Temos de ser espectadores. Ouvir as informações, respeitar as recomendações sensatas. Porque não há nada, nada que impeça, nem mesmo a máscara, que fiquemos doentes. Temos de aguardar as informações de órgãos gestores da saúde, sobretudo o Ministério da Saúde. Porque numa situação como essa existem pessoas que querem aparecer, elas existem em todas as áreas, inclusive as médicas. Precisamos tomar cuidado com oportunistas, tomar cuidado com os que mantêm vínculo com órgãos informativos por causa da intermediação do marketing. Eu diria que aguardemos as informações oficiais. É o que temos a fazer. Não nos resta outra coisa senão obedecer.

Como o senhor analisa a cobertura da mídia?

Acho que muitos jornais, como O Estado de S. Paulo e a Folha de S.Paulo, têm feito um trabalho bom. A internet como um todo também. Estão explicando o que é a doença, o que está acontecendo. Não vejo estímulo ao pânico e nenhum dando palpites extravagantes, estrondosos. Quanto à TV tenho ressalvas. Muitos programas têm convidado pessoas muito diferentes para opinar e algumas vão dar palpites, impressões, dizer o que sentem. Só que falta respaldo científico e epidemiológico. O que aparece de infectologistas nos órgãos de divulgação achando que têm condições de opinar! Mas as pessoas acabam percebendo quando a informação não é boa.

Como avalia o sistema público de saúde no Brasil?

Temos no Brasil um sistema público de saúde muito bem planejado, baseado em princípios corretos, e eu digo até maravilhosos: o SUS. O problema é que não se consegue implantá-lo por completo. Primeiro porque isso não depende só de dinheiro, embora dinheiro seja muito bem-vindo. É preciso insistir numa gestão competente, comprometida e preocupada, que queira realmente levá-lo adiante. Temos ainda, por outro lado, interesses de várias naturezas. São sistemas de assistência dos mais variados, agregando mais de 60 milhões de pessoas, que na maioria dos casos não funcionam, oferecem bons serviços para quem pode pagar mais e serviços ruins para quem não pode e, em geral, remuneram muito mal os médicos. A situação é tão ruim que muitos profissionais, para poder continuar atendendo, usam artifícios, como a cobrança de procedimentos complementares nem sempre realizados.

Eu, por exemplo, como médico especializado no tratamento de doenças às quais não cabem procedimentos, continuo prejudicado. Não tenho procedimentos para cobrar. O correto, eu insisto, é que o país tenha apenas um sistema de saúde, tal como nos países desenvolvidos. Ora, se existe um sistema de saúde, deve ser totalmente respeitado pelos governos e pela população. Ah, é muito difícil. Toda essa situação é mantida à custa de muitos interesses. Tem deputados que são envolvidos com os planos de saúde. Falta força. Acho que nós ainda não conseguimos avançar como gostaríamos em muitos setores. Na saúde é a mesma coisa.

Com tantas ameaças à saúde, estamos mesmo vivendo mais?

Existem tecnologias espetaculares, as condições de vida são melhores, existe uma assistência razoável para muitas pessoas, existem as vacinas, então é verdade. Os cuidados assistenciais melhoraram e as pessoas realmente vivem mais. Estou com 81. Só preciso tomar cuidado com os médicos. Quando você vai ao médico é uma consulta. Se precisar reunir dois ou três pra conversar sobre sua doença, então, já é uma conferência médica. A terceira etapa é a autópsia (risos).