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Museu de peso

A obra do colombiano Fernando Botero é um antiespelho. Mostra-nos como não queremos ser, numa sociedade que valoriza magrelas em passarelas e disfarça seu ego inflado e sua opulência

João Correia Filho

A obra do colombiano Fernando Botero é um antiespelho

É fácil perceber que, a cada quadro, a cada nova imagem, os visitantes deixam escapar um sorriso. É um risinho meio sem graça, desconfiado, de quem entende uma anedota, um chiste. É dessa forma que a arte do colombiano Fernando Botero, um dos mais importantes artistas plásticos da atualidade, chega até nós, cheio (bem cheio) de ironia e graça. O artista é conhecido por dar formas arredondadas a tudo o que vê, por pintar personagens históricos rechonchudos, gatos, casas, móveis, pássaros, telhados e bailarinas com traços exageradamente abaloados. Nem mesmo quadros famosos escaparam a suas jocosas transformações. É o caso de sua Monalisa, pintada em 1977, versão inflada de uma das maiores figuras pictóricas da humanidade, concebida por Leonardo da Vinci no início do século 16. Não há quem resista, com aquela seriedade de quem vê arte, diante do sorriso enigmático da gordinha.

Divertidíssima, a visita ao Museu Botero, no centro histórico de Bogotá, permite ver mais de uma centena dessas obras, todas doadas pelo próprio Botero ao Banco de la Republica, o BB de lá, que mantém um importante complexo cultural e artístico na capital colombiana. O prédio onde estão as obras data de 1724 e foi totalmente restaurado em 2000 para receber as 184 obras, incluindo, além das 123 assinadas pelo artista, um riquíssimo acervo de quadros e esculturas de mestres do século 20. “Algumas pessoas me perguntam qual o sentido dessa doação, o sentido de essas obras ficarem na Colômbia num momento em que o país está vivendo dias de tormenta. E a resposta é que, precisamente porque nossa pátria está acossada pela violência, essa coleção tem de ficar aqui”, disse o artista.

Foi a maneira que encontrou de, aos 77 anos, fazer algo pelo seu país, envolto no terror do tráfico, nas milícias, nas guerras. O artista, que vive na Itália, deu a Bogotá uma ilha de tranquilidade, um lugar não só para apreciar a arte, mas para refletir sobre a possibilidade das coisas. “Essa doação pode ser interpretada como uma demonstração pessoal de minha fé em nosso país.”

Andando pelos corredores e salas do museu é fácil rirmos de nós mesmos, do que nos tornamos. Botero ironiza de famílias aristocráticas a presidentes da República. Temas mais clássicos, como naturezas-mortas, ganham vida e graça na visão do pintor – é caso de Naranjas (Laranjas) e Naturaleza Muerta con Espejo (Natureza-Morta com Espelho).

Muitas vezes é como se olhássemos diante de um espelho. Um espelho que nos mostra tal como não queremos ser, numa sociedade que valoriza magrelas em passarelas, mas não vê seu ego inflado, sua opulência. Há bonachões, burocratas, famílias cristãs, pessoas em situações vexatórias, desnudas diante de um pintor, com o olhar melancólico de quem está despido diante do mundo.

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Duas coleções em uma

Fernando Botero nasceu numa época em que a preferência eram as mulheres com silhueta um pouco mais cheia de curvas, em 19 de abril de 1932. Natural de Medellín, norte do país, desenvolveu seu estilo depois de viajar muito, conhecer grandes mestres da pintura, estilos, escolas. Em Madri, estuda o surrealismo de Salvador Dalí, alternando as aulas em escolas de arte com visitas ao Museu do Prado, um dos mais importantes da Europa. Ao viver em Paris, afina-se com a arte clássica e discute os vanguardistas. Vai à Itália para aprender técnicas de afresco e familiarizar-se com o Renascimento. No México estuda o Muralismo e se interessa por arte pré-colombiana. É também nesse país que ele pinta, entre os anos de 1956 e 1957, o quadro Naturaleza Muerta con Mandolina (Natureza-Morta com Mandolina), primeira obra reconhecidamente boteriana, com seus volumes e cores fortes.

A partir dessa descoberta, passa a pintar de tudo: imagens narrativas, cenas do cotidiano, cenas históricas e até longas séries de obras sobre religião, pouco usual para os modernos de sua época. O quadro Niña Comiendo un Helado (Menina Chupando Sorvete) é um exemplo dessa diversidade, de seu extraordinário domínio técnico, da coerência de sua visão e da predileção pelo imprevisto – a língua da menina dá um perturbador toque de sensualidade. Longe de ser uma simples apologia à obesidade, a obra do colombiano é ao mesmo tempo uma releitura instigante dos ideais de beleza do Renascimento e um contraponto aos ideais estéticos de hoje. Talvez sua crítica nunca tenha sido tão atual.

Durante suas andanças, Botero adquiriu uma coleção incrível de obras de outros artistas, parte das doadas em 2000, hoje hospedadas no museu colombiano, entre pinturas e esculturas de mestres como Picasso, Renoir, Francis Bacon, Degas, Salvador Dalí, Miró, Gustav Klimt, Marc Chagall, Henri Matisse. Uma viagem por mais de um século de arte. Uma escultura de Salvador Dalí, Busto Retrospectivo de Mulher, traz a figura alucinada de uma mulher com seios à mostra, um colar de espigas de milho no pescoço, um pão e um presépio sobre a cabeça. Contrapõe-se à delicadeza da escultura Mulher Envergonhada, de Degas.

Há ainda uma sala com esculturas de Botero. Num ambiente um pouco mais escuro, as luzes destacam as formas arredondadas de gatos, pássaros, mulheres, homens em seus cavalos, deusas. Chamam atenção Caballo, um cavalo de mármore com patas enormes, e El Sueño, uma mulher deitada com um pássaro sobre seu corpo. E não passa despercebida a gigantesca Mano Izquierda, na entrada do museu, que traz dedos que brotam do concreto com leveza e força.

Na saída, um passeio pelo bairro  La Candelaria é algo inevitável. É o mais charmoso e antigo de Bogotá, cheio de bares, restaurantes, lojas, livrarias, além de parte importante da história da cidade. O próprio complexo cultural do Banco de la Republica já garante diversão. É possível visitar também a Coleção de Arte do banco e o Museu Numismático, com grande acervo de moedas e cédulas acumuladas durante o tempo em que o prédio foi Casa da Moeda. Do outro lado da rua estão a Biblioteca Luis Ángel Arango, salas de exposições, uma livraria das boas e uma constante programação artística.

O clima é tranquilo e a área bastante policiada. Com os problemas sendo empurrados para o interior do país e para a periferia, a região central da capital se mantém mais segura, engana bem quem não conhece os conflitos que a Colômbia enfrenta há décadas. A tranquilidade chega a surpreender. Nos fins de semana, há bastante gente na rua. Aos sábados, grandes avenidas do centro ficam interditadas para os ciclistas. Feiras de livros usados, barracas de comida, muita música em pequenos palcos montados nas esquinas devolvem a Bogotá o ar de metrópole cultural, terra de um dos mais importantes artistas da atualidade, esse colombiano que nos deixa a todos cheios.

Serviço
Museu Botero
Rua 11, número 4-41, Centro Histórico de Bogotá
Tel.: (571) 343 1212
Horários: de segunda a sábado, das 9h às 17h. Fechado às terças. Domingos e feriados, das 10h às 17h
Entrada franca