economia

Ação e reação

Resistência a acordos intempestivos, diálogo e responsabilidade social como remédio contra o catastrofismo

Lucaz Lacaz/AE

Embraer demitiu 4 mil trabalhadores sem justificativa

Um dia depois de o IBGE divulgar o resultado do PIB de 2008 – crescimento anual de 5,1%, apesar da queda de 3,6% no último trimestre –, o empresário Zoilo de Souza Assis estava entre os 14 integrantes do painel que abria o seminário “ABC do Diálogo e do Desenvolvimento”. O evento reuniu sindicatos de trabalhadores, representantes dos empresários, das prefeituras das sete cidades do ABC paulista, membros do governo estadual e federal, incluindo o governador José Serra e a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Em nome das associações comerciais e industriais da região, Assis rebateu as críticas dirigidas a empresas que precipitaram demissões: “Fala-se muito que a Embraer demitiu 4 mil de seus 22 mil empregados, enquanto se deveria observar que a empresa preservou 18 mil postos de trabalho”, disse. “Se tomarmos os 3,6% negativos do último trimestre e anualizarmos, teremos uma queda próxima de 14% em 2009”, concluiu Assis, seguido de vaias.

O uso político da estatística, observado isoladamente, pode ser reduzido à condição de bobagem. Mas, em meio ao bombardeio midiático em torno da crise, torna-se mais um ingrediente da catástrofe. Diferentemente dos britânicos, que protestaram contra o alarmismo da mídia, parte importante do empresariado brasileiro prefere endossá-lo. A Fiesp, por exemplo, porta-voz da indústria paulista, foi a primeira a levantar a bandeira da redução de jornada e de salários. Chegou a se aproximar de um acordo com apoio da Força Sindical, em janeiro, abortado pela reação contrária da CUT e da opinião pública. Recentemente, apesar da retomada da produção em vários setores em janeiro, com crescimento de 2,3% em relação a dezembro, o diretor do departamento de pesquisas econômicas da entidade, Paulo Francini, afirmou que a economia brasileira é “uma das mais castigadas no mundo”.

Não se trata de negar os efeitos da crise internacional no Brasil. Mas conter a intempestividade seria um bom começo para combatê-los. O caso da montadora Renault, no Paraná, é emblemático. A empresa começou o ano propondo um acordo de suspensão de contrato de trabalho de mil empregados. Dois meses depois, começa a chamar os funcionários de volta e ainda anuncia o lançamento de um novo modelo de sedã. Apesar da boa notícia, a precipitação leva a efeitos que alimentam o “mito” da crise e a impactos práticos na extensa cadeia produtiva, de médias, pequenas e até microempresas, formada em torno da indústria automobilística.

No ABC, um dos principais polos do setor, onde o sindicato local vinha negociando mecanismos como férias coletivas e licença remunerada, a situação também começa se reverter. Na Volkswagen, 7 mil trabalhadores da fábrica de São Bernardo foram chamados para fazer horas extras no dia 7 de março. No final do ano, a empresa havia cancelado as horas extras e concedido férias coletivas. Não por acaso, as autopeças da região que haviam negociado redução de jornada, como Delga, Proxyon, Fiamm, Polistampo e Kostal, todas de Diadema, retomaram o ritmo normal meses antes do previsto.

Responsabilidade

A Central Única dos Trabalhadores enfatiza que a crise afeta de forma diferenciada os setores e que é um erro generalizá-la. As empresas de energia e telecomunicações estão em plena expansão, por exemplo. O presidente da Central, Artur Henrique da Silva Santos, afirma que as empresas são irresponsáveis quando espalham pânico, com demissões e ameaças, e que os sinais de reação da economia ratificam a postura da Central em relação aos empresários. “Isso só mostra que estamos certos em reagir à ação truculenta dos patrões sobre os direitos dos trabalhadores”, diz. Para ele, a crise foi gerada pelo modelo neoliberal, marcado pela especulação e pela falta de regulação dos mercados em detrimento da produção. “Temos de discutir o pós-crise e saber que modelo de sociedade a CUT vai apresentar para superar este momento. Precisamos de uma articulação internacional.”

Artur considera as demissões da Embraer uma das ações mais truculentas. “Por que não segurar o emprego se a companhia apenas reduziu sua expectativa de crescimento?”, questiona, lembrando que a Embraer é uma das empresas beneficiadas por financiamentos do BNDES e que falta ao governo mecanismo de fiscalização das contrapartidas exigidas daquelas empresas apoiadas por recursos públicos, como a manutenção do emprego.

A Alcoa Alumínio, que também recorreu ao BNDES, assumiu compromisso de manter os investimentos de R$ 8 bilhões no país até 2010, assim como o nível de emprego. No início de março, o banco anunciou a aprovação de R$ 950 milhões para expansão da empresa. Em 2007 já havia concedido R$ 1,15 bilhão.

Ainda na contramão do pessimismo e do oportunismo, no início de março foi assinado o primeiro acordo setorial depois do início da crise. O Ministério do Trabalho e Emprego e a Federação dos Sindicatos dos Revendedores de Automóveis (Fenauto) pactuaram a manutenção e geração de postos de trabalho no segmento de seminovos. Para isso, está aberta uma linha de crédito de R$ 400 milhões que vai financiar capital de giro para as empresas do setor. Metade dos recursos provém do Fundo de Amparo ao Trabalhador e o restante, do Banco do Brasil.

Regina de grammontRodoanel
As obras do Rodoanel, em São Paulo, usam dinheiro do PAC, geram postos de trabalho e estimulam o investimento privado

Diálogo

Parte da reação esboçada no setor produtivo é atribuída a medidas como redução de impostos, incluindo o imposto de renda dos assalariados descontado na fonte, e estímulo ao crédito. “O país precisa dessas medidas anticíclicas para combater a crise sem abrir mão das conquistas sociais alcançadas com a entrada de milhares de pessoas no mercado de trabalho nos últimos anos, o aumento real do salário mínimo e a rede de proteção social”, afirmou o ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, durante o seminário no ABC. A ministra observou que no passado recente as crises internacionais obrigavam o país a se submeter a imposições de organismos como o FMI e o impediam de investir em programas sociais e em infraestrutura. “Hoje a gestão da nossa economia nos permitirá manter a estabilidade sem prejuízo mão dos investimentos previstos em infraestrutura e nos programas sociais. Mais que isso, estamos prontos para iniciar uma trajetória definitiva de queda nos juros.”

Para o diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, o governo precisa acelerar as obras do PAC, pelo seu efeito multiplicador dos investimentos no setor privado. Segundo ele, a crise atingiu mais a indústria da Região Sudeste, e esse movimento deve ser contido para não contaminar o restante do país. “Precisamos de um novo paradigma para preservação de emprego. É hora de cobrar a verdadeira responsabilidade social das empresas. O modelo atual acaba com o mundo e com a humanidade”, disse Ganz Lúcio.

O prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho, alertou que a grande dificuldade das empresas ainda é a falta de crédito e criticou o nível de exigências que retarda as concessões de empréstimos. “As pequenas empresas, que geram mais postos, precisam ter ampliado seu acesso ao BNDES para aumentar o capital de giro. A gente reconhece que graças às linhas dos bancos públicos a crise foi amenizada, mas é preciso agilizar mais.”

Como alternativa à atual agenda negativa, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, reforçou a necessidade de juntar Estado, trabalhadores e empresários em nome do crescimento. “Acima de tudo, precisamos assegurar o emprego. Sofremos uma freada num carro a 300 quilômetros por hora. Precisamos retomar a normalidade, a partir de pesados investimentos em infraestrutura”, propôs.

O movimento sindical reforçou sua ação desde que os primeiros efeitos da crise começaram a ser sentidos no Brasil e, particularmente, na região, explica o presidente do Sindicato dos Químicos do ABC, Paulo Lage. “Procuramos empresas que alegavam dificuldades para negociar, comandamos assembleias nas fábricas, procuramos o Estado em suas três esferas, fizemos greve, paralisamos a Anchieta e articulamos, com empresários e governos, a realização deste seminário”, declarou.

Do seminário resultou a “Carta do ABC”, dirigida a Lula e a Serra. “A crise será superada com a valorização da negociação, do trabalho, da produção, das pessoas e da cidadania, tendo como valores fundamentais a pluralidade, o respeito à pessoa humana e a democracia”, diz o documento.

Colaborou Maurício Thuswhol

Ilha da fantasia: os 20 maiores bancos do país lucraram R$ 33 bilhões em 2008 e provisionaram outros R$ 56 bilhões
Sistema financeiro brasileiro prossegue com rentabilidade acima dos padrões internacionais, mas sobrecarrega o setor público no enfrentamento da crise

A queda brusca da atividade econômica no final de 2008 e início deste ano levou o Banco Central a, enfim, indicar uma redução mais acentuada dos juros básicos. Mas forçou o governo a rever para 2% a previsão de crescimento do PIB em 2009. Alguns dias depois da queda da taxa Selic para 11,25%, o Ministério do Planejamento anunciou corte de R$ 21,6 bilhões no Orçamento da União. Em contrapartida, deve diminuir em R$ 15 bilhões a fatia do PIB que separaria para pagar juros de sua dívida. O ministro Paulo Bernardo assegurou, assim, que o corte não afetará os investimentos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

A crise financeira internacional puxou o freio das economias, mas o Brasil dispõe, como poucos países, de ferramentas para minimizar as dificuldades. Ainda tem, por exemplo, ampla margem para reduzir os juros. O secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, Nelson Henrique Barbosa Filho, fala em ficar abaixo de 10% já no primeiro semestre, “sem comprometer as metas de inflação”. A medida pode induzir o sistema bancário privado a também diminuir os juros cobrados de empresas e pessoas físicas.

Fortalecido pelo crescimento do PIB, do emprego e da renda nos últimos anos, o país conta com reservas internacionais de US$ 200 bilhões e um sistema público de bancos capaz de manter relativa oferta de crédito. Além disso, com menor dependência do mercado externo, aposta, ainda, que há boa margem de fortalecimento do mercado interno.

Para isso, tendo como horizonte a manutenção dos empregos, há esforços coletivos para estimular a atividade industrial, a construção civil, a proteção social e do nível de renda. Quem acompanha de camarote esse desenrolar da crise é o sistema financeiro brasileiro. Não foi afetado pela turbulência, não precisa de ajuda, mas tampouco parece disposto a colaborar. O spread (diferença entre o juro que paga para arrumar dinheiro e o juro que cobra para emprestá-lo) continua um dos mais altos do mundo.

O economista-chefe da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Rubens Sardenberg, afirma que é mais fácil baixar os juros bancários em situação pró-cíclica. “O spread médio era de 60% em 2003 e chegou em meados de 2008 a 32%; com a crise, voltou a subir e está próximo de 40%”, diz. Sobre os bancos não terem linhas de crédito para pequenos, ou mesmo políticas de microcrédito para apoiar pequenos empreendimentos geradores de trabalho e renda, Sardenberg é transparente: “Isso pode ser socialmente bom, mas é um negócio ruim para os bancos. É pouco rentável, dá prejuízo. Precisa de uma escala monstruosa, porque tem altos custos de operação. O mais adequado é o emprego de outros instrumentos, como cooperativas, prefeituras, organizações que se mantenham mais próximas da comunidade”.

O economista-chefe do Bradesco, Octávio de Barros, disse num evento no Palácio do Planalto, em março, que o cenário para a redução do spread já está posto: “É muito possível supor que, no momento em que se destensione a economia mundial, o spread se reduza. Isso é plausível, assim como a redução da taxa de juros”. Mas também minimizar os ganhos obtidos pelos bancos privados: “A parte de lucro que cabe aos bancos é apenas uma fração do spread. Algo como um quinto, segundo a Febraban”.

O lucro dos bancos brasileiros, aliás, só não foi maior em 2008 porque suas provisões aumentaram significativamente. Provisões correspondem a dinheiro que os bancos têm mas não contabilizam como lucro. Aparecem nos balanços como reservas para créditos considerados de difícil recebimento ou para quitação de eventuais pendências judiciais e trabalhistas. Para se ter uma ideia, o lucro líquido dos 20 maiores bancos do país no ano passado, com crise e tudo, foi de quase R$ 33 bilhões, 3% acima do alcançado em 2007. Já os valores contabilizados como provisão, 
R$ 56 bilhões, cresceram 48%.

Com o descompromisso do sistema financeiro brasileiro com assuntos “socialmente” importantes, a forte presença dos bancos públicos, como BB, Caixa e BNDES, nesse cenário acaba sendo mais um diferencial do Brasil em relação a outros países diante da crise. Enquanto em muitos mercados se tem falado em estatização dos bancos como forma de contenção da quebradeira, aqui os bancos federais são alguma garantia contra a estiagem total de crédito.

A economista Maria da Conceição Tavares defende uma pressão maior do governo sobre o setor financeiro: “Banqueiro é banqueiro em toda parte. É óbvio que banco privado só se comportará com responsabilidade se o Banco Central obrigá-lo”, disse.