entrevista

Rapper desde o berço

“Eu queria ser negona. Acho que sou, mas não tenho a pele preta. Eu queria ter nascido com a cor do meu pai. Tem gente que me fala: ‘Caraca, achei que você fosse uma negona gigante’”

Mauricio Moraes

A rapper Flora Matos, de 20 anos

Do Plano Piloto de Brasília para o centro da terra da garoa. Com 18 anos, em 2007, Flora Maia Matos, filha de Renato Matos e Áurea Lucia, se jogou na selva cinza de São Paulo para realizar um sonho. O ritmo que conduz a vida da jovem MC – mestre de cerimônia, o rimador – é o rap, sigla em inglês de rhythm and poetry, mas que já tem sentido e estilo bem caseiros. Chamada de Mano Brown de saias por causa da voz grave e das rimas que falam de amor, ódio, paz, guerra, rua, vida, Flora Matos MC nasceu da música. Aos 20 anos e sem disco lançado – o primeiro sai este ano –, já fez turnê pela Europa, cantou em favela e em grandes palcos, ao lado de grandes músicos e de anônimos, participou de batalhas entre rimadores, esgotou ingressos para ser vista no sul do Brasil, abriu show para os Racionais MC’s e para a MC Yarah Bravo, de Nova York, curadora do festival Hip Hop Kemp, um dos mais importantes do mundo. Além de rimar, ter seu ritmo e sua levada (o que no rap é chamado de flow), Flora toca bateria, pandeiro, violão e domina as ferramentas de divulgação de seu trabalho, como o MySpace e o Orkut (onde possui quatro perfis lotados de fãs). Pela internet ela disseminou sua música e em seus shows o público já sabe de cor suas canções. Seu rosto adolescente esconde uma mulher segura, habilidosa e criativa, senhora do palco. E surpreendente. Confira nesta que é sua primeira grande entrevista o ritmo, a levada e a personalidade dessa promessa do rap brasileiro.

Quando você começou a se interessar por música?
Muito, muito pequenininha. Nessa foto meu pai canta reggae com a Orquestra Sinfônica de Brasília, e eu, criança de colo, já estou em cima do palco, amarradona. Meu pai já botava o microfone na minha mão. Quando eu tinha uns 6, 7 anos, lembro dele soltando as batidas de dub e ragga que ele tinha em vinil e dava o microfone para mim e meus irmãos. Ele botava a gente pra cantar, ficar rimando. Meu irmão Caetano e um primo meu escreveram um rap – eu tinha uns 7 anos – e aprendi a cantar. Cantava em cima das batidas que meu pai soltava. A gente brincava de fazer música em casa. Isso foi em Olhos d’Água, a 100 quilômetros de Brasília (chama o irmão para lembrar da música e canta): “Queria te contar uma coisa interessante/ se liga, meu irmão, que é superimportante/ tanta coisa você tem e nem sabe que tem/ tanta coisa você tem e nem sabe que tem/ a sua casa, seu caderno, seu sapato, seus brinquedos modernos/ tudo isso é seu. E a rua, de quem é?” (risos).

Então você é de uma família de artistas?
Minha mãe já tinha dois filhos, o mais velho hoje é ator e diretor de teatro e a outra trabalha com direitos humanos, é militante das lésbicas e dos gays. Daí casou com o meu pai, teve a mim, o Caetano e o Zé. O Caetano é ator, canta e escreve, o Zé Maia é designer, artista plástico sinistrão. Depois ela teve mais dois com um palhaço de rua. Eles também são atores e superabertos para fazer música. A Júlia, de 15 anos, veio aqui, escreveu um rap. São sete filhos, sete artistas bons no que escolheram.

Quando você descobriu o rap?
Eu estava fazendo sem nem saber o que era aquilo. Dub, reggae, rap, black music fazem parte da minha vida desde que nasci. Na barriga eu já ouvia. Ia a shows de reggae com o meu pai. Quando minha mãe brigava comigo, ela me mandava para o meu pai. Com uns 12 ou 13 anos, eu comecei a ouvir uns raps nacionais na rua, comecei a sacar nos lugares onde ia comprar roupa e onde a galera do rap andava, tinha rodinha de freestyle, fiquei amarradona. Ficava olhando. Aí, uma amiga minha bem mais velha – de quem minha mãe não gostava muito –, que trabalhava no camarim dos Racionais, pediu minha ajuda para ir trabalhar com ela um dia. Fui escondido. Eu sempre levava meu violão pra todo lugar porque escrevia umas músicas. Deixei o violão no cantinho e estava fazendo um sanduíche pra eles quando um perguntou de quem era o violão. “É meu.” “Então, toca aí.” Eles gostaram e nunca mais esqueceram de mim. Todo show que eles iam fazer lá, eu colava.

E foi ficando.
O Milton Sales, que trabalhava com os Racionais, uma vez ficou em Brasília: “Vou conhecer seu pai, sua mãe, suas músicas, seu trabalho”. Meu pai não gostou muito dele. Minha mãe se apaixonou, eles começaram a namorar, foi muito louco. Uma vez me levou uma caixa com uns cem CDs de rap nacional: “Escuta”.

Como você se vê hoje na cena do rap?
Acho que os caras gostam de mim (risos). As minas é que estão meio com o pé atrás. Acho que é ciúme. É uma parada que eu prefiro nem falar muito pra não dar corda. Eu tenho a minha sensualidade, eu gosto de cantar refrão, e não é uma parada vulgar.

Sua inspiração para escrever vem de onde?
Vem do que eu estou sentindo, do que estou passando, do que eu vejo acontecer. Não tem aquela pegada de crítica social muito forte. Eu procuro mostrar mais a solução do que o problema. Mas da minha forma, do meu jeito. Prefiro falar do amor do que do ódio, mas também me expresso quando sinto ódio, só que de uma forma mais positiva, mais sutil. Falar do amor também é uma maneira de mudar o social porque a revolta que existe na favela leva muito aos problemas sociais.

Qual é a sua relação com a favela?
Eu tive muita sorte de ter uma mãe guerreira, que começou vendendo sanduíche na gráfica do Senado e hoje trabalha pelos índios, por ter passado essa educação para a gente e ter batalhado para que nada faltasse. A dificuldade que eu passei, quando passei, foi vivendo com o meu pai, por escolha. Eu sei o que é a favela, eu sei o que é viver de música e não ter grana. Meu pai ainda tem dificuldades, mas não para de correr atrás do que ama fazer. E ele não é infeliz por faltar uma grana. Ele é feliz porque faz o que ama. Sempre morei no Plano Piloto, que não é bairro nobre, mas não é favela. É um lugar onde mora de senador a empregada doméstica. Sempre que eu ia na favela os caras me olhavam muito da cabeça aos pés, nunca foram de muitos sorrisos. Mas os que faziam os shows, os produtores, já enxergavam alguma coisa em mim. Quando eu estava vindo para São Paulo diziam: “Pô, vamos fazer uma música. Fica aí com a gente, não vai pa São Paulo, não…” Foi meio difícil a galera me aceitar nas quebradas porque Brasília é meio gângster, demais, na cena do rap. Rap underground mais livre lá não vira muito.

Como foi sua vinda para São Paulo?
Eu fiz 18 anos, falei para a minha mãe que precisava sair de lá, precisava dar continuidade. Não sou gângster, não dava. Minha mãe superapoiou, meu pai também. Aliás, quando eu fiz 14 anos, disse para a minha mãe: “Mãe, eu quero viver disso aqui. Não adianta querer me botar para estudar, fazer faculdade”.

Você estudou até que série?
Até a 5ª, daí eu fiz supletivo, mas não funcionou porque a escola de música era do lado… Falei: “Mãe, você está gastando dinheiro à toa com transporte, material. Eu não estou estudando, eu vou na escola de música todo dia”. Ela parou, pensou e disse: “Então, tá”. E meu pai… Meu pai, eu não tenho nem palavras (emociona-se). Foi ele que botou isso dentro de mim.

Daí você veio?
Rolou um convite do KL Jay (DJ dos Racionais) quando eu estava em Brasília para gravar um remixe de uma música da Céu, Véu da Noite. Ele pegou a capela da voz dela, fez uma batida em cima e botou eu e o Fator (MC do Rio de Janeiro) pra rimar. Ele me convidou e eu disse: “Vou, mas eu vou ficar!” “Tudo bem, meu. Eu te dou todo o apoio.” Ele está sempre me chamando para fazer show com ele. Faço show com o DJ King, com a DJ Typá, tem o show Flora Matos e KL Jay, e isso dá uma visibilidade maneira. O maior apoio que ele poderia me dar é ser meu DJ. Através dessa música – ele gostou e as pessoas comentaram –, ele me chamou para gravar um disco, que sai neste ano pelo Equilíbrio, o selo independente do KL Jay. Recebi muita ajuda da minha mãe nos primeiros meses. Fazendo freestyle (improviso de rima) à noite eu tirava R$ 100, R$ 200. Teve um momento que eu consegui me manter.  Chega uma hora que você precisa dar um preço para o seu show, ficar fazendo freestyle à noite sempre dá uma sujada, perde um pouco a graça. Você vai fazer um show que a galera já viu muito.

É mais fácil uma pessoa pagar R$ 25 para entrar num show do que para comprar um CD?
É. A primeira pessoa que compra seu disco tem a oportunidade de chegar na internet e disponibilizar. Não tem mais como frear isso. E a minha música é mais feita para ouvir do que para vender. Preciso vender, pagar o custo do disco, sobreviver disso, mas acho também que as pessoas têm que ouvir. Compartilhamento é inevitável. Essa coisa de CD pirata é um trabalho que eles fazem pra gente de graça de divulgação. Quem valoriza mesmo compra. Quem não pode não compra, mas ouve.

Como é o público das festas e shows de rap?
É muito misturado, é um público que tem e não tem dinheiro. Hoje em dia, pelo menos no Sul, meu público maior é de patricinha e playboy. Eles cantam e eu acho lindo, porque acho que quem mais precisa ouvir rap são eles. A gente passa uma visão de quem está na quebrada e está enxergando. As patricinhas não estão vendo o que está rolando na rua. Acho ótimo quando vejo playboy ouvindo Racionais, dá uma mexida na cabeça deles, acrescenta na vida deles.

Quando foi a primeira vez que você cantou com Mano Brown?
Em BH, abrindo o show. E era um público gritando: “Racionais! Produção, vai tomar no cu!” E eu: “Caralho! E agora, o que eu faço?” Eu pensei: “Vou fazer um freestyle”. Peguei o cara mais empolgado na plateia e fiz um freestyle pra ele. No final as pessoas aplaudiram.

Como você foi descoberta pela Nike, que a levou em turnê para a Europa?
Foi bem louco. Uma menina lá de Porto Alegre, Fabiana (produtora de shows), me chamou para fazer a turnê lá. Eu não sabia muito bem o que ia acontecer. Nunca tinha saído do Brasil. Fui parar em Paris, a gente fez um show, o Pentágono e eu, e fomos para Angers, a quatro horas de lá. Demos uma oficina de criação coletiva junto com os músicos de lá. O que a gente tinha que fazer era música. Nasceu uma música, a gente apresentou no último dia, parte em francês, parte em português. Eram dois meninos novinhos, 16, 17 anos, que rimavam (ela estava com 19) e tinha três músicos que pagaram para estar com a gente nos quatro dias: um baixista, um tecladista e um baterista sinistro. Em Le Mans a gente fez outra oficina. Depois conheci Portugal e Itália, coisas que eu mesma fui fechando na internet antes de ir.

Por que tem pouca mulher fazendo rap?
Acho que é falta de oportunidade. Quando dão oportunidade é mais pra menina ficar ali, do ladinho, cantando um refrão, não gostam muito de ver a mulher rimando. Mas, se existe aquela coisa “mulher não nasceu para cantar rap”, é coisa que eu não vejo, porque eles não me deixam ver, já viram que eu sou isso aqui. Não adianta falar para mim que eu não nasci para fazer isso porque foi isso o que eu vim fazer. Um produtor uma vez não aceitava que eu escrevesse, fizesse flow meu, uma coisa menos meiga. Hoje em dia eu digo: “Quero um beat assim, manda para mim?”, e ele manda (risos). Acho que estou abrindo portas que estavam fechadas para mulheres. Fico superfeliz quando vejo uma mina rimando.

Já pensou em desistir do rap?
Não, eu já ouvi coisas que me fizeram enxergar por que tanta mulher desiste. Esse tipo de coisa só me impulsiona a continuar. As dificuldades só me dão mais disposição. Há coisas que não valem nem a pena comentar, mas eu sei que fizeram mulheres desistir. São homens preconceituosos, que não conhecem, estão vendo você ali, de mano, envolvida com todos os caras, todos os outros caras querem trabalhar e falam “como é que essa mulher está ali e eu não estou? A mina acabou de chegar!”

Ser mulher e ser bonita já atrapalhou?
Não, porque eu não deixei, mas acho que já atrapalhou muita mina, já botou muita mulher pra baixo, muitas já desistiram e acho que não fazem rap hoje por ouvir essas coisas, tipo “você está trabalhando com os caras, impossível que você não esteja dando para eles”.

Quais são seus planos?
Lançar esse disco, viajar. Quero conhecer o Nordeste, fazer uma turnezona, fazer música lá, misturar, chegar lá na raiz, o repente, a raiz da música brasileira está no Nordeste. Quero poder ir lá sempre. Morar ainda não. Só depois de morar lá fora, na Europa. Tudo vai depender de como vai ficar o lance do disco. Quero lançar no mínimo três discos no Brasil antes de sair: esse, o do Cosa Nostra (projeto com os Racionais) e quero chamar meu pai para fazer umas coisas. É um projeto que eu não quero falar muito para não roubarem a ideia.

E suas influências?
Eu gosto de música brasileira, de música baiana, tem coisas como o funk carioca, que é uma parada que eu não fecho muito com as ideias que eles cantam, mas é um ritmo que me contagia muito. Tem uns ritmos baianos também que eu queria muito rimar em cima, mas isso também não vou falar muito não porque senão daqui a pouco estão fazendo. Curto Marisa Monte, Mart’nália, mas de MPB o que eu mais gosto é do meu pai mesmo.

Como você faz sua música? Você faz sua base?
Depende. Às vezes eu baixo beat gringo na internet e acho legal, gravo a voz em cima da batida gringa, levo para o estúdio, o DJ tira o beat e produz em cima, ou eu produzo aqui (aponta o computador) um beat mais ou menos, porque eu não tenho os timbres muito bons. Produzo a ideia do que eu quero e escrevo, mostro para o DJ. Tenho uma noção legal. Sei fazer o modelo para mostrar o que eu quero. Foi a convivência com meu pai, ele sempre deixou a gente mexer em toca-discos, ensinou a gente a colocar discos, o que era médio, grave, agudo. E na hora de ver como está saindo minha voz, se dá para passar o som na casa que eu vou cantar, eu vou lá na frente olhar, peço para melhorar.

Você não tem produtor para fazer isso?
Não, mas meu ouvido é bom. Mesmo que eu não saiba mexer na mesa, sei falar para o cara o que faltou.

Tem uma música sua que você pede: “Me chama de negona”. Explica isso.
Eu queria ser negona. Eu acho que eu sou uma negona, só que eu não tenho a pele preta. Eu gosto quando me chamam de negona, acho maneiro. Meu pai é preto, eu queria ter nascido com a cor dele. Tem gente que me fala: “Pô, caraca, achei que você fosse uma negona gigante”.

Qual é o seu sonho?
Tudo isso que estou vivendo é meu sonho. Sonho meu, particular, é viver o que estou vivendo. Os meus sonhos são muito meus, eles se realizarem é justo por eu não falar muito deles. Eu fico sentindo.