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Medicina para a humanidade

Há dez anos, escola cubana forma jovens do mundo todo que jamais conseguiriam estudar Medicina. E eles retribuem a oportunidade em suas comunidades, com uma visão humanista e uma prática solidária

Brunna Rosa

Hospital Salvador Allende: “Desde o primeiro dia já acompanhamos como funciona um hospital”

Em outubro de 1998, os furacões George e Mitch, em passagem pela América Central, arrasaram os países da região e provocaram a morte de centenas de pessoas. Guatemala, Honduras, El Salvador e Nicarágua assistiram à devastação das lavouras, de casas e de boa parte de sua infraestrutura, com um prejuízo estimado em US$ 8,5 bilhões. Poucas vezes um cenário semelhante de caos e destruição fora visto daquela forma por lá.

Com a calamidade, Cuba se propunha a ajudar seus vizinhos, enviando brigadas médicas para os países afetados. A ideia era salvar milhares de pessoas, através da assistência à população vítima dos furacões. Veio daí a decisão do governo cubano de, em vez de só enviar médicos, trazer jovens desses países para Cuba e formá-los em Medicina. Em 1999, foi criada a Escola Latino-Americana de Medicina (Elam), que em seis anos teria sua primeira leva de formandos. “Esta graduação era um sonho há quase sete anos. Hoje é uma prova da capacidade humana para atingir as mais elevadas metas e um prêmio para os que creem que um mundo melhor está ao nosso alcance”, anunciou o então presidente Fidel Castro, na primeira graduação dos 1.600 da Escola Latino-Americana de Medicina, em 20 de agosto de 2005 – provenientes da América Central, Caribe, América do Norte e América do Sul, 40 deles brasileiros. Atualmente, 12 mil jovens estrangeiros se preparam para ser médicos na ilha.

A sede da Elam fica na cidade de Baracoa, província de Havana, e foi instalada em uma antiga base militar. Por lá, chegam por ano cerca de 1.500 jovens, de vários países do mundo, e dão início ao ciclo de seis anos de estudos com uma grade curricular extensa, que inclui complementos como aulas de inglês, história, física, humanidades e esportes, além das ciências médicas. Durante todo o período, a alimentação, a moradia, os equipamentos e livros são custeados pelo governo cubano. Em troca, a única exigência é que o estudante volte a seu país e trabalhe em comunidades carentes.

Os estudantes são escolhidos em seu país de origem pela ligação com algum movimento social. “Durante os dois primeiros anos na Elam, aprendem espanhol e participam de uma espécie de curso de pré-Medicina, disponibilizado justamente para equiparar as diferenças educacionais de cada estudante”, descreve Emeline Simone Fortes Leite, uma cabo-verdiana de 24 anos, estudante do 4º ano. Depois de concluídos esses dois anos, os estudantes são transferidos para uma das 33 faculdades de Medicina das diversas províncias do país e a distância entre a teoria e a prática fica cada vez menor. “Desde o primeiro dia já acompanhamos como funciona o hospital. Mas depois, no 3º ano, você já tem seus pacientes e os acompanha diariamente. São seis horas de trabalho por dia”, relata.

Atenção básica

“Um médico que só sabe Medicina nem de Medicina sabe” é um lema dos estudantes, inspirado em Che Guevara, que dá uma ideia de como os cubanos trabalham com as ciências médicas. “A medicina em outros países é estritamente capitalista. Se você não tem dinheiro para pagar o médico, morre. E quando chegamos aqui você conhece outro tipo de prática”, afirma o venezuelano Ismael Francisco Calvo Echezuria, 22 anos, estudante do 4º ano.

Ismael é filho de pais comunistas e por isso está em Cuba. Ele, que preserva admiração por Hugo Chávez, mas gosta de dizer que não é “chavista”, e sim “comunista”, admite que a formação de um médico em Cuba é diferente. “Você não aprende só Medicina, você aprende a ser humanitário. Quando terminar o curso, quero fazer uma especialização e trabalhar na Amazônia”, prevê Ismael. “No meu país, o acesso à Medicina, apesar de não ser pago, ainda é muito concorrido e difícil de conseguir”, lamenta o estudante.

O norte-americano Davi Velásquez, de 28 anos, acredita que em Cuba se aprende a ser um médico diferenciado. Davi está no 6º ano. É descendente de colombianos e quer retornar aos Estados Unidos para atuar em comunidades de imigrantes: “Aqui aprendemos que nossa missão não é só passar apenas uma receita e falar alguns minutos com os pacientes. Quero trabalhar com os imigrantes, pois muitos morrem por não ter assistência médica”.

Recentemente a norte-americana Cindy Sheehan, mãe de um soldado morto no Iraque, mostrou-se surpresa com o que presenciou ao visitar a Escola Latino-Americana de Medicina. “Estou impressionada com a qualidade da escola, dos estudantes, nunca tinha visto nada parecido”, declarou Cindy. Segundo ela, para um jovem se formar médico nos Estados Unidos não gasta menos de US$ 300 mil. Davi e outros 90 norte-americanos estão em Cuba a convite da organização Pastores pela Paz, presidida pelo reverendo Luicius Walker, que lidera manifestações contra o bloqueio econômico à ilha, imposto por seu país em 1961.

“Sinto-me muito feliz pelo meu país dar essa oportunidade a tantos jovens”, diz o cubano Roberto Otero, de 25 anos e estudante do 4º ano. Roberto já havia cursado outra faculdade em Cuba e agora está se preparando para o exame final do ano letivo, que deve acontecer neste semestre. “Em breve estaremos no 5º ano. Serei quase médico!”, comemora. Roberto não vê a situação com serenidade crítica: “Todo médico ganha uma casa próxima a sua clínica. Essa casa pode ser usada por outras pessoas se os médicos estão em missões no exterior. É comum Cuba enviar ajuda humanitária a outros países. Mas não é justo que uma pessoa que estude tanto tempo ganhe US$ 22. Sei que a medicina aqui tem uma lógica diferente, salários justos são corretos em qualquer sistema”. 

“Cuba está dando oportunidade aos jovens pobres do mundo, indígenas, camponeses, operários, que não teriam condição de fazer Medicina em seu país, de se formar médicos, de voltar para casa e contribuir para a melhoria de vida de suas comunidades. Teremos de ser eternamente gratos a esta ilha”, emociona-se Emeline, a jovem que quer “socializar” o aprendizado em seu país: “Cabo Verde tem apenas 33 anos de independência e muitos jovens saíram para estudar porque não há faculdades lá. Quero voltar e contribuir para o desenvolvimento local”.