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Longe, porém brasileiros

Pessoas que deixaram o país para tentar a vida em outro canto, e que enviam milhões de dólares todos os meses, querem mais atenção a seus problemas, num mundo cada vez mais hostil aos imigrantes

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Irene, que vive na Suíça, não acredita no Estado

No século passado, o Brasil acolheu imigrantes das mais diversas línguas, que se tornaram parte importante da nossa identidade cultural. De algumas décadas para cá, seguindo a tendência observada em países menos desenvolvidos, passou a “exportar” gente. De acordo com as estimativas do Ministério das Relações Exteriores (MRE), cerca de 4 milhões de brasileiros vivem fora do país. E para algumas organizações que lidam com o tema, esse número pode ser muito maior, já que há muitos em situação ilegal e fora das estatísticas. Os brasileiros residentes no exterior (e as remessas de dólares que enviam anualmente ao Brasil) já têm o peso de uma nação. Para alguns, o bastante para se formar um estado, uma 28ª unidade federativa. O Banco Mundial estima que emigrantes enviaram para seus países de origem US$ 283 bilhões em 2008. No Brasil entraram, apenas em outubro, US$ 345 milhões.

Assim, entidades formadas por residentes no exterior almejam o direito a uma representação política mais consistente. Hoje, os emigrados só podem votar para presidente. Uma proposta de emenda constitucional do senador Cristóvam Buarque (PDT-DF) prevê a criação da figura do representante legislativo dessas comunidades. A medida permitiria aos emigrantes eleger – e ser eleitos – senadores e deputados federais. O Estado dos Emigrantes, de acordo com os seus defensores, teria no futuro orçamento próprio e grau de autonomia equivalente aos demais. O projeto está parado há quase um ano no Senado. “Não entendo por quê, se ninguém discorda que os brasileiros no exterior têm o direito de se fazer representar. O Brasil é um país de emigrantes e tem de se assumir como tal”, diz Cristóvam.

No Executivo, alguns movimentos indicam que a crescente presença de brasileiros residindo em outros países começa a ser tratada como questão de Estado. Durante a Conferência das Comunidades Brasileiras no Exterior, organizada pelo MRE no Rio de Janeiro, no ano passado, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, disse que o tratamento dispensado aos imigrantes ilegais pelos países mais ricos é preocupante. “O Brasil acolheu os refugiados que aqui vieram – movidos por guerras, questões políticas, raciais ou econômicas – para ganhar a vida e, ao mesmo tempo, contribuir para o desenvolvimento. O mesmo tratamento deve ser dado aos brasileiros fora do país”, defendeu. “O respeito aos direitos humanos de nossos compatriotas no exterior está muito presente na política externa brasileira”, em alusão às medidas de “endurecimento” com imigrantes, sobretudo na Europa.

As “Diretivas do Retorno” – conjunto de normas europeias que preveem um trato mais rigoroso com os estrangeiros – incomodam. Apelidadas de “Diretivas da Vergonha”, as normas aprovadas pela Comunidade Europeia permitem, entre outras coisas, expulsão sumária e detenção por até 18 meses de estrangeiros flagrados em situação ilegal.

Em resposta a esse cenário, e a outras dificuldades vividas por compatriotas emigrados, suas organizações buscam caminhos para se fortalecer politicamente, embora ainda não exista um consenso. Há três correntes expressivas de opinião. Uma, a de que se deve acelerar a criação do Estado dos Emigrantes. Seu principal articulador é o jornalista Rui Martins, que reside na Suíça: “A chegada do Estado dos Emigrantes é inexorável”, aposta. Outra prefere o fortalecimento das redes já existentes em cada país e a criação de uma “rede das redes”, a ser reconhecida oficialmente como órgão de interlocução direta com o governo federal: “Vamos divulgar em breve um documento explicando por que não apoiamos o Estado dos Emigrantes”, afirma Irene Zwetsch, jornalista e integrante do Conselho Brasileiro na Suíça. Um terceiro grupo defende que o MRE promova no Brasil um amplo debate, nos moldes das conferências do Meio Ambiente e das Cidades, que discuta problemas e elabore propostas para o setor, como propõe Manoel Andrade, um dos líderes da comunidade brasileira em Portugal.

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Daniely ganhava cerca de R$ 3,5 mil trabalhando como garçonete em Londres, para onde pretende voltar

Na batalha

As maiores comunidades de brasileiros no exterior estão na Europa, no Japão e nos Estados Unidos, onde vive um terço dos emigrados. Nos países ricos, geralmente, encontram muito trabalho e oportunidade de ganhar salário razoável em moeda forte.

Em muitos casos, têm jornadas extenuantes, ajudam suas famílias no Brasil ou se sacrificam para poupar e tornar viável projetos em sua terra natal. “Não estaria melhor economicamente do que estou agora se tivesse permanecido no Brasil. Não seria fácil encontrar trabalho devido a minha idade e eu não seria a profissional que sou aqui”, diz Cátia Cazzoto, de 46 anos, nos EUA há 14. Mais que uma manicure convencional, Cátia é mestre na arte de montar unhas acrílicas, as feitas com gel etc.: “Sou uma especialista”, resume. Na cidade de Panama City (Flórida), onde mora, a boa reputação profissional da brasileira garante uma clientela fiel.

“Quando estamos no Brasil, pensamos em encontrar já de cara nos EUA um bom trabalho e fazer muito dinheiro, mas não é assim que funciona. É preciso saber aproveitar as oportunidades que aparecem, fazer algo melhor para se chegar a ter algum dinheiro para juntar”, alerta a brasileira, que estima em US$ 2 mil por mês o mínimo necessário para pagar as contas primárias, “aluguel, luz, água, telefones, seguro de carro, comida e roupas”.

Carolina Ferreira (que não quis revelar o sobrenome japonês) decidiu há seis anos deixar Santo André, no ABC paulista, em direção à terra de seu avô, com o marido Renato. O primeiro emprego do casal no Japão foi na fábrica da Sony na cidade de Gifu-Ken Minokamo-Shi: “Começamos a trabalhar com a montagem de aparelhos celulares. Tinha muito trabalho, até hora extra. Sempre trabalhamos no período noturno, pois ganhávamos mais”, conta Carolina, ressaltando que as mulheres recebiam menos que os homens pelo mesmo serviço.

Dois anos depois, “cansaram” da Sony e foram trabalhar na Sharp, em Mie-Ken Matsusaka-Shi: “Lá pagavam melhor a mulher. Fazíamos telas de cristal líquido para celulares, televisores, computadores. De vários tamanhos. Meu marido cortava o vidro e o preparava para injeção de cristal líquido. Eu, depois das telas quase prontas, checava se tinha defeito”, conta. “Fizemos muitas horas extras. Nossa rotina era de casa para a fábrica, da fábrica para casa. Uma vez por semana íamos ao mercado fazer compras. Trabalhamos mais um ano e sete meses nessa fábrica.” A partir daí veio o desejo de voltar. Mal sabia o casal que o dinheiro reunido com tanto esforço no outro lado ajudaria a bancar a vida nova que os esperava no Brasil: “Marcamos a passagem para o Brasil sem ninguém da família saber e uma semana depois soube da minha gravidez. Fizemos surpresa dupla. Cheguei quase no segundo mês de gravidez”, conta Carolina, hoje mãe de Bruna, de 2 anos.

A brasileira considera que, se ainda estivesse no Japão, a situação econômica estaria melhor. “É um lugar muito bom de se morar e viver. Não tem violência. A moradia é cara, a saúde é cara, mas se ganha para isso.” A família de Carolina e Renato faz parte de um contingente de emigrantes brasileiros considerado dinâmico, pessoas que voltaram ao Brasil mas não descartam a possibilidade de retornar ao exterior: “Meu marido vai prestar um concurso público. Ele diz que, se não passar, no ano que vem voltamos para o Japão”.

Outro tipo dinâmico de emigrante é aquele que acabou de chegar aos 20 anos e quer estudar, trabalhar e, quem sabe, juntar algum dinheiro para gastar na volta. A carioca Daniely Esper trancou a faculdade no ano passado para viver por dez meses na Inglaterra, para onde pretende voltar: “Fui para Londres fazer intercâmbio, praticar o idioma, estudar e trabalhar”, conta Daniely, que ganhava como garçonete pouco mais de 1 mil libras por mês (cerca de R$ 3.500). “Tinha dia que trabalhava dobrado. Aos domingos, por exemplo, eu trabalhava de 11h às 15h30, aí tinha uma pausa até às 17h e depois eu voltava até fechar, por volta das 22h. Durante a semana, a média de trabalho era de oito horas por dia, eu tinha dois dias de folga por semana e, de três em três meses, tirava uma semana de folga remunerada”, descreve.

Daniely gastou o dinheiro que juntou trabalhando em Londres para “conhecer a Europa”. Além das saudades da família, voltou ao Rio de Janeiro para resolver sua situação na faculdade, onde cursa Turismo. Vencidas as necessidades sentimentais e acadêmicas, promete voltar à Europa: “Tenho vontade de voltar, mas talvez não para Londres. Se eu voltasse à Inglaterra para estudar de novo, seria para morar numa cidade do interior”, planeja.