ENTREVISTA

Umas verdades sobre o samba

Lenda viva do samba, parceiro de Cartola, Carlos Cachaça, Paulinho da Viola e outros deuses, Elton Medeiros está em plena forma: “Sou um menino. Quem chega perto sente cheiro de leite materno”

Rodrigo Queiroz

Elton Medeiros mal deixara de usar fraldas quando Heitor dos Prazeres, amigo de seu pai, decidiu levar o garoto para conhecer Cartola, o fundador da Estação Primeira de Mangueira. Elton, apavorado, não foi. Achava que ainda era muito novo para subir o morro e visitar uma mulher – ainda mais chamada Cartola. Boa coisa não poderia ser.

Três décadas depois, o mesmo garoto, já um calejado compositor de escola de samba, e a tal “mulher”, se reuniram para compor, de improviso, duas músicas em menos de meia hora. Uma, O Sol Nascerá (“A sorrir/ Eu pretendo levar a vida/ Pois chorando/ Eu vi a mocidade/ Perdida…”), entrou para a galeria dos grandes sambas da história, a outra, por causa de um defeito no gravador, perdeu-se no tempo e jamais foi cantada.

Elton, de 78 anos, é um ranzinza bom de prosa, avesso a chatos – sua secretária eletrônica faz o possível para mantê-los longe de seu alcance. Dono de memória prodigiosa, é capaz de lembrar a cor do sapato com que Zé Kéti estreou no Teatro Opinião ou do jeito que Cartola gostava de sentar na cadeira.

De seu agradável apartamento no Leblon, no Rio de Janeiro, só sai para cantar ou para tomar vinho com o velho amigo e parceiro Paulinho da Viola – desde que ele não fume charutos. A casa de Elton, parceiro de Cartola, Carlos Cachaça, Paulinho da Viola, Paulo Vanzolini, Tom Zé e Hermínio Bello de Carvalho, é enfeitada de adereços africanos. Sua ligação com a cultura negra é forte. É bisneto de africano e neto de escravo líder de quilombo na região de Friburgo. O pai, um pé-de-valsa dos mais elegantes, mas péssimo violonista, foi alfabetizado pela família de um ministro para quem os Medeiros trabalharam. “Então, não me venha perguntar se estou feliz com a eleição do Barack Obama. Não respondo a perguntas idiotas.”

É justa sua fama de ranzinza?
Olha, eu sigo a tática do Jamelão e do Radamés (Gnattali): sou ranzinza apenas com os chatos. Outro dia veio aqui um menino de São Paulo. Eu era o tema de sua monografia. Fui ler e só encontrei bobagens. Tinha coisas do tipo “Elton mantém sempre o cabelo bem penteado…” Que relevante, né? Ele também insistia, como você, com essa história de eu ser ranzinza. Não era uma monografia, era uma crítica comportamental! Não tenho o mínimo saco para essa gente. Com os meus amigos, sou um homem feliz, bem-humorado. Sou filho de pais festeiros.

Filho de pai dançarino e mãe sanfoneira…
Meu pai era um exímio dançarino do Rancho Corbeille de Flores (os ranchos foram os precursores das escolas de samba). Era um pé-de-valsa – ensinou os dez filhos a dançar. Duro mesmo era quando ele atacava de violonista. Era péssimo. Minha mãe, boa sanfoneira, chegou a formar um trio, o proibia de tocar nas festas lá em casa. Só podia dançar. Todo mundo gostava muito de música lá em casa. Minha mãe era sofisticada, adorava Edith Piaf.

O senhor cresceu no bairro da Glória?
Sim, que era um dos redutos de saraus e serestas do Rio. Cansei de acordar no meio da noite com um sujeito cantando para alguma moça na janela. Naquela época, passear pelo centro do Rio era um programão. Não é como hoje. Se alguém cantar na janela do outro é multado por um fiscal ou corre o risco de tomar uma bala perdida. No meu tempo, era possível ver o maestro Radamés Gnattali regendo na sala de espera do Cine Odeon ou ouvir Pixinguinha tocando no bar da Galeria Cruzeiro.

O senhor foi aluno de Pixinguinha?
Queria aproveitar a entrevista para corrigir um erro comum dos jornalistas. Coloca aí, em letra maiúscula: nunca tive aula com pixinguinha. Toda matéria que sai sobre mim tem essa informação. Eu tive aula com outro mestre, Heitor Villa-Lobos.

E como eram as aulas com Villa-Lobos?
Não eram bem aulas. Eu nunca troquei uma palavra com ele. O Villa-Lobos era coordenador de um projeto de educação musical e artística da prefeitura do Rio de Janeiro. Ele impunha a todas as escolas um rigoroso ensino de canto orfeônico, com canções folclóricas e patrióticas. E, de vez em quando, aparecia nas escolas, acompanhado da Banda da Guarda Municipal, que era belíssima, bem diferente da porcaria de hoje, para tomar a lição dos professores de canto. Todo mundo tinha medo dele, inclusive eu. Alguns imbecis diziam que as canções patrióticas que a gente aprendia na escola eram uma demonstração nazi-fascista do governo Getúlio Vargas. Sim, era uma ditadura – e uma ditadura nunca é algo bom -, mas naquela época o ensino era valorizado e a música brasileira também. Não é como hoje, que a música brasileira perdeu completamente o espaço para a música estrangeira.

Mas a Tropicália, nos anos 60, revolucionou a música brasileira promovendo justamente essa mistura de música brasileira com a estrangeira, não?
Olha, eu não sou crítico musical e não estou aqui para atacar ninguém. Cada um tem consciência de seu dever. Meu compromisso é com a cultura do meu país, de divulgar em alta escala as músicas que são representativas do cancioneiro da minha terra. Não deixaria jamais o gênero do meu país para fazer o do outro. Você já viu americano fazendo samba?

Mas a bossa nova também tinha influência do jazz americano…
Eu acho a bossa nova muito importante. Ela representa a devolução da influência da música americana no país.

De onde veio sua paixão pelo samba?
Aos 8 anos eu deixei o bairro da Glória, onde nasci, e fui morar em Brás de Pina, subúrbio do Rio, reduto de grandes sambistas. Eu cheguei até a compor um sambinha, incentivado pelo meu irmão Aquiles. Mas ele próprio, ao ouvir a música, disse que era horrorosa, de rima pobre, sem balanço e achou melhor eu esperar mais um pouco. O meu primeiro samba para valer foi Falta de Queda, em 1959, gravado pelo Jamelão.

O senhor foi mostrar a música para o Jamelão?
Não, não teria essa pretensão. O Jamelão nem sabia quem eu era. Eu cantei o samba para os diretores de harmonia da escola de samba Aprendizes do Lucas. Havia todo um ritual, não é como é hoje, que todo mundo canta, sem ritmo, na maior bagunça. Primeiro entravam as pastoras e sentavam em círculo no meio do terreiro. Depois, os homens, com os instrumentos, que ficavam em volta das mulheres num plano superior. Nesse momento, as pastoras recebiam uma cópia da letra da nova música e todos ficavam em silêncio, esperando o momento do diretor de harmonia, a maior autoridade do terreiro, dar o sinal. As pastoras começavam a cantar bem baixinho e, quando o diretor levantava o braço e apitava, o batuque começava, junto com a primeira parte da música. Era de arrepiar, algo emocionante. O Jamelão, que frequentava a Aprendizes, gostou da música e decidiu gravar, acompanhado da Orquestra Tabajara. Veja só que honra a minha.

Com a gravação do Jamelão o senhor passou a ser conhecido?
Sim, nas rodas de samba. Eu não era um artista de rádio, cantor popular. Tanto que quase fui barrado na porta da rádio Mayrink Veiga.

Por quem?
Pelo porteiro. O Alvaiade da Portela tinha falado de meus sambas para o Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta (radialista, cronista e jornalista, um dos maiores da época), que comandava o badalado programa Na Batida do Samba. Eu selecionei dez músicas de minha autoria, coloquei minha melhor roupa e fui para lá. Estava meio ressabiado – eu era um ilustre desconhecido. O porteiro percebeu a minha hesitação e me barrou. Achava que eu era mais um “peru de estação de rádio”, como eles chamavam os caras que ficavam peruando na porta das emissoras à procura de estrelas. Quando eu disse que estava ali a convite do Sérgio Porto, ele riu: “Conta outra, negão”. A sorte é que o próprio Sérgio Porto estava passando por lá na hora, colocou a cabeça para fora da porta e disse apenas uma palavra: “Entra!”. O porteiro ficou, como dizia a minha mãe, com cara de tacho.

O Sérgio Porto gostou de suas músicas?
O Sérgio Porto era uma figura ocupadíssima, nem teve tempo para falar comigo. O Carlito (lendário pianista da Mayrink) foi quem ficou encarregado de passar minhas músicas para o piano. Ia tudo muito bem até que um sujeito intrometeu-se no meio do ensaio e deu uma dica para Carlito: “Experimenta essa harmonia, eu acho que fica melhor na música do rapaz, não?” A melodia sugerida pelo sujeito era, de fato, muito melhor que a minha. No fim, por curiosidade, perguntei ao Carlito quem era o cara. E ele: “É o Vadico” (grande pianista e maestro, um dos maiores compositores da história da música brasileira, parceiro de Noel Rosa em Feitiço da Vila e Conversa de Botequim). Eu quase desmaiei. Tinha virado quase parceiro de Vadico.

Seu grande parceiro é Paulinho da Viola, com quem compôs um caminhão de grandes sambas, como Onde a Dor Não Tem Razão, Ame, Bem que Mereci, Dívidas, Vida, Samba do Amor, Pra Fugir da Saudade… O senhor se lembra da primeira vez em que viu Paulinho?
Sim, foi no Zicartola (misto de restaurante e reduto cultural, que pertenceu ao casal Dona Zica e Cartola, nos anos 1960). Na época, eu andava sumido das rodas de samba. Estava fazendo umas farras a mais. Eu chegava em casa de manhã, trocava de roupa e ia para a repartição (Elton trabalhou a vida inteira como administrador do Estado, aposentou-se em 2002). Estava me acabando com as mulheres. Não vou entrar em detalhes porque isso vai virar uma novela erótica (risos). Meu pai, que apesar de boêmio não bebia e era muito sério, me alertou: “Meu filho, você está muito magro. Tem de dar um tempo, vai para casa descansar, dá um sossego”. Eu voltei a frequentar o Zicartola e, apresentado pelo jornalista Ilmar Carvalho, conheci o Paulinho.

E como foi o encontro?
O Ilmar disse que havia um jovem compositor de sambas muito bom que eu precisava conhecer. “Ele é muito tímido, acanhado, você precisa ir lá falar com ele”, avisou. E eu fui caminhando pelo Zicartola, à procura do Paulinho. Ele estava nos fundos do restaurante, sentado na escada que dava para o sótão, quase escondido. Ele me conhecia – eu já tinha uma certa fama nas rodas de sambas – e ficou ainda mais acanhado quando fui me apresentar. O resto você já sabe. Fizemos todas aquelas músicas, gravamos um disco (Na Madrugada, de 1966), tocamos no mesmo grupo…

Vocês integraram dois dos mais marcantes grupos de samba da história: A Voz do Morro (com Jair do Cavaco, Zé Kéti e Nescarzinho do Salgueiro) e os Os Cinco Crioulos (com Jair, Nescarzinho, Nelson Sargento e Mauro Duarte). Como foi conviver com essas figuras?
Era muito divertido. Não há mais grupos de samba como antigamente. Pergunte para o Nelson Sargento como foi a entrada dele no Cinco Crioulos. Você vai morrer de rir…

Conte o senhor.
Eu e o Hermínio (Bello de Carvalho) formamos o grupo, mas, na última hora, percebemos que faltava mais um violão. Decidi, então, procurar o Nelson Sargento, que andava meio esquecido, lá na Mangueira. O problema é que o Nelson morava na parte mais alta do morro. Ele dizia sempre: “Olha, pessoal, de cima para baixo, o meu barraco é o primeiro do morro”. Passamos primeiro na casa do Carlos Cachaça para pedir algumas dicas de como chegar lá, mas na última hora o Hermínio ficou com medo e desistiu. Fui sozinho. Subi o morro da Mangueira inteirinho e quando cheguei no pico, com o Rio de Janeiro todo lá embaixo, a mulher avisou que ele não estava. Deixei recado para ele encontrar a gente no dia seguinte no teatro onde o grupo estava ensaiando.

Ele foi?
Sim, foi. Ele era pintor de paredes e chegou carregando uma lata de tintas e um monte de pincéis. Achou que era para dar uma “geral” no visual do teatro. E o Hermínio: “Não, Sargento, é para tocar violão no nosso novo grupo”. Ele ficou todo sem graça e voltou meia hora depois, com um violão todo verde, que havia comprado de um mendigo (risos).

E com o Cartola, alguma boa história?
Era muito divertido acompanhar o processo criativo do Cartola. Ele colocava o pé esquerdo num banquinho, sempre de chinelo, e o violão encostado atrás da cadeira. Quando começava a ter uma ideia de música, passava a acariciar o violão até decidir dedilhar as primeiras melodias. Registrava todos os sambas em um gravador de marca Geloso, dado a ele de presente por Carlos Lyra.

Como surgiu a primeira parceria de vocês?
É curioso, existem várias histórias em torno da minha primeira parceria com Cartola, mas nenhuma é verdadeira. Imagine, chegaram a dizer que eu levei uma grana de um sujeito depois de ter apostado que conseguiria compor de improviso uma parceria com o Cartola. É tudo ficção.

Qual é a verdadeira história?
Em meados de 1964, eu estava na casa do Cartola e notei que ele começou a fazer coceguinha no violão. Quando ele ligou o gravador Geloso, eu entrei no embalo e quando percebi havia feito, em poucos minutos, uma música inteira com ele. A casa encheu e Renato Agostini, amigo da família e futuro proprietário do Zicartola, duvidou que a gente tivesse feito uma música em menos de dez minutos. Desafiado, o Cartola apertou o play do gravador, mas a música não saiu. Ele tinha esquecido de apertar algum botão. Eu só me lembrava da minha parte: “Sonhastes com castelo em pedras, que jamais teria…” O Renato, então, provocou: “Sabia, era tudo mentira de vocês. Onde já se viu compor um samba em dez minutos?”.

E aí?
O Cartola era muito orgulhoso. Ele começou a acariciar o violão, olhou para mim, e começamos a compor outra música: “A sorrir, eu pretendo levar a vida/ pois chorando eu vi a mocidade…” O Cartola colocou o título O Sol Voltará, mas eu achei melhor – e ele também – ficar com O Sol Nascerá. O Renato, com o rabo entre as pernas, nunca mais ousou nos desafiar.

E a música que o gravador perdeu?
A gente nunca mais lembrou (risos). Mas fizemos outras (Peito Vazio, Sofreguidão, Injúria e A Mesma História).

Como o senhor vê a questão das cotas em universidades? O Tony Tornado afirmou, recentemente, “que não aceitava esmola de governo e que o negro tinha de lutar sozinho por seus direitos”.
Eu gosto muito do Tony Tornado, mas não concordo. O sistema de cotas é uma forma de indenizar o negro pelo tempo que ele ficou impedido de entrar na escola. Até hoje, aqui na zona sul do Rio, há escolas que fazem de tudo para impedir que o negro faça parte de seu quadro de alunos. Eu sou formado em Administração de Empresas e durante todo o meu curso só tive dois colegas negros. Nem é preciso ir à faculdade. Basta ver televisão. Você já viu alguma mulher negra passando sabonete pelo corpo em um comercial?

O senhor gravou poucos discos durante a carreira.
Eu não trabalho para fazer sucesso. Não tenho contrato fixo com gravadora. Pela Biscoito Fino, por exemplo, assinei o contrato de um ano e agora estou livre de novo. Já avisei a Kati Almeida Braga (dona da Biscoito Fino) que o meu ritmo é diferente. Adoro fazer shows, estou sempre em São Paulo, onde o mercado é ótimo, cantando minhas parcerias com Paulinho, Zé Kéti, Cartola. Esse é meu patrimônio: meus parceiros.

O senhor não se cansa da rotina de viagens?
Eu tenho 78 anos, mas estou em plena forma. Eu sou um menino ainda. Se chegar perto de mim você sente cheiro de leite materno (risos).

O Paulinho da Viola ficou muito triste com a queda do Vasco para a segunda divisão?
Não, quem conhece o Paulinho sabe que ele não vai dar tiro no ouvido por causa disso.

E qual o seu time de coração?
Olaria.

Olaria?
Sim, algum problema?

Nunca tinha falado com um torcedor do Olaria.
Agora está conversando.