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Paraíso no Velho Chico

Os nordestinos já conhecem, mas sulistas e estrangeiros só agora começam a chegar ao incrível Cânion do Xingó, em Sergipe

Miriam Sanger

Os barcos despejam a turma nas águas mornas do cânion e começam a tocar forró

Quem diria: o Cânion do Xingó, mais belo destino ecológico do menor estado brasileiro, Sergipe, foi desenhado com a ajuda de mãos humanas. O assunto é polêmico, como são todos os que dizem respeito a intervenções na natureza – nesse caso, o represamento de parte do Rio São Francisco para a construção da Usina Hidrelétrica do Xingó. Mas, por incrível que pareça, aqui a própria região incumbiu-se de se reinventar.

Monumentais paredões de rocha arenítica, em meio aos quais o Velho Chico antes passeava bravio e, em alguns trechos, raso demais devido às suas corredeiras, tornaram-se acessíveis aos barcos e seus turistas, que vêm de todas as partes. A maioria é de nordestinos, mas há uma crescente afluência de estrangeiros e sulistas, que começam a enxergar as vantagens de chegar até a capital Aracaju – uma viagem nem sempre simples, seja por terra, seja por ar – com o principal objetivo de curtir, por algumas horas, um cenário deslumbrante.

Navegar pelo cânion só se tornou possível a partir de 1995, ano do represamento dessa parte do rio – a construção da hidrelétrica começou em 1988. A intervenção fez surgir ilhotas e lagos recortados pelos paredões areníticos, em um imenso lago com cerca de 65 quilômetros de extensão e profundidades que chegam a 170 metros. E em poucos anos a natureza se encarregou de transformar o que era sertão em uma área mais verde e até atrair uma nova fauna para a região. Tudo isso, misturado a águas cristalinas e sem fim, vento e calor permanente em torno de 27º C o ano todo, criou um cenário que, na chuva ou sob o céu azul, só deve existir lá mesmo. Para ser exato, no município do Canindé de São Francisco que, até 20 anos atrás, provavelmente só aparecia em mapas muito caprichados.

O píer de partida fica a meia hora de carro do centro do município. Está quase sempre cheio, com diversas saídas diárias de catamarãs e escunas em direção a percursos cheios de forró durante três horas São Francisco acima – a beleza do lugar chama à reflexão. Para chegar até lá, os veículos passam diante da faraônica Hidrelétrica do Xingó, algo tão grande e cinza para nunca ser esquecido – e se conseguir ver comportas abertas, tão espetaculares quanto assustadoras, será o caso de até o mais cético visitante evocar a proteção do padim Padre Cícero.

Seguindo pela estrada, é parada tradicional das excursões o simpático Museu de Arqueologia do Xingó (MAX), administrado pela Universidade Federal de Sergipe e desenvolvido pela própria universidade, a Petrobras e a Companhia Hidrelétrica de São Francisco (Chesf). O MAX reúne o que foi recuperado de escavações arqueológicas realizadas durante os quatro anos que antecederam a submersão daquela região. O que se descobriu foram restos do que se chamou de “cultura xingoana” – utensílios, ossos etc. – que se estabeleceu por lá há 9 mil anos. Tudo está bem documentado em 50 mil peças no museu que, apesar do local de estranha instalação, é agradável e bem organizado. No mais, em Canindé de São Francisco espere por um ou outro restaurante muito simples, 18 mil habitantes que não se concentram em lugar nenhum e pousadas com pouca infraestrutura. A exceção fica por conta do Xingó Parque Hotel, cuja localização é tão impressionante quanto sua diária, em torno de R$ 400 por casal.

Forró a bordo

O forró começa a sair pelos alto-falantes assim que o embarque é terminado. Em poucos minutos se navega por entre os paredões de pedra, formados há 60 milhões de anos, cobertos por uma vegetação baixa e verde. Tudo parece maravilhoso o suficiente, até que se chega, cerca de uma hora depois, ao Paraíso do Talhado. Sai de cena a vegetação que cobria os paredões e eles aparecem coloridos e recortados pela erosão provocada pelas chuvas, formando desenhos fantásticos. É um prêmio pela viagem de três horas, a partir de Aracaju, em 213 quilômetros de estrada perigosa e mal sinalizada em alguns trechos. Os barcos param para uma hora de mergulho na Gruta do Talhado, onde é possível observar – não se deve tocar – os paredões e ver de pertinho suas areias coloridas, além de nadar no São Francisco. Faça chuva ou faça sol, as imagens certamente vão ficar registradas na lista de boas lembranças da vida de qualquer um.

Outro passeio interessante e bem conhecido em Canindé, São Francisco abaixo, leva à Rota do Cangaço, com parada na cidade histórica de Piranhas e seus casarios coloniais do século 18. Os barcos também fazem uma parada para uma visita ao Museu do Cangaço, que guarda peças e fotografias de Lampião e seu bando. Depois, segue até a Grota de Angico, no município de Poço Redondo, lugar onde o cangaceiro, Maria Bonita e seus companheiros foram “caçados” e mortos, em 1938. Mas essa já é outra história.

Rio virado mar

rio mar

A Hidrelétrica do Xingó fez nascer uma das mais incríveis atrações do Nordeste e garante o maior PIB per capta de Sergipe a Canindé do São Francisco. Mas a um custo que arde na consciência, por conta da submersão das áreas da cidade em torno do rio, principalmente a que está abaixo da usina, numa das nove barragens construídas ao longo do São Francisco. O folheto de uma exposição realizada em 2005 pelo MAX, por exemplo, descreve com palavras precisas a transformação sofrida pelo Velho Chico: o homem priorizou seu uso como fonte de energia e fornecedora de água para irrigação em detrimento dos demais usos de suas águas.

“As repercussões são diferentes para a região montante (rio acima) da hidrelétrica e para a jusante (rio abaixo). Na área anterior ao represamento não houve muitas mudanças, já que era uma região de grandes cânions, com pouca população ribeirinha. Ao contrário de outras barragens, que inundaram cidades inteiras, a do Xingó é muito alta – mede 127 metros – e exigiu apenas o deslocamento do município de Canindé, levado em março de 1987 para uma área mais elevada”, explica Luiz Carlos da Silveira Fontes, professor de Geologia Hidroambiental da Universidade Federal de Sergipe.

Os maiores prejuízos na área do cânion recaíram sobre as margens (erosão) e a vida marinha. As tais águas cristalinas são um colírio para os olhos dos turistas, mas um local de difícil sobrevivência para peixes e crustáceos. Esse é um dos resultados do represamento: a correnteza foi drasticamente reduzida e as antigas águas amarronzadas do Velho Chico, que ganhavam essa cor por causa da riqueza de nutrientes em suspensão (agora eles ficam no fundo dos imensos lagos, misturados à lama), se tornaram inóspitas para os bichinhos.

Hoje, eles são encontrados em pequena quantidade e em tamanhos reduzidos, sobretudo aqueles considerados mais nobres, como o robalo, o surubim e o camarão pitu. Outra repercussão negativa da construção da usina foi o êxodo da população mais jovem, desestimulada com uma atividade que deixou de ser rentável. “O resultado da pesca hoje soma menos de 10% do que se colhia antes da barragem”, diz o professor.

A parte que mais sofreu foi a área jusante – 270 quilômetros entre a represa do Xingó e o oceano. Há registros de que, no século 16, o volume e a força das águas nas épocas de enchente do rio eram tamanhas que avançavam até 16 quilômetros mar adentro. “As caravelas se abasteciam de água doce em pleno oceano”, afirma Fontes. Com o Velho Chico enfraquecido, hoje é o mar que o empurra por até três quilômetros continente adentro. O povoado de Cabeço, que estava há dois quilômetros da praia, foi engolido e hoje resta apenas parte de seu farol acima das águas do mar. E a um sopro para ruir.

Após mais de uma década estudando os impactos da construção das barragens no que é chamado pelo governo de “rio da integração nacional”, o professor Freitas dá seu veredicto: os bônus dos represamentos vão para as populações mais distantes, enquanto o ônus fica com aqueles que estão dentro da Bacia do São Francisco. “Para se ter uma ideia, as capitais, como Recife, receberam a energia elétrica gerada por Xingó antes das cidades vizinhas à hidrelétrica.” E um novo capítulo que versa sobre as águas desse “mar” – vale citar aqui que o nome indígena do rio é Opara, rio-mar – é sua transposição, obra de custo estimado em R$ 4 bilhões e que poderá gerar uma verdadeira luta pela água ainda não vista no Brasil. “Esse projeto ameaça a segurança energética do Nordeste e cria um conflito de interesses: quem vai definir a quantidade de água a ser desviada para cada Estado?”, pergunta Freitas. Mas essa também é outra história.