cultura

Hífen continua com n

Acordo ortográfico que unifica a escrita nos oito países onde se fala o português começa a valer. Brasileiros, que mal dominam regras “antigas”, têm até 2012 para se adaptar novamente

Roberto Parizotti

Adriana: perdemos um pouco da beleza gráfica

A adoção do novo acordo de unificação ortográfica da língua portuguesa, por aí apelidado de reforma ortográfica, a partir de 1º de janeiro, não significa que ficará mais fácil ou mais difícil falar ou escrever. O idioma rico, utilizado por 210 milhões de pessoas em todo o mundo, é quase indominável. São acentos, fonemas e conjugações verbais que confundem, intrigam e, pouca gente discorda, é muito difícil de escrever e falar corretamente. O acordo traz apenas alguns ajustes, como o fim do trema, a eliminação de acentos em ditongos e diferenciais e mudanças nos hífens, o item mais atacado por especialistas. E a finalidade é política: unificar a língua escrita no Brasil com a dos demais países lusófonos – Portugal, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.

As mudanças incidem sobre 0,5% do vocabulário do brasileiro e 2% do restante. O português era a única língua não unificada no mundo. As tentativas de unificação são antigas – desde o início do século 20. No Brasil, aconteceram reformas em 1943 e 1971. Em Portugal, onde houve maior resistência ao atual acordo, a última mudança ocorreu em 1945.

Os veículos de comunicação e os documentos oficiais são os primeiros a seguir as novas regras. A Revista do Brasil emprega as alterações a partir desta edição. Até 2012 as duas grafias valem para utilização em vestibular, provas de escolas e concursos públicos. No ensino público, as mudanças serão implementadas a partir de 2010.

Os livros atuais saem desatualizados, já que o processo de compra começa dois anos antes da entrega – 130 milhões de exemplares publicados em 2009, a maioria didáticos, a um custo de R$ 900 milhões, não incluem as novas regras. Para os professores, resta o desafio de ensinar os alunos sem a ferramenta adequada, já que não poderão ignorar as alterações em suas aulas. O Ministério da Educação (MEC) aguarda a divulgação do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, em elaboração na Academia Brasileira de Letras (ABL), para imprimir material complementar aos livros e iniciar a capacitação dos docentes, que deve ocorrer até o mês que vem, segundo o diretor de ações educacionais, Rafael Torino.

A utilização do hífen é intrigante e o acordo traz novas regras antes mesmo de a forma antiga ter sido dominada. A estudante de cursinho pré-vestibular Fernanda Cunacia da Rocha, de São Paulo, titubeia quando questionada sobre a correta grafia da palavra “antissocial”. “É tudo junto?”, arrisca. No dia em que foi entrevistada não era. A regra dizia: anti… leva hífen quando o segundo elemento começa com h, r e s. Agora, o hífen continua só para o h. “Para que isso? Vai confundir, vai ficar feio”, desabafa a adolescente de 18 anos.

O acordo é tecnicamente malfeito, afirma o professor de Português e escritor José Luiz Fiorin, aposentado desde setembro pela Universidade de São Paulo (USP). “As mudanças poderiam ser diferentes, como no caso do hífen. Ainda existe muito espaço para melhorá-lo”, afirma. Fiorin destaca, porém, que não daria para fazer uma reforma radical na ortografia a essa altura do campeonato. “As regras foram fortemente alteradas no início do século 20, quando poucas pessoas eram alfabetizadas. Mas agora é diferente. Seria necessário jogar todas as publicações no lixo e todo mundo precisaria ser realfabetizado”, observa.

Domício Proença Filho, membro da cadeira 28 da Academia Brasileira de Letras, diz que o acordo respeita as diversidades dos povos. “Aqui continuamos a grafar acadêmico (com acento circunflexo) e lá eles mantêm académico (com agudo)”, observa. Uma coisa é certa, diz o professor, eles deveriam ter acabado de vez com o hífen. Para Proença Filho, a vantagem do acordo é diplomática. “No caso de documentos oficiais da Organização das Nações Unidas, por exemplo, seja qual for o padrão adotado, o nosso ou o deles, todos devem aceitar porque é oficial”, explica. Segundo ele, também fica facilitado o intercâmbio cultural, pois livros científicos e didáticos poderão circular livremente nos oito países.

A Associação Brasileira das Editoras de Livros (Abrelivros) afirmou em nota que não tem como mensurar o impacto da nova medida junto às empresas. A entidade observa, no entanto, que o processo de adaptação de um livro é trabalhoso e requer muito cuidado. “O acordo é uma medida governamental e todas as editoras irão acatá-lo. Ele foi selado e não nos cabe discutir a sua validade”, diz a nota.

Apego

A jornalista, professora de Inglês e estudante de Letras da USP Adriana Buzzetti está com o pé atrás. “Tenho uma relação meio romântica com a língua portuguesa. Falo inglês e um pouco de francês e vejo a beleza dessas línguas cada uma à sua maneira. No caso do português, o que acho bonito são os sinais gráficos. Então, com a queda do trema e do acento agudo de algumas palavras, acho que perde um pouco dessa beleza gráfica, se assim podemos chamar”, diz. Adriana acredita que basta uma consulta a um manual e está tudo certo com as mudanças. “A uniformização da grafia para os países lusófonos é importante. O que permanece diferente é o uso da língua mesmo, as construções, o vocabulário, que varia de um país para outro, que é o que marca a identidade cultural de um povo.”

O escritor português José Saramago, em recente passagem por São Paulo, lembrou que a primeira palavra que aprendeu a escrever foi “mãe”, com “e” no final. “Depois de um reforma passei a escrever com ‘i’; depois outra reforma me fez voltar a escrever com ‘e’. E não importava, minha mãe era sempre a mesma”, brincou. “Não importa a palavra, importa que nos comuniquemos. É preciso ter tolerância, a língua portuguesa é toda língua seja qual for o lugar em que se fala, o importante é que seja inclusiva, é termos um exercício de tolerância. O que está em primeiro lugar é o grau de educação que se dá.”

Confusão à vista

Letras do alfabeto
Passam a ser 26 com a inclusão oficial de K, W e Y

Não se usará mais o hífen quando:
o segundo elemento começa com s ou r. Nesses casos a consoante será dobrada, como em antirrábico e antissocial. Exceção feita quando o prefixo terminar com r: hiper-revolucionário, super-rato ou inter-racial;
o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa com vogal diferente: extraoficial, aeroespacial, infraestrutura e iberoamericano.

Abolição do trema
Só existirá em nomes próprios e seus derivados.

Acento diferencial não será mais usado para distinguir:
“pára” (do verbo parar) de “para” (preposição);
“péla” (do verbo pelar) de “pela” (preposição mais artigo);
“pêlo” (substantivo) de pelo (preposição mais artigo).

Acento circunflexo não será mais usado:
nas terceiras pessoas do plural do presente do indicativo ou do subjuntivo dos verbos crer, dar, ler, ver e seus derivados. O correto será creem, deem, leem, veem;
em palavras terminadas em hiato “oo”, como voo, enjoo.

Acento agudo
não será mais usado nos ditongos abertos “ei” e “oi” de palavras paroxitonas. O correto será assembleia, boleia, ideia, estreia;
nas palavras paroxítonas com “i” e “u” tônicos, quando precedidos de ditongo, o correto será feiura, baiuca;
nas formas verbais com acento tônico na raiz, com “u” tônico precedido de “g” ou “q” e seguido de “e” ou “i”. Com isso, o correto passa a ser averigue em vez de averigúe, apazigue no lugar de apazigúe.

Fim das letras mudas no português lusitano
Deixam de existir o “c” e o “p” de palavras nas quais as letras não são pronunciadas como acção, acto, adopção, facto, optimo – que passam para ação, ato, adoção, fato e ótimo. Para os brasileiros não faz diferença, mas para os portugueses faz.