comportamento

Nada se perde por acaso

Ansiedade e distração levam pessoas a perder coisas das mais banais às mais absurdas por onde passam. E por trás de um esquecimento pode haver mais revelações do que sonha a nossa vã filosofia

Mauricio Morais

Leandro perdeu seu instrumento na Estação da Luz, em São Paulo. A equipe do Achados e Perdidos da CPTM conseguiu devolvê-lo depois de muita investigação

Um exército de desmemoriados esquece em locais públicos uma infinidade de objetos e documentos todos os dias. Há situação que é quase inevitável mesmo, como perder um guarda-chuva. Mas deixar um bidê ou uma cadeira de rodas dentro de um trem já é demais. Ou, como aconteceu com o músico Leandro Brito dos Santos, que largou seu clarinete no trem ao desembarcar na Estação da Luz, na região central de São Paulo. Leandro acabou investindo R$ 3.500 em outro instrumento, em seis prestações. Dias depois de pagar a quarta, em julho, soube que a equipe do Achados e Perdidos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) havia encontrado seu velho clarinete. Entre o “sumiço” e o resgate, lá se foi um ano e três meses.

O instrumento estava no estojo, dentro de uma mochila com vários bolsos. Em um deles, após muito tempo, foi encontrado um comprovante de depósito bancário. O chefe do departamento de Atendimento ao Usuário, Sérgio Carvalho Júnior, conta que o banco localizou o correntista e facilitou o contato. Como já havia sido substituído, o instrumento devolvido está à venda.

No Metrô de São Paulo, a situação dos “cabeças de vento” assusta. “Tem gente tão desnorteada que perde até filhos”, conta o atendente Roberval Nunes. No Achados e Perdidos da Estação Sé a fila não dá trégua. A reportagem presenciou a procura de uma senhora pela prótese de um único dente, esquecida no banheiro da estação. Não encontrou e saiu decepcionada, sem o dente que lhe faltava. Outra vez, lembra Nunes, ao receber a prótese dentária procurada, a mulher colocou-a na boca “para ver se servia” e foi embora satisfeita, sem-cerimônia nem higiene. Outro senhor, que havia recuperado sua bolsa na qual havia uma prótese dentária, voltou em cinco minutos alegando que a dentadura não cabia em sua boca. Nunes arrisca dizer que a ansiedade é que provoca a perda ou o esquecimento. “As pessoas não se respeitam, vão passando umas por cima das outras, querem entrar antes no trem, sentar antes dos outros, descer antes. Aí largam as coisas”, resume.

Se para ele a explicação é simples, à luz da psicanálise é um pouco mais complicada. O esquecimento seria uma manifestação do inconsciente, afirma a psicanalista Fani Hisgail, professora da PUC-SP. “A vida corrida provoca esquecimentos, mas há casos que revelam o interior das pessoas. A perda de documentos de identidade diz respeito à própria identidade, a traços que, por alguma razão, se precisa esquecer.”

Para ela, há esquecimentos que falam pela gente. “No caso da prótese dentária, por exemplo, há uma rejeição natural ao que é postiço no corpo. Daí o ato de esquecer”, explica. A perda de guarda-chuvas, um dos itens mais comuns, Fani atribui ao fato de tratar-se de um apêndice e, assim como a prótese, está sobrando. “Esse objeto também tem um simbolismo fálico. Conheço o caso de um cidadão que sempre carregava um guarda-chuva quando ia a um encontro amoroso porque se sentia mais seguro, mais potente. Perder guarda-chuva pode ser a representação de um problema sexual.”

Claro, não se pode generalizar. A psicanálise é algo pessoal e intransferível, mas deixa claro que há muito mais por trás de um mero esquecimento do que sonha nossa vã filosofia. Para quem o comete com alguma freqüência, talvez seja o caso de procurar um especialista e investigar se não há algo importante perdido dentro de si mesmo.

Todos têm sempre a mesma desculpa: correria e distração. Essa também foi a justificativa da advogada e estudante de Jornalismo Juliana Oliveira, que esqueceu uma bolsa com três DVDs, alugados da biblioteca do Instituto Goethe do Rio de Janeiro, no banco de um ônibus da linha 457. Ela voltava da universidade para casa. Quando se deu conta, entrou em desespero. Foi, em vão, até o ponto final do ônibus, em Ipanema. E já dava como certa a multa pesada que teria de pagar. “Eram filmes alemães originais, sem legendas, com utilidade para pouquíssimas pessoas. Achei que tudo fosse parar no lixo”, conta. Passados alguns dias, Juliana voltou ao Goethe para relatar a perda dos DVDs e descobriu que a sorte estava a seu lado. Uma pessoa simples, que jamais ouvira falar sobre o instituto, pesquisou, descobriu o endereço e entregou os filmes.

Mas nem todos saem em busca do que perdem ou esquecem: na CPTM, metade do que é encontrado volta aos donos, mas isso acontece só depois de muito esforço da equipe. No Metrô paulista o índice é de 35%.

andrea

Dor da perda

A sala de Achados e Perdidos do maior terminal rodoviário do país, o Tietê, em São Paulo, registra diversas histórias. Pessoas que levam dias atravessando centenas de quilômetros têm, além do desgaste da viagem, a preocupação em proteger seus pertences. A cada parada do ônibus, olhos atentos para garantir que ninguém troque as malas. Porém, muita coisa acontece quando o veículo adentra as plataformas de desembarque. A emoção de reencontrar parentes e amigos, abraços calorosos e o cansaço resultam, freqüentemente, em perdas de objetos.

A responsável pelos Achados e Perdidos do terminal, Andréia dos Santos, imagina com quanto sacrifício um viajante traz do Nordeste até São Paulo uma caixa de isopor lotada de garrafas de refrigerantes de caju, e esquece no terminal. “É perda de dinheiro, de tempo, é muito esforço desperdiçado”, observa Andréia. “Aqui acontece de tudo mesmo. Uma pessoa já deixou no depósito de bagagens uma urna com restos mortais. Só um ano depois o material foi entregue, com o auxílio de informações do crematório.”

Também é muito comum passageiros vindos do Norte e Nordeste esquecerem alimentos típicos, como caixas de carne-de-sol e buchada. “Há pouco tempo uma pessoa que vinha do Ceará esqueceu uma caixa de corvina. Como não ficamos com nada perecível aqui, ligamos imediatamente para uma instituição e fizemos a doação. Também já encontramos uma caixa com codornas”, lembra Andréia.

No terminal, a reportagem observou o comportamento estressado de uma senhora que havia chegado da Bahia. Ela corria de um lado para o outro em busca de sua bagagem. Depois do susto, questionada sobre o ocorrido, ele mal teve disposição para dizer que já estava tudo bem. “A pessoa faz uma viagem longa, chega acabada, e ainda passa um nervoso desse”, comentou uma passageira que presenciava a cena.

Em toda essa rotina no Tietê, a honestidade das pessoas também surpreende. Algumas encontram carteiras com dinheiro e as entregam no setor. “É uma atitude tão rara, que mal dá para acreditar”, diz Andréia. Segundo ela, quando o dono não é encontrado, o dinheiro vai para a conta da empresa, sendo devolvido quando reclamado pelo usuário que prova a propriedade. Já os pertences deixados nos ônibus seguem para as garagens e, quando procurados, são devolvidos pelas próprias empresas.

E pior que perder o documento é não voltar para procurar. “Isso é incompreensível para mim”, afirma o responsável pelo Achados e Perdidos do Metrô de Belo Horizonte, Manoel Luiz Loureiro Prado. Ele não se conforma com a quantidade de documentos não recuperados. “Dá muito trabalho para a pessoa buscar as informações constantes da carteira profissional”, lamenta. “Isso me chateia, porque nem sempre dá para achar o dono do documento ou do objeto.” Manoel lembra que pouco tempo atrás foi encontrado um par de muletas em um trem. “Uai, será que, de uma hora pra outra, a pessoa voltou a andar?”

Os passageiros do Terminal Rodoviário Engenheiro João Thomé, em Fortaleza, não fogem à regra: muito esquecimento e pouca procura para devolução. E uma boa história: uma senhora, ao resgatar sua bolsa, não encontrou os remédios e já foi reclamando: “Roubaram meus remédios”. O filho, mais calmo, os achou e disse: “Mãe, com tantas jóias nessa bolsa quem iria roubar seus remédios?”, narra Junior Lemos, responsável pelo setor.

Ciclo

Como consolo, nem tudo fica definitivamente perdido. A muleta de um pode sustentar outro, pois o que não é devolvido aos usuários permanece sob a guarda das empresas de transporte público por 60 dias. Passado esse tempo, os documentos são devolvidos aos órgãos emissores e os objetos seguem para doação. As carteiras de identidade vão para as Secretarias de Segurança Pública dos Estados emissores. Em São Paulo, o órgão encaminha os documentos ao Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton (IRGB), onde são invalidados. A orientação é para que os cidadãos registrem boletim de ocorrência imediatamente após a perda.

Documentos encontrados em outros locais são tradicionalmente enviados aos Correios, onde ficam por 60 dias e depois seguem aos órgãos emissores. Só neste ano, até o mês de outubro, a empresa recebeu pouco mais de 340 mil, com devolução de 90%. Para resgatar o documento é cobrada uma taxa de R$ 3,30.

Em São Paulo, os objetos do Metrô da CPTM são doados ao Fundo Social de Solidariedade do Estado (Fussesp), que os repassa a 1.500 entidades cadastradas, como creches, asilos e outras sem fins lucrativos. Essas instituições fazem bazares para levantar recursos. Os itens em mau estado são leiloados pelo fundo, caso recorrente com cadeiras de roda e bicicletas. A cada seis meses são realizados dois leilões de materiais sem utilidade pela internet. O principal deles é o de material ferroso e papel. O dinheiro perdido pelos usuários também é depositado na conta do Fussesp e revertido aos projetos sociais. Os objetos dos terminais rodoviários e dos metrôs de outras cidades também seguem para doação a entidades cadastradas.

Peça de museu
Documentos, malas com roupas, capacetes, guarda-chuvas, livros, óculos, brinquedos, fogões, materiais escolares, carteiras, celulares, churrasqueiras, televisões, máquinas de escrever, ferros elétricos, notebooks, computadores, ventiladores, pasme, são comumente encontrados. Também não é raro achar cadeiras de rodas, carrinhos de supermercados e bicicletas. Mas aparecem tantos objetos diferenciados nas empresas públicas de transporte que o Metrô de São Paulo, por exemplo, está montando o Museu dos Achados e Perdidos, para dar mais visibilidade a um setor já conhecido pela população. Entre as primeiras peças do “acervo” estão um par de alianças, o documento de identidade de um cidadão alemão, muletas, miniatura de plataforma da Petrobras, próteses dentárias, discos compactos, relógios, medalhas, placas de moto, entre outros.